derrida e o labirinto do livro: primeira volta

por inês nin, março de 2013

 

“Estranha a serenidade de tal retorno. Desesperada pela repetição e contudo alegre por afirmar o abismo, por habitar o labirinto como poeta, por escrever o buraco, ‘o destino do livro‘ no qual só nos podemos enfiar, que devemos guardar ao destruí-lo. Afirmação dançante e cruel de uma economia desesperada. A habitação é pouco acolhedora por seduzir, como o livro, num labirinto. O labirinto é aqui um abismo: penetramos na horizontalidade de uma pura superfície, representando-se a si própria de meandro em meandro.”

(Jacques Derrida, A Escritura e a Diferença)

 

De um lado a linguagem ordenada e dura das intituições, da teoria que se pretende firme, e, de outro, uma possibilidade de “abertura” à vastidão do mundo, o qual adquire sentido somente quando este lhe é atribuído (um movimento posterior, portanto, que exige em si algum esforço em sua execução). Como diz Derrida, em A Escritura e a Diferença:

Aqui ou ali, discernimos a escritura: uma partilha sem simetria desenhava de um lado o fechamento do livro, do outro a abertura do texto. De um lado a enciclopédia teológica e segundo o seu modelo, o livro do homem. Do outro, uma rêde de traços marcando o desaparecimento de um Deus extenuado ou de um homem eliminado. A questão da escritura só se podia iniciar com o livro fechado. A alegre errância do graphein era então impossível. A abertura ao texto era a aventura, o gasto sem reserva. (DERRIDA, 1971, p. 73)

Não cabe, nessa leitura, qualquer vontade de plenitude, de “dar conta de”, de apreender um conceito. Os “quase-conceitos” de Jacques Derrida podem funcionar, em um primeiro momento, como tentativa ou porta de acesso a um texto que tanto rodeia, se perde em labirintos, evoca funções que lhe fogem à palavra, à presentificação de sentido que de alguma forma procuramos. Busca que de vez em vez retorna, talvez por vício de leitura, de linguagem, mas também por vontade de compreensão, de apreender de um sentido que insiste em escapar a todo momento (e, talvez, justamente por isso, se mostre mais maduro, seguro de suas incertezas).

E contudo não sabíamos nós que o fechamento do livro não era um limite entre outros? Que é apenas no livro, voltando constantemente a êle, tirando dêle todos os recursos, que nos seria necessário indefinidamente designar a escritura de além-livro? (ibid., p. 74)

“Eu perguntava a você por onde começar e você me encerrou em um labirinto”(1), protesta Henri Ronse ao entrevistar Derrida. Não se pode encarar uma obra sua como primeira, situada linear e claramente em algum ponto de um percurso trilhado, pois os caminhos são vários, e se permutam, se deixam corromper.

O retorno que em forma elíptica tende a um retorno ao texto, à origem que não é primeira, mas já é ela repetição em si. Uma espécie de paixão pela origem faz a escritura, “uma origem pela qual nada começou”. Dela só se encontra rasto, mas “não é ausência em lugar da presença”, pois ela nunca esteve presente. “Longe de se deixar oprimir ou envolver no volume, esta repetição é a primeira escritura”(2). Repetir é mistificar, criar a linha na qual se desdobra o pensamento, portanto leitura de algo que o antecede.

Se a linha é mistificação, o livro é o labirinto. “É infinita a hesitação entre a escritura como descentramento e a escritura como afirmação do jôgo.” (ibid., pp. 77-78). Descentramento porque não é possível formar um centro, completar o círculo, centralizar. A cada retorno a linha se modifica, é repetição e no entanto já não é a mesma. Esse lapso, intervalo impossível de captar, é em si variação. A repetição produz diferença. “O outro está no mesmo”(3), diz Derrida.

Encontrar o centro não seria a morte do texto? O centro seria o apaziguamento da escritura, onde não acontece. Onde não há mais jogo e não mais se produz diferença. Derrida diz que o centro é o mesmo que a morte, talvez situado no deslocamento da pergunta. É o inominável, o poço sem fundo fora do alcance. O desvio do processo, do jogo do devir, da transformação. “O centro é o luto”(4), diz o rabino.

No pequeno texto com que lidamos, que trata da elipse, Derrida parte do Livre de Questions, de Edmond Jabès, composto de sete tomos em torno “daquilo que não pode ser dito”, isto é, o Holocausto, ou a própria literatura. A relação com esse descentramento, com essa busca, torna-se visível ao ler Derrida sobre suas obras:

Pode-se tomar a Gramatologia como um longo ensaio articulado em duas partes (cuja soldatura é teórica, sistemática e não empírica), no meio do qual se poderia inserir A escritura e a diferença. … Inversamente, pode-se inserir a Gramatologia no meio d’A escritura e a diferença, uma vez que seis dos textos dessa obra são anteriores, de fato e de direito à publicação. … Mas as coisas não se deixam reconstituir, como você pode imaginar, tão simplesmente. (2001, p. 10-11)

Quanto título A voz e o fenômeno, Derrida diz que “sem dúvida, eu poderia tê-lo anexado, como uma longa nota, a qualquer das duas outras obras.” (ibid., p. 11). Publicados no mesmo ano (1967), os três livros se complementam e permitem atravessamentos que se dão por diferentes caminhos.

Há outras obras de Derrida sobre as quais se debruçar, sem dúvida, mas ao que essa resposta serve de exemplo é justamente à questão de como adentrar esse texto, que é, também (por vezes mais ou menos explicitamente) leitura de outros. Sem que com isso se atenha a uma tradição específica na qual o poderíamos encerrar. Como diz o próprio: “Tento me manter no limite do discurso filosófico” (ibid., p. 12), operando em um duplo gesto que aponta para fora(5) dessa estrutura, desse “sistema de constrições fundamentais, de oposições conceituais” que é a filosofia.

Por meio do que ele chama de “rasura”, a leitura das funções obliterantes presentes no interior desse sistema se torna possível, “inscrevendo violentamente no texto aquilo que buscava comandá-lo de fora” (ibid.). E avança, no que contribui para a apreensão de um quase-conceito importante em seu trajeto:

“Desconstruir” a filosofia seria, assim, pensar a genealogia estrutural de seus conceitos da maneira mais fiel, mais interior, mas, ao mesmo tempo, a partir de um certo exterior, por ela inqualificável, inominável, determinar aquilo de que a história foi capaz – ao se fazer história por meio dessa repressão, de algum modo, interessada – de dissimular ou interditar. Nesse momento produz-se – por meio dessa circulação ao mesmo tempo fiel e violenta entre o dentro e o fora da filosofia (quer dizer, do Ocidente) – um certo trabalho textual que proporciona um grande prazer. (ibid., p. 13)

Haddock-Lobo, em sua tese de doutorado, aponta que “o deslocamento da desconstrução se dá quando, ao mesmo tempo, se respeita e se desordena a ‘ordem interna’ de um texto” (2007, p. 88). Segundo o autor,

Este é o “trabalho” e o “amor” de Derrida. Desconstruir. Só se desconstrói o que se ama, diz ele em O monolingüismo do outro. Isso porque este é o desejo de Derrida, o desejo de fazer justiça à alteridade mesma, a este outro que sempre escapa e que sempre foi apreendido, compreendido, preso pela tradição filosófica. (ibid.)

Apontando para uma direção distinta de Caputo, Haddock-Lobo destaca que o “amor a esse outro” não se dá através de uma “hermenêutica radical”, como diria Caputo, implicando, de todo modo, em um pensamento que se pauta por antagonismos como dentro/fora, presença/ausência, véus/desvelamento, o que não parece combinar com os quase-conceitos que operam em Derrida. O texto de Caputo se ampara em uma vontade de real ou de presença que se imporia na relação com esse outro. Caputo identifica em Derrida o que chama de “hiper-realismo”:

O hiper-realismo de Derrida deve ser pensado como um realismo além do realismo, um ‘realismo sem realismo’, de acordo com a lógica do sans, tal como a encontramos na sua “religião sem religião” (2002, p. 41).

E completa, mais adiante:

O hiper-real, o real para além do real, o que se encontra mais fora de nosso alcance, o mais além de tudo, é o que está por vir, o que esperamos, oramos e vertemos lágrimas para que venha, com o coração inquieto de um Agostinho judeu. … No hiper-real, a realidade é sempre abundante em expectativas. O mundo é o objeto não tanto de nossa percepção, mas de nossas orações e lágrimas. (ibid., p. 47)

Pois, nas próprias palavras de Derrida, “Não se poderá afirmar a não-referência ao centro em vez de chorar a ausência do centro? Por que razão se faria luto pelo centro?” (DERRIDA, 1971, p. 77). A interpretação de Caputo parece deslizar: topa com Santo Agostinho e verte-se em ansiedade. Haddock-Lobo observa que, para o autor, essa “coisa mesma que sempre nos escapa” nada tem a ver com orações e lágrimas. Ao contrário, diz ele que

O amor de Derrida é o amor pela partição no interior da coisa mesma, é o amor pela tensão, pelo quiasma, pela indecidibilidade mesma do real. E é esse amor que nos faz desconstruir, inclusive e sobretudo, o real, não para mostrar que existe um real mais real do que o real, mais real do que o rei, mas sim para mostrar que o real é multifacetado, diverso. (2012, pp. 7-8)

Aceitar essa impossibilidade de apreensão completa do todo é o ponto de partida para pensar qualquer diferença. O outro ou diferente que se coloca ao mesmo tempo como espelho e figura indecifrável, do qual o sentido, sempre insuficiente para dar conta de sua existência, se sobrepõe a ele enquanto leitura. A parcialidade implícita nesse contato é turva, mas é justamente isso o que seria o “amor” de Derrida, residir e lidar com essa indecidibilidade – e não procurar resistir a ela, orar para que ela se presentifique.

Retornemos ao inominável. Aos signos que se repetem indefinidamente, variando e gerando emaranhados, labirintos. Em Derrida, “pensar é estar diante do impossível”. É preciso assumir essa arbitrariedade do pensamento e do outro, como a reação de estranhamento do gato(6) diante de uma ação humana, mantendo-se no limiar das coisas. Para Derrida, “o real se mostra no ‘branco’ do discurso, no não-dito do texto.”

 

Notas

(1) DERRIDA, J. Posições, p. 11.

(2) DERRIDA, J. A Escritura e a Diferença, p. 74.

(3) DERRIDA, J. A Escritura e a Diferença, p. 76.

(4) DERRIDA, J. A Escritura e a Diferença, p. 77.

(5) Derrida chama a atenção para uma tensão permanente entre o “dentro” e o “fora”, que não estão em absoluto distantes, ao contrário, se contaminam… Nesse lugar do “entre” está o indeterminável, zona de contaminação, que nada mais é que uma fina camada como o tímpano de um ouvido: permeável, que pode ser rompido. E que escuta, tem acesso a ambas extremidades.

(6) DERRIDA, Jacques. O Animal que Logo Sou. São Paulo: Unesp, 2002.

 

Referências

CAPUTO, John. Por amor às coisas mesmas: o hiper-realismo de Derrida. In: DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar (org.). Às Margens – A propósito de Derrida. Rio de Janeiro: Editora PUC, 2008.

DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971.

___________ O Animal que Logo Sou. São Paulo: Unesp, 2002.

___________ Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

HADDOCK-LOBO, Rafael. O “hiperrealismo” de John Caputo e a desconstrução do real de Jacques Derrida. Texto apresentado no GT Desconstrução, Linguagem e Alteridade no XII Encontro Nacional da ANPOF, entre os dias 22 e 26 de outubro de 2012.

___________ Para um pensamento úmido – A filosofia a partir de Jacques Derrida. Tese (Doutorado em Filosofia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

potentia

reflete-se sobre ação e não-ação. governo e trabalho. antiguidade e modernidade. discurso. política. rebelião. o escopo visível se limita ao livro de hannah arendt, que não é nada limitador. expande tanto que foi feita uma varredura pelos capítulos, a fim de amadurecer a questão. era inevitável. influências externas invisíveis são da ordem da ação política local (leia-se: rio de janeiro), coletivos de arte-ativismo, atritos internos e externos, porto maravilha, expropriações contemporâneas. por isso, dispersão. os discursos se complementam.

Não devemos procurar esconder a ironia implícita na demora para a confecção de um artigo sobre a ação (o tema se auto-impõe, neste processo). Posto que análise aqui proposta parte de um capítulo do crucial livro de Hannah Arendt intitulado A Condição Humana, ocupemo-nos de definir o que Arendt entende por ação, primeiro:

Agir, em seu sentido mais geral, significa tomar iniciativa, iniciar (como indica a palavra grega archein, “começar”, “conduzir” e, finalmente, “governar”), imprimir movimento a alguma coisa (que é o significado original do termo latino agere). (ARENDT, 2011, p. 221)

E prossegue, ao expor a origem de cada palavra em pormenores, mais adiante:

Como exemplo do que está em jogo nesse particular, podemos lembrar que o grego e o latim, ao contrário das línguas modernas, possuem duas palavras totalmente diferentes, mas correlatas, para designar o verbo “agir”. Aos dois verbos gregos archein (“começar”, “liderar” e, finalmente, “governar”) e prattein (“atravessar”, “realizar” e “acabar”) correspondem aos dois verbos latinos agere (“pôr em movimento”, “liderar”) e gerere (cujo significado original é “conduzir”). Aqui, é como se toda ação estivesse dividida em duas partes: o começo, feito por uma só pessoa, e a realização, à qual muitos se associam para “conduzir”, “acabar”, levar a cabo o empreendimento. Não só as palavras se correlacionam de modo análogo, como a história do seu emprego é também muito semelhante. Em ambos os casos, a palavra que originalmente designava apenas a segunda parte da ação, ou seja, sua realização – prattein e gerere –, passou a ser o termo aceito para designar a ação em geral, enquanto a palavra que designava o começo da ação adquiriu um significado especial, pelo menos na linguagem política. Archein passou a significar, principalmente, “governar” e “liderar”, quando empregada de maneira específica, e agere passou a significar “liderar”, mais do que “pôr em movimento”. (ibid., p. 236-7)

Para Arendt, a ação corresponde à condição humana por excelência, “a única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria” (ibid., p. 8). É somente por meio da ação que a vida humana pode se expressar em toda a sua pluralidade, isto é, através da atividade política, que se dá entre cidadãos iguais perante a lei.

O grande antagonismo que se coloca, diante desse fato, é que onde há autoridade, não pode haver ação. Nos regimes políticos implementados desde a antiguidade, desde a monarquia até a democracia liberal, não raro se verifica esse esvaziamento da política: o poder de agir, nesse caso, é outorgado ao governante ou ao pequeno grupo que governa. Contudo, o que podemos verificar, é a consolidação de toda uma tradição da filosofia política, remontando desde Platão e Aristóteles até Rawls, que se debruça sobre a legitimidade do poder, ou seja, quem merece governar. Desse modo, invariavelmente, a capacidade de cada cidadão de agir é excluída da política, assim como são esvaziadas as iniciativas de discussão sobre as decisões tomadas.

A fim de esclarecer o que é esse agir, lidaremos com o conceito de pólis. Ao contrário do que muitos acreditam, a pólis não é a cidade grega em si, em cuja ágora se configura o espaço de discussão e ação política. A pólis são os cidadãos, não importando o espaço real onde eles estejam. Como diz Arendt, “a pólis não era atenas, e sim os atenienses” (ibid. p. 243).

A rigor, a pólis não é cidade-Estado em sua localização física; é a organização das pessoas tal como ela resulta do agir e falar em conjunto, e o seu verdadeiro espaço situa-se entre as pessoas que vivem juntas com tal propósito, não importa onde estejam. “Onde quer que vás, serás uma pólis”. (p. 248)

Está claro que há diferenças bastante notáveis entre cada regime político. A democracia, “governo de muitos”, acaba por se tornar governo de ninguém – e, mesmo que haja sistema de votos, diferentes instâncias do poder político divididas burocraticamente, ou um parlamento, no caso de alguns países nórdicos, a faculdade de tomar decisões e de agir compete, em última instância, ao(s) governante(s). No caso da tirania, que a autora disseca em outras publicações mais a fundo, os indivíduos encontram-se tão isolados entre si quanto o governante de todos os outros. Neste caso, não há de fato qualquer espaço para a ação.

Esse esvaziamento do espaço da ação através da fuga da ação para o governo ocorre por uma operação que substitui a ação pela fabricação. Para melhor compreender o assunto, recuaremos a uma questão bem estrutural: para que, afinal, existe o governo? Por que a crença dominante ainda defende que precisamos dele? Ora, se considerarmos toda a imprevisibilidade das ações dos indivíduos, e portanto a iminência de perigo que elas podem representar – por inconsequência, ou simplesmente reflexos da condição plural que compartilhamos, da diferença – criam-se leis, que estabelecem postulados éticos do que é ou não aceito na esfera do comum, e um governo, que administra essas leis e promete garantir segurança aos membros de uma comunidade.

O advento do contrato social – não esqueçamos as contribuições de John Locke e seus próximos no que se refere ao estabelecimento da ordem tal como ela se apresenta nos dias de hoje – parte justamente daí, da necessidade de se gerar ordem, como alternativa a estarmos sujeitos à fragilidade dos assuntos humanos. Pois “a solidez e a quietude da ordem” (ibid., p. 277) são ideais almejados desde os tempos de Platão. Na prática, consistem em nada mais que “uma série de tentativas de encontrar fundamentos teóricos e meios práticos de uma completa fuga da política” (ibid.).

E nem devemos superestimar a existência das leis per se, pois, como destaca Arendt,

o legislador era como o construtor dos muros da cidade, alguém cuja obra devia ser executada e terminada antes que a atividade política pudesse começar. Consequentemente, era tratado como qualquer outro artesão ou arquiteto, e podia ser trazido de fora e contratado sem que precisasse ser cidadão (…). Para os gregos, as leis, como os muros ao redor da cidade, não eram um resultado da ação, mas um produto da fabricação. (p. 243)

Ou seja, o legislador, na grécia antiga, era meramente um profissional contratado para prestar um serviço. Como bom homo faber, ele produz uma obra, que possui utilidade técnica para um povo, que irá operacionalizá-la (ou menor, submeter-se a ela – pois quem é responsável por coordenar é o governo). Essa é uma boa imagem para ilustrar a questão que se coloca de modo mais amplo: o que chamamos de “fuga da ação para o governo” ou “a substituição da ação pela fabricação” é precisamente essa operacionalização da função, no caso “legislar”, que é esvaziada de sentido por parte daquele que a executa. Essa transformação da ação em uma modalidade de fabricação implica que pensemos de acordo com as categorias de meios e fins, posto que estas se atêm à perspectiva da instrumentalidade.

Platão, no diálogo O Político, esclarece do que se trata: revisitando os termos gregos archein e prattein, ambos ligados ao conceito de ação, Platão instaura um abismo entre ambos. Lembremos que o termo archein corresponde a “começar”, enquanto que prattein, a “realizar”, e eram vistos, até então, como intimamente conectados. Na prática, isso significa que aquele que “começa”, ou que tem a ideia, não mais é responsável por sua execução. De modo a “garantir que o iniciador permanecesse como senhor absoluto daquilo que começou” (ibid., p. 277), sem que outros intervissem ativamente em sua execução, a solução encontrada foi a utilização de outros na execução de ordens, esvaziando seu papel de agentes. Àquele que iniciou a ação, ou que teve a ideia, caberia portanto governar esses outros, sem precisar em absoluto agir.

O homo faber é, assim, aquele que trabalha com as mãos, hábil, “o fazedor de instrumentos e produtor de coisas” – o homem por excelência da era moderna. A diferença primordial entre “o trabalho de nosso corpo” e “a obra de nossas mãos” consiste no fato de que as atividades nas quais se faz uso do corpo para a execução de tarefas básicas, diretamente ligadas à manutenção da vida humana (atividades agrícolas, domésticas etc.), são consideradas menores. A figura do animal laborans, o trabalhador, remonta aos escravos da antiguidade (embora não se possa assumir que a escravidão esteja, hoje, extinta, infelizmente), cuja função primeira era aliviar seus senhores de cuidar da própria subsistência, para assim poderem se dedicar à vida política (cidadãos eram homens com propriedades e que não trabalhavam).

Uma definição possível para compreender essas diferenciações se encontra em Marx:

Ao contrário da produtividade da obra, que acrescenta novos objetos ao artifício humano, a produtividade da força de trabalho só incidentalmente produz objetos e preocupa-se fundamentalmente com os meios de sua própria reprodução; além disso, como a sua força não se extingue quando sua reprodução já está assegurada, ela pode ser utilizada para a reprodução de mais de um processo vital, mas nunca “produz” outra coisa senão “vida”. (ibid., p. 109)

Mesmo assim, do ponto de vista puramente social, profundamente contemplado por Marx, todo trabalho é “produtivo”, mesmo as atividades que não deixam vestigios, o que automaticamente invalida a distinção anterior. Fortalecendo a confusão, Arendt destaca:

À primeira vista, é surpreendente que a era moderna – tendo invertido todas as tradições, tanto a posição tradicional da ação e da contemplação como a tradicional hierarquia dentro da vita activa, com sua glorificação do trabalho como fonte de todos os valores e sua elevação do animal laborans à posição tradicionalmente ocupada pelo animal rationale – não tenha engendrado uma única teoria que distinguisse claramente entre o animal laborans e o homo faber, entre o “trabalho do nosso corpo e a obra de nossas mãos”. Ao invés disso, encontramos primeiro a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo, e, um pouco mais tarde, a diferenciação entre obra qualificada e não qualificada, e, finalmente, sobrepondo-se a ambas, por ser aparentemente de significação mais fundamental, a divisão de todas as atividades em trabalho manual e intelectual. (ibid., p. 105)

Seja como for, pela própria experiência moderna e o que a sucede, torna-se evidente que a exploração do “trabalho manual” (ou do corpo, misturando as antigas distinções) por parte de governos, governantes, donos, senhores, diretores, coordenadores, chefes – em suma, aqueles que detêm as faculdades intelectuais do processo produtivo, a ideia e o controle sobre os meios de produção, ou do dinheiro – configura o mote principal da sociedade em que vivemos. Marx acreditava que chegaríamos a certo ponto em que o excedente de produção gerado por uma crescente força de trabalho em constante produção faria alcançar um ponto em que o homem se libertaria da necessidade do trabalho, aos poucos. Porém, o que tem se verificado, em um sistema que se reinventa e se revigora a cada vez que os mercados quebram, é um crescente acúmulo de riquezas por parte de uns, graças à força de trabalho de outros que, reduzidos às necessidades básicas da vida, são forçados à condição de trabalhadores de modo a prover sua subsistência. Ainda que a história nos mostre os casos mais emblemáticos de rebeliões e movimentos de trabalhadores, isso implica também, por conseguinte, na maioria das vezes, em um esvaziamento da possiblidade de agir dessas pessoas – que constituem a maioria da sociedade.

Como esclarece Arendt no último capítulo do livro:

A expropriação, o despojamento de certos grupos de seu lugar no mundo e sua nua exposição às exigências da vida, criou tanto o original acúmulo de riqueza como a possibilidade de transformar essa riqueza em capital mediante o trabalho. Tudo isso junto constituiu as condições para o surgimento de uma economia capitalista. Desde o começo, séculos antes da revolução industrial, era evidente que esse desdobramento, iniciado pela expropriação e nutrido por ela, resultaria em um enorme aumento da produtividade humana. A nova classe trabalhadora, que literalmente vivia da mão à boca, estava não só diretamente sob a urgência constrangedora das necessidades da vida, mas, ao mesmo tempo, alienada de qualquer cuidado ou preocupação que não decorresse imediatamente do próprio processo vital. O que foi liberado nos estágios iniciais da primeira classe trabalhadora livre da história foi a energia [force] inerente à “força de trabalho” [labor power], isto é, à mera abundância natural do processo biológico que, como todas as forças naturais – da procriação tanto quanto da atividade do trabalho -, garante un generoso excedente muito além do necessário à reprodução de jovens para contrabalançar os velhos. O que distingue esses desdobramentos do início da era moderna de ocorrências similares do passado é que a expropriação e o acúmulo de riqueza não resultaram simplesmente em novas propriedades nem levaram a uma nova redistribuição de riqueza, mas realimentaram o processo para gerar novas expropriações, maior produtividade e mais apropriação.” (ibid., p. 317-8)

Em decorrência desse sistema nefasto, que é sobretudo dependente da energia do trabalho, os movimentos dos trabalhadores, inicialmente, carregavam um pathos que “tem sua origem em sua luta contra a sociedade como um todo” (ibid., p. 272). Isso é muito potente. Lembremos que um dos termos que deu origem ao que chamamos de “palavra”, atualmente, tem origem no latim, potentia (e dynamis, em grego arcaico). Pois bem. Hannah Arendt nos chama a atenção para o fato supreendente de não ter havido nenhuma rebelião séria de escravos tanto na era antiga quanto na moderna (guardando a diferença de que, na era moderna, os escravos reinvidicavam liberdade e justiça, enquanto que na antiguidade um valor como a liberdade não era entendido como direito universal humano). A partir do momento em que os homens começam a se entender como indivíduos, ao mesmo tempo únicos em sua existência e parte de um coletivo, conseguem diferenciar-se, e, imediatamente, passam a ser dotados de ação e poder de fala. Potentia. O termo nos remete imediatamente à ideia de poder, potência. Logo, ação. Discurso.

A ação só se dá em conjunto, quando os indivíduos se encontram em grupo. A antiga pólis, móvel, e sua função discursiva, emerge, ali, em remetimento. Alguém só se constitui como alguém a partir do olhar do outro, que funciona como espelho. Assim se inicia um diálogo. “Do começo ao fim, o principal objetivo da pólis era fazer do extraordinário uma ocorrência ordinária da vida cotidiana.” (p. 246). O agente se revela no ato, que nada mais é que uma imagem. Independente, apropriável, polifônica, intercambiável, que cria vida própria quando vinda a público.

realismo no cinema segundo gilles deleuze

A “invenção” (…) não deve ser entendida como uma descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apóiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral.
(Michel Foucault)

Em algum momento se disse que caberia à filosofia, ou mesmo ao pensamento como um todo, procurar entender as ideias prontas que nos são fornecidas e encontrar meios de desmontá-las por dentro – tal como se pode fazer com um objeto, por exemplo. A alegoria aqui se apresenta mais no sentido de desmontar os conceitos, como se fossem um brinquedo ou um telefone velho, para poder entender como foram produzidos: os processos pelos quais passaram até se tornarem o que são.

1.1 Ação

“Como a produção e a aparição de algo novo são possíveis?” (DELEUZE, 1983, p. 11), questiona Gilles Deleuze no começo do livro A Imagem-movimento (1983). Poderia também ser: como um sistema fechado e já estabelecido recebe uma ideia nova? Um fenômeno que lhe é estranho? Deleuze então completa: “Sabemos que as coisas e as pessoas são sempre forçadas, obrigadas a se esconder quando começam. Elas surgem num conjunto que não as comportava, e devem pôr em evidência os caracteres comuns que conservam com esse conjunto para não serem rejeitadas.” (ibid.)

O cinema em seus primórdios aparecia como uma novidade; uma descoberta curiosa, um corpo estranho. Mesmo os irmãos Lumière haviam dito que a invenção – fotogramas estáticos projetados em tela grande numa sala escura em tal velocidade que os perceberíamos em movimento – poderia ser somente uma curiosidade a ser explorada durante um certo tempo, para ser então esquecida. Bergson, contemporâneo à invenção do cinema, aborda “o mecanismo cinematográfico do pensamento e a ilusão mecanicista” no quarto capítulo da obra A Evolução Criadora, e, como diz Deleuze, “batiza a fórmula injusta: a ilusão cinematográfica” (ibid., p. 10). O cinema não faria mais que reconstituir o movimento a partir de cortes imóveis, provocando a ilusão de movimento, tal como funciona a nossa própria percepção, ou o modo como conhecemos o mundo: “em vez de nos prendermos ao devir interior das coisas, postamo-nos fora delas para recompor artificialmente seu devir” (BERGSON, 2006, p. 330-331).

Quanto a isso, Deleuze argumenta que, partindo da reprodução da ilusão, o cinema, ao se emancipar do mero e constante mecanismo de projeção e reprodução de uma ilusão e, avançando em seus caminhos, teria conseguido produzir um corte móvel – a imagem-movimento. Para Deleuze, a percepção imediata, ao contrário, produziria apenas cortes imóveis, seleções apreendidas do mundo que é em si mobilidade(1).

O próprio Bergson teria elaborado, no primeiro capítulo de Matéria e Memória, a tese na qual Deleuze se baseia para pensar o cinema. Bergson entende o mundo como um conjunto de imagens. Percebemos o mundo em referência ao nosso corpo, no mundo material, e portanto os objetos todos a nossa volta comportam-se como imagens que a ele se referem. Em sua filosofia, Bergson elimina a oposição entre o mundo físico do movimento e o mundo psicológico da imagem. As imagens não são o duplo das coisas. São as próprias coisas.

Imagens, Deleuze acrescenta, equivalem a movimento(2). Ao cinema faltaria esse centro de referência, e, “a partir deste estado de coisas, justamente porque lhe faltam centro de ancoragem e horizonte, os cortes que opera não o impediriam de remontar o caminho pelo qual desce a percepção natural. Em vez de ir do estado de coisas acentrado à percepção centrada, ele poderia remontar rumo ao estado de coisas acentrado e dele se aproximar” (DELEUZE, ibid., p. 78).

E completa: “todas as coisas, isto é, todas as imagens, se confundem com suas ações e reações: é a variação universal” (ibid.). O processo de apreensão das coisas no mundo, de acordo com Bergson, se daria partindo da percepção (reconhecimento das imagens) -> afecção (reflexo das imagens no corpo) -> ação (exteriorização desse movimento).

Para Deleuze, essa divisão em conceitos serve para identificar a forma que assume a imagem cinematográfica em suas variações possíveis, tendo em vista os elementos que contribuem para sua composição, tais como a temática, o enquadramento, a montagem e a mise-en-scène. O foco pode recair, grosso modo, sobre o que é visto (o plano-sequência, caracterizando a imagem-percepção); expressões de sensações (close-ups e ênfase na face, a imagem-afecção); espaços degenerados (repetição ou entropia acelerada, a imagem-pulsão) ou o foco poderia ser direcionado à duração da ação (plano médio, a imagem-ação).

A imagem-ação pertence ao universo do Realismo. Narrativas históricas e sociais têm lugar em espaços e tempos determinados que participam e atuam sobre o sujeito da ação, que por sua vez deverá reagir. A chamada grande forma da imagem-ação é compreendida pela estrutura SAS’ (situação-ação-situação, em que a ação é capaz de transformar a situação). “A ação é em si própria um duelo de forças, uma série de duelos: duelo com o meio, com os outros, consigo mesmo” (ibid., p. 179), afirma Deleuze. É a saga do herói que irá colidir com a Ambiência ou o Englobante(3) à sua volta, ou com indivíduos, ou situações, e aceitará o desafio. Ao longo do percurso, ele poderá recuar, sofrer e passar por diversas provações, desde que, ao final da jornada, a situação se modifique. Nela se incluem o herói, o meio e os indivíduos à sua volta.

A diferença principal colocada por Deleuze entre a grande e a pequena forma reside essencialmente em qual dos dois elementos centrais, a ação ou a situação, irá orientar os movimentos da outra: no caso da pequena forma, ao contrário do ambiente atuar como meio que culmina na ação, para enfim modificá-la4, cada pequeno movimento ou gesto revela aos poucos a situação. É um cinema concentrado mais nos detalhes do cenário, na indumentária, nos objetos e nas reações dos corpos que nos grandes feitos, mas que, ainda assim, possui uma estrutura fechada, em que ações modificam situações. A forma, representada pelo esquema ASA’, possui uma imagem indicial5, atuando primeiro por falta (a ação inicial revela indiretamente a situação) e depois por distância (“uma diferença muito pequena na ação ou entre duas ações induz uma distância muito grande entre duas situações”(6)).

Os movimentos da imagem-ação, segundo os modos de operação da pequena forma, são apresentados portanto como elipses (que opera por ausência). Diferentemente desses, a imagem-ação da grande forma atua por espirais (que gira em torno de um centro). dentre as quais se distinguem dois signos: o synsigno(7), que corresponde a “um conjunto de qualidades-potências enquanto atualizadas num meio, num estado de coisas ou num espaço-tempo determinados” (ibid., p. 179-180), e o binômio, no qual uma força aparece em contraposição à outra, em duelo. A realização da imagem-ação então se dá tanto por disfarces, ostentações, armadilhas – em que os gestos se direcionam ao outro – quanto pelo próprio embate, em especial quando as forças opostas aparecem em um mesmo quadro.(8)

Há uma série de gêneros que podem ser identificados com a imagem-ação. Enquanto a pequena forma é mais afim ao burlesco, à comédia de costumes e ao filme de época(9), a grande forma tem a sua manifestação por excelência no grande filme histórico. Ainda assim, ela é capaz de comportar uma variedade bem razoável de gêneros: o documentário, o western, o filme psicossocial; além do fantástico, o extraordinário, o heróico e, não sem destaque, o melodrama. O que é fundamental é que a estrutura, própria do realismo, seja mantida. Isto é, “meios e comportamentos; meios que atualizam e comportamentos que encarnam. A imagem-ação é a relação entre os dois, e todas as variedades dessa relação” (ibid., p. 178).

No centro do espiral da grande forma está o Englobante. Ali, o meio atua como representação orgânica, capaz de reunir tudo e todos a sua volta em um mesmo organismo que respira. Os cenários dos filmes western, bem como seu enredo, são a melhor maneira de tornar isso visível: as extensas paisagens em que céu e terra ganham destaque, além das festas coletivas, exibem um mundo que varia, que se contrai e se expande. O herói participa desse mundo e aparece como representante da comunidade. Como tal, ao fim do trajeto deverá, através de suas ações, igualar-se ao meio, reestabelecendo assim a ordem.

Sobretudo nos filmes de John Ford, aponta Deleuze, a mera compreensão dessa ordem restaurada como cíclica não daria conta de antever os seus meios. É antes uma ordem espiral, em que S não equivale a S’, mas, ao contrário o que ocorre é uma harmonia conquistada sob muito custo, um avanço – a manifestação de um sonho. Torna-se evidente, então, uma ética embutida na imagem, expondo a trajetória de um personagem sob o ponto de vista moral de um povo que visa conquistas e desbravamentos. As injustiças deverão ser combatidas, o sonho deve ser revigorado e os inimigos e traidores eliminados. A imagem tem uma missão, que é fazer o público sonhar junto aos personagens.

Em 1915 G.W. Griffith lançava Nascimento de uma Nação(10), ainda na fase do cinema mudo. O filme, dentre outros méritos históricos e controvérsias políticas que lhe são atribuídos, tornou-se referência na narração do chamado sonho americano. Deleuze afirma que a Ford interessava antes de tudo que a comunidade (estadunidense) pudesse “ter certas ilusões a respeito de si mesma” (ibid., p. 185-186). Essas “ilusões” fazem parte de um conjunto de crenças que chegariam, até hoje, a aparecer em muitos filmes de Hollywood. Vieram a constituir uma forma própria – a imagem-ação –, tal que o mesmo filme fundamental fosse filmado e refilmado inúmeras vezes, e cuja matriz, de certo modo, reside na narrativa dirigida por Griffith.

Não é à toa que Deleuze estabelece uma comparação direta entre o cinema clássico-narrativo americano da grande forma e as concepções históricas apreendidas por Nietzsche. A afinidade se dá pela simples razão de que, grosso modo, todos os gêneros ficcionais clássicos americanos apresentariam em maior ou menor grau uma série de valores característicos de uma narrativa histórica. O sonho americano é compreendido dentro de um Englobante, que abarca as mudanças das sociedades e as carrega em direção a um fim comum, lhes conferindo sentido e legitimidade. É a história dos vencedores, na qual as minorias se fundem e chefes são eleitos para defender o sonho e atingir aquilo que acreditam lhes ser predestinado.

O mesmo tipo de raciocínio se manifesta no cinema soviético, e este consiste na crença na finalidade de uma história universal. A diferença reside em que, se os russos articulavam dialeticamente essa representação orgânica – donde surge Eisenstein, com suas teorias seminais para a montagem cinematográfica –, para os estadunidenses “ela é, sozinha, toda a história, a linhagem germinal na qual cada nação civilizada se destaca como um organismo, cada uma prefigurando a América” (ibid., p. 186). O movimento de superação de obstáculos para a fundação de uma nação-civilização traz também ecos das narrativas bíblicas, transpostas para o cinema em inúmeras variações e formas que iriam narrar, em essência, a mesma história. As civilizações decadentes são vistas como organismos doentes, cujos males o futuro deverá se encarregar de sanar e encontrar os modos de vencer.

É a história monumental. Ela pressupõe que “os grandes momentos da humanidade se comunicam pelo ápice” (ibid., p. 187) e se orientam segundo normas comuns. Colecionam efeitos sem causas precisas, mas se dispõem a identificar, paralela e dualisticamente, personas representativas que se repetem, tais como ricos e pobres, o homem justo e o traidor etc.(11) Caberá, pois, à história antiquária, compor com detalhes e ornamentos os grandiosos eventos da história monumental, seja ampliando seus duelos em grandes batalhas, seja na reconstituição de objetos da intimidade e do cotidiano dos sujeitos.

Nesse ambiente, aparecem cores referenciais em tecidos de época e máquinas, por serem estas últimas símbolos representativos fundamentais à emergência ou ao fim de civilizações. A história crítica, renomeada por Deleuze como ética, soma-se às duas anteriores como dispositivo moral encarregado de denunciar os males que acometeram os episódios do passado. Essa ética estará a serviço da retomada do sonho, sucessivamente, de modo que a América seja sempre redescoberta.

1.2 Variação

“Mas pode uma crise da imagem-ação ser apresentada como algo novo? Não foi este o estado constante do cinema?” (ibid., p. 252), ecoa a pergunta novamente, desta vez no último capítulo do livro. Deleuze relaciona a crise da imagem-ação ao contexto global do pós-guerra. Esta estrutura, bem como a indústria do cinema nos moldes em que vinha se mantendo, teria entrado em declínio juntamente à “guerra e seus desdobramentos, a vacilação do ‘sonho americano’ sob todos os seus aspectos, a nova consciência das minorias, a ascensão e a inflação das imagens tanto no mundo exterior como na mente das pessoas” e “a influência sobre o cinema dos novos modos de narrativa experimentados pela literatura” (ibid., p. 253).

A consciência política emergida no pós-2ª Guerra desencadeou uma série de transformações em várias áreas da produção de conhecimento. Os efeitos das guerras seriam sentidos aos poucos, e cada país teria que lidar aos seus modos com um contexto político reconfigurado. As mudanças trazidas com a nova ordem política serviriam então como orientação para os interesses de cada nação, ainda que, de modo geral, juntamente à reconstrução das cidades e à mudança de estratégias políticas, se mostrasse também necessária uma renovação no campo das artes. O contexto alterado provocava uma demanda por novas formas de lidar com os sonhos, as ideias e sobretudo os ideais que apareceriam revestidos por formas estéticas em salas de cinema, livros ou exposições.

Uma nova forma de fazer cinema que emergia, então, diante desse ambiente, se propunha a contemplar a realidade dispersiva e os acontecimentos imprevistos, procurando orquestrar uma simultaneidade de memórias e situações em uma totalidade aberta. As formas tradicionais do cinema clássico-narrativo estadunidense, isto é, SAS’ e ASA’, não perderiam, no entanto, seu forte apelo frente ao público, como forma consolidada de se contar estórias e histórias. Não à toa, até hoje os grandes sucessos comerciais em geral seguem a estrutura da imagem-ação. Mas o que se verifica, a partir da Segunda Guerra, é uma guinada significativa rumo ao desconhecido, a uma reinvenção da forma a partir de uma ideia mínima, em um mundo em que as estruturas antes tão sólidas apareciam em ruínas.

Hitchcock havia, anteriormente, trazido uma série de inovações para o cinema. Mas o que sua imagem-mental (ou imagem-relação), nas palavras de Deleuze, fazia, de fato, era questionar a natureza das formas já existentes – percepção, afecção, ação –, compondo um cinema profundamente rico, mas que ainda assim não seria capaz de subverter por completo os paradigmas da imagem-movimento. A mudança efetiva, diante do contexto do pós-guerra, se daria primeiramente na Itália, seguida da França e da Alemanha. Os novos rumos também seriam verificados mais tarde no cinema que se fazia nos EUA fora de Hollywood, bem como no cinema novo e no cinema marginal brasileiros. A conjuntura global se modificava, e com ela os modos de produção de subjetividade.

“Não acreditamos mais que uma situação global possa dar lugar a uma ação capaz de modificá-la. Também não acreditamos que uma ação possa forçar uma situação a se desvendar, mesmo parcialmente. Desmoronam as ilusões mais ‘sadias’” (DELEUZE, 1983, p. 253). O trecho explicita o paralelo direto estabelecido entre os vínculos sensório-motores na imagem – que corrrespondem aos “encadeamentos situação-ação, ação-reação, excitação-resposta” (ibid.) típicos da imagem-ação – e a situação das crenças políticas que havia então sofrido sérios abalos. O realismo não poderia mais dar conta da representação das ideias nesse momento reconfigurado, que possibilitava que novos modelos e novos formatos fossem postos em prática, de maneira experimental.

“A situação não se prolonga diretamente na ação: não é mais sensório-motora, como no realismo, mas, antes, ótica e sonora, investida pelos sentidos, antes de a ação se formar, utilizar e afrontar seus elementos” (DELEUZE, 1985, p. 13). O neo-realismo italiano e, em seguida, a nouvelle vague francesa, são movimentos nos quais essas mudanças tiveram seus ecos mais evidentes. A definição do primeiro já diz: “Em vez de representar um real já decifrado, o neo-realismo visava um real, sempre ambíguo, a ser decifrado; por isso o plano-sequência tendia a substituir a montagem das representações” (ibid., p. 9). No entanto, no que esses cinemas abandonavam os ideais de perfeição cíclica do mundo e as grandes utopias da modernidade, abraçavam para si questões políticas urgentes, mesmo que em seus filmes não fossem apresentar quaisquer soluções fáceis a respeito.

No cinema feito hoje, as linguagens adotadas ainda bebem muito em cineastas como Godard, Truffaut, Rosselini e De Sica, associados à nouvelle vague e ao neo-realismo italiano (e mesmo Godard continua a reinventar sua forma de fazer filmes e dialogar com o mundo). A eles, soma-se um sem número de novos referentes que vieram a apresentar seus repertórios estéticos, de maneira tão plural que a eles Deleuze teria que se dedicar quase que caso a caso.

O cinema moderno já começa a sofrer mutações consideráveis quando se fala em unidades específicas de pensamento, ou normas estéticas comuns. Da fragmentação e do afrouxamento dos vínculos sensório-motores rumo a imagens puramente ópticas ou sonoras, uma narrativa descontínua – se comparada ao cinema clássico-narrativo – e livre tanto para tender para o exagero quanto para adotar estruturas mais mínimas, assume em algum ponto uma curva possível na trajetória. Não há regras definidas a serem prescritas. Somente movimentos ondulatórios rumo ao desconhecido, cujo futuro é construído constantemente a partir de colagens, invenções e ressignificações desse passado que se consolida como repertório disponível, em uma linguagem sempre em movimento.

Notas

(1) “O modelo seria antes um estado de coisas que não pararia de mudar, uma matéria fluente onde nenhum ponto de ancoragem ou centro de referência seriam imputáveis. A partir desse estado de coisas, seria necessário mostrar como podem se formar centros em pontos quaisquer, que imporiam vistas fixas instantâneas.” (DELEUZE, ibid., p. 78)

(2) Deleuze em citação a Bergson: “A verdade é que os movimentos são muito claros como imagens, e que não cabe procurar no movimento outra coisa além do que nele se vê”.

(3) Deleuze define a Ambiência ou o Englobante, em A Imagem-movimento: “Aqui, a qualidade principal da imagem é o sopro, a respiração. É ela que não só inspira o herói, mas também reúne as coisas em um todo da representação orgânica, contraindo-se e dilatando-se segundo as circunstâncias.” (DELEUZE, 1983, p. 166)

(4) Existe ainda, na grande forma, dois modos variantes: SAS, em que o meio se apresenta como inabalável, só restando aos sujeitos da ação resistirem a esse meio, e SAS”, em que o sujeito passa por um processo de degradação decorrente do meio à sua volta, caracterizando uma patologia desse último.

(5) Deleuze se refere à semiótica pierciana quando fala em índices e signos.

(6) Ibid., p. 202, grifo do autor.

(7) Em apropriação ao termo “sinsigno”, de Pierce, Deleuze esclaresce que o uso do prefixo “syn” insiste não sobre a individualidade de um estado de coisas, como indicaria “sin”, mas justamente sobre as várias qualidades ou potências a serem atualizadas. O prefixo “syn” vem do grego remete à ideia de reunião espaço-temporal.

(8) Daí a identificação com o plano médio, também chamado de plano americano devido ao enquadramento que possibilita que o revólver do homens entre em quadro – como é o caso do western.

(9) Mas não somente. Ela irá comportar, também, o western, o documentário e outros, desde que sua estrutura narrativa seja respeitada, tal como ocorre na grande forma. Os gêneros, assim como as formas narativas, podem oscilar e variar caso a caso, comportar mais de uma estrutura e assim por diante. Para que isso seja apreendido, somente a análise de obras específicas pode evocar as referências precisas.

(10) The Birth of a Nation, no original.

(11) Eisenstein, em análise da montagem paralela feita para ilustrar tais representações, irá criticar essa lacuna deixada pelos efeitos expostos sem causa localizada. Apropriando-se ao mesmo tempo de visões dialéticas e monistas, irá em busca das “verdadeiras” causas, apoiando-se na teoria da luta de classes e em versões reconciliatórias da história no cinema.

 

Referências

BERGSON, Henri. A Evolução Criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 2006.

DELEUZE, Gilles. A Imagem-movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

DELEUZE, Gilles. A Imagem-tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

NIETZSCHE, Friedrich. Untimely meditations. Cambridge: University Press, 1997.

dan deacon e outros experimentalismos contemporâneos

parte 3/3 de artigo apresentado no encontro de música e mídia: e(st)éticas do som, na usp, em 2009

2/3 1/3

Um devaneio eletrizante que perpassa diversas esferas do ambiente sonoro, atravessa camadas auditivas as mais amplas, gera imagens multicoloridas de uma festa infantil de outro mundo e revela, entremeada, uma calma débil aliada a uma alegria intensa. A música de Dan Deacon, artista norte-americano fixado em Baltimore, EUA e com dois discos lançados oficialmente – mais alguns distribuídos em CD-R e disponíveis em seu website – converte boa parte do universo pop midiático que habita a hiperestimulada vida urbana em canções que são viagens alucinantes sobre a mais palpável das realidades sonoras. E, imerso em uma oscilação entre o som quieto macio de ouvir à mais acelerada saturação de barulhos cacofônicos impensáveis, consegue extrair uma beleza extrema do conjunto.

Ao vivo, ao menos na turnê de Spiderman of the Rings, ele se misturava com o público ao tocar seus diversos brinquedos, teclados e traquitanas eletrônicas. Bromst, seu mais recente álbum, traz como elementos novos a companhia de uma banda de 15 músicos, para a performance que até então se resumia ao artista solo, e juntamente com isso algumas sonoridades orgânicas que se misturam aos samples, barulhos eletrônicos os mais variados, teclados e vocoders. Deacon diz em entrevistas que neste álbum os sons são metade orgânicos, metade eletrônicos, e que os primeiros se manifestam mais evidentemente no uso de três baterias simultâneas (!).

Com formação musical erudita e eletroacústica, Deacon torna-se aos poucos conhecido por elevar aos últimos níveis de intensidade, criativamente, sons reconhecíveis na experiência urbana, tais como os oriundos de ambientes midiáticos, como desenhos animados; barulhos de brinquedos e ruídos saturados, em excesso, se aproximando de bandas atribuídas ao gênero noise, como Fuck Buttons ou MoHa!, mas de forma muito mais divertida, mais associável ao Passion Pit, em alterações vocais agudas e alegria festiva. Deacon também faz uso de frequentes alterações no tempo das músicas, provocando quem ouve tanto de forma instigante quanto desafiadora para a interpretação do corpo para os ritmos (que em última instância seria a dança, mas que por vezes mesmo um mero tamborilar dos dedos se torna inevitável).

Talvez o artista mais conhecido na música eletrônica recente, por alterar os tempos das músicas e jogar com batidas e ruídos, não raro em excesso, seja Aphex Twin. Suas batidas mais nervosas – aquelas que mantêm estabelecida o tempo todo uma ligação oscilante com o drum’n’bass – são verdadeiros desafios sonoros, playground para os ouvidos mais abertos. E, mesmo em seus discos ambient, mais calmos, a marca se verifica, em faixas talvez inclassificáveis (apesar do nome que carregam), ou, também, podendo ser adotadas pelo estranho rótulo de IDM (intelligent dance music – não seria então do que falamos aqui todo o tempo?).

Murray Schafer observa que o que mais se ouve à época em que escreveu The Soundscape, em fins dos anos 70, é a música de épocas anteriores, menos acelerada, que se contraporia ao chamado future shock. Ora, Deacon é identificado precisamente com esse gênero, hoje relacionado também a outras bandas e artistas de Baltimore. E, se por um lado ainda se ouve maciçamente músicas de tempos passados, vide a eternamente imutável programação das rádios e as observações de Hans Ulrich Gumbrecht ao falar no “presente em constante expansão”, artistas que apontam mudanças e ressignificações a partir da manipulação de sons existentes confirmam cada vez mais a coexistência possível de sons e modos de ouvir que podem parecer extremamente díspares, mas que de fato estão em perfeita consonância. Não só histórico-temporal, que seria inevitável, mas também por estarem todas essas formas musicais vivas agora, no presente, em diálogo com o que entra em sai das janelas das residências e demais estabelecimentos do meio urbano.

Com um ar irresistível de céu branco de outono, Daedelus, com um pé no dubstep e outro na IDM, traz reminiscências de músicas de pista de outras épocas e faz uso constante de samples. Seu trabalho é um passeio sonoro por rádios e cidades, música pop e boates. Eventualmente ouvem-se vocais, que podem tanto ilustrar discotecas dos anos 50 ou dos dias atuais, mas também ser conversas entreouvidas em alguma esquina ou no interior de uma casa de família. Caracteristicamente, ele se distingue por incorporar diferentes espaços, tanto ao assimilar sons quanto no ato de levar sua performance para o topo de um edifício, interferindo nos sons da paisagem urbana; interfaces, como o uso de monomes, além do laptop, para manipular os sons ao vivo, e formas de fazer, em incursões por práticas como o circuit bending, que são intervenções em instrumentos eletrônicos, muitos infantis, levando-os a produzir sons inusitados e não previstos, mas que de alguma forma sempre estiveram ali enquanto possibilidades.

Com suas músicas cria ambientes oscilantes. Os ouvintes deixa frequentemente desconcertados, ora por chamar à dança, ora por adentrar mais profundamente espaços de experimentações, aos quais só cabe ouvir e se deixar levar pelas vibrações tão particulares. No último disco, Love to Make Music to, 2008, algo parece ter sido perdido, talvez por incorporar nele as cinco faixas que já estavam no brilhante EP Fair Weather Friends, de 2007, e este, conciso e preciso, parece bastar-se lindamente, mais ainda se posto no modo repeat.

Guillermo Scott Herren, se em seus primeiros discos ainda pisava firme no terreno do hip-hop, ao longo da carreira foi elevando os pés pelos ares e desmontando vagarosamente, não sem ritmo, uma a uma as suas referências. Produtor musical de múltiplos projetos e cujo principal é o Prefuse 73, também se identifica com as práticas conhecidas como experimentais e que fazem uso constante de colagens. Ele tem uma forma muito própria de misturar sons – muitos deles orgânicos – e beats eletrônicos em camadas marcadas pela imprevisibilidade, de um modo que lembra artistas como Four Tet e alguns outros daqueles rotulados como folktronica, mas que em muito (e há muito) transbordam as barreiras de qualquer gênero. É música oriunda diretamente da experiência multiatenta de quem caminha pela cidade capturando fragmentos de músicas e vozes embaladas pelo soar dos carros e pelo silêncio que emerge para além da parede sonora que esses e outros ruídos formam.

Em todos os casos citados neste artigo, trata-se de música que vem dos espaços (multimidiáticos; urbanos) e vai para os espaços: Dan Deacon no meio da multidão, Daedelus em locações inusitadas tais como o topo de um edifício. Se no trabalho de Deacon se observa uma intensa saturação de sons que convocam à memória de outros ambientes e outros usos, tais como desenhos animados, Daedelus e Prefuse 73 levam os breakbeats e seus desdobramentos às últimas consequências, utilizando instrumentos e interfaces pouco convencionais e envolvendo-se em frequentes parcerias com outros músicos, o que é comum entre os artistas de música eletrônica.

Seria talvez abominável afirmar, partindo da postura muito clara** que assume Murray Schafer, que tais peças sonoras possam ter seu referente no ambiente urbano de modo tão próximo, e ainda assim soarem bonitas. Mais ainda, há faixas do Prefuse 73 (qualquer uma das canções de Sleeping on Saturday and Sunday Afternoons, de 2003) ou do Four Tet (“You Were There With Me”, de Everything Ecstatic, 2005) que remetem à calma mitológica atribuída às paisagens idílicas dos campos rurais. Em versão contemporânea e de inspiração onírica, pode-se dizer.

O projeto sonoro que Murray Schafer lidera desde fins dos anos 60 e início dos 70 até hoje, primeiramente intitulado World Soundscape Project e posteriormente reestruturado como World Forum for Acoustic Ecology, a partir de 1993, pretende promover uma espécie de ecologia dos ambientes sonoros. Ele carrega consigo por um lado potência e importância muito grandes face às tendências do mercado e possíveis deslizes contemporâneos, no que diz respeito ao sons que se ouve nas grandes metrópoles. Os ambientes estão cada vez mais contaminados pela Musak, assim como por imagens igualmente descartáveis e abundantes, que primam pelo excesso de estímulos e sobra pouco ou nenhum silêncio.

Ora, acerca disso, diria John Cage que o silêncio hoje, na maior parte dos lugares, é o próprio som do tráfego dos carros. Porque se tais práticas eram novidade nos primórdios da modernidade e da sucessiva substituição dos meios de transporte por máquinas ruidosas***, ou com o advento do rádio, ou ainda com o boom tecnológico pós-II Guerra, os jovens de hoje já nasceram imersos neste ambiente. E então diria-se que aparelhos eletrônicos em geral, assim como imagens e sons que atravessam a experiência urbana já estão de alguma forma assimilados nos ouvidos dessa geração, mas ainda assim o argumento não seria suficiente para justificar. Pois se há décadas que a música eletrônica existe, e há muito mais tempo estão presentes no cotidiano os ruídos que foram um dia inspiração para a musique concrète, Stockhausen ou John Cage, clamar por um certo retorno idílico às origens, a uma audição com poucas interferências e ao silêncio dos terrenos rurais soa de fato um tanto ingênuo. E sequer é isso que está em questão aqui: estando uma vez assimilada a experiência urbana tal como ela se apresenta hoje, quais sons e diferentes percepções auditivas se pode extrair dela? O que esse mix de referências pode trazer para as turntables, laptops, monomes e headphones, combinados e justapostos às mais criativas variações de instrumentos musicais, enriquecendo a própria experiência auditiva de seus ouvintes?

Sons quietos podem surgir, também. Algumas variações de silêncio já foram evocadas, assim como diferentes níveis de saturação sonora, engenhosamente trabalhados e saturados de referências pop. O projeto de Murray Schafer possui sim um trunfo, que é chamar a atenção justamente para o que se ouve em função dos ouvidos humanos, que já há algum tempo vêm deixando de ser o parâmetro medidor de limites em função de alternativas mais lucrativas ou com roupagem mais modernosa. Pensar a experiência urbana como interessante e enriquecedora para os ouvidos, ainda que lidando com suas díspares variações (em intensidade, ritmo, tom ou qualquer outro aspecto), permite afinal aliar tanto uma recepção calorosa às criativas manifestações contemporâneas no campo da música, ou de eventos musicais em espaços entre pessoas, quanto uma atenção devida (e sem ela, que é contexto, ficaria difícil imaginar como seria o trabalho de alguns artistas recentes) aos espaços sonoros habitados por pessoas, que buscam sim alguma espécie de clariaudiência, mas que ao mesmo tempo articulam o repertório recebido e o processam de múltiplas maneiras.

** “Parece que a paisagem sonora do mundo atingiu um ápice de vulgaridade no nosso tempo, e muitos especialistas previram uma surdez universal como a última consequência caso o problema não possa ser rapidamente controlado.” (MURRAY SCHAFER, 1977:3).

*** Ver SINGER in: CHARNEY e R. SCHWARTZ, Vanessa, 2004:102.

Referências:

Barthelmes, Barbara. 2002.“Music and the city”. In: BRAUN, Hans-Joachim (org.). Music and technology in the twentieth century. Baltimore and London: John Hopkins University Press, 97-105.

Gardnier, Ruy. 2009. “Dan Deacon – Bromst (2009; Carpark, EUA)”. Camarilha dos Quatro.

Gumbrecht, Hans Ulrich. 1998. Modernização dos Sentidos. São Paulo: Editora 34.

LaBelle, Brandon. 2006. Background Noise: perspectives on sound art. New York: Continuum.

Schafer, R. Murray. 1994 (1977). The Soundscape: Our Sonic Environment and the tuning of the world. Vermont: Rochester.

Singer, Ben. 2004. “Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular”. In: CHARNEY, Leo e R. SCHWARTZ, Vanessa (org.). O Cinema e a Invenção da Vida Moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 95-123.

Taylor, Timothy. 2001. Strange Sounds: Music, Technology and Culture. New York: Routledge.

Thebérge, Paul. 1997. Any Sound You Can Imagine: Making Music/Consuming Technology. Hanover and London: Wesleyan University Press.

da relação do som com a tecnologia e a vida urbana

parte 2/3 de artigo apresentado no encontro de música e mídia: e(st)éticas do som, na usp, em 2009

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Barbara Barthelmes, em “Music and the City”, fala sobre as maneiras como os sons apreendidos na experiência da cidade ecoam e influenciam peças artísticas. Nesse âmbito, ela cita desde os pintores futuristas do começo do século XX, tais como Marinetti, Boccioni (“Street noise enters the house”, 1911) e Russolo, que falava da rua como microcosmo da cidade, até músicos como Charpentier, Delius e Edward Elgar, que tinham a cidade como objeto de comtemplação (contraposto aos pintores impressionistas, que miravam as paisagens da natureza). Entretanto, pode-se dizer que as contribuições musicais que lidam com as paisagens sonoras urbanas das cidades têm em seu favor um aspecto temporal, uma que vez que a música ocupa, mais que o espaço, o tempo, podendo expressar as variações de eventos ao longo de seu curso. Aqui cabe falar sobretudo em intensidade, mas também em fluxo, densidade. E, de alguma forma, as possibilidades abertas pela reprodutibilidade técnica dos sons acabam por ocupar o eixo central que tornou possíveis tantas experimentações.

Na verdade, não foram só as mídias que vieram possibilitar a reprodutibilidade, transmissão e gravação dos sons. A própria manipulação dos ruídos apreendidos através de sintetizadores e posteriormente das tecnologias eletrônicas transformaram substancialmente a forma como som e música seriam ouvidos, interpretados e apreendidos nas décadas seguintes. Os anos 80 do século passado foram cruciais para que isso se consolidasse, e não é à toa que explodiram tantas bandas que faziam fusão entre rock e ritmos eletrônicos, remetendo diretamente a “Psyché Rock” de Pierre Henry, e na década seguinte ocorreu a grande explosão das raves e da cultura da música eletrônica como um todo.

Paul Théberge argumenta que “a ideia de ‘som’ aparenta ser um conceito contemporâneo que dificilmente poderia ter sido mantido em uma era que não possuísse meios eletrônicos de reprodução” (THÉBERGE, 1997:191). Taylor já apontava para o agenciamento humano em face da tecnologia como questão central, uma vez que era precisamente esse o ponto da discussão e crítica que se fazia sobre a musique concrète. “Novamente”, Théberge continua algumas páginas adiante,

a existência prévia do efeito sonoro é um fator crucial; esses efeitos são ‘descobertos’ quase por acidente, tanto quanto criados pelo usuário individual. Decisões feitas por times de engenheiros nos estágios preliminares do design de um dispositivo de processamento podem portanto ter um impacto profundo não só na competência em se fazer uso desse dispositivo, mas também nas práticas e conceitos musicais/composicionais. (THÉBERGE, 1991:199-200)

A prática da colagem de sons, a partir do uso de samples se tornou comum, assim, em bandas que emergiram a partir dos anos 80, e mais frequentemente em gêneros direcionados às pistas, além do hip-hop. Hoje, apesar da constante batalha pelo acesso a músicas ou trechos de músicas que se trava na internet, para que o alto custo dos direitos autorais não comprometa a viabilidade das produções, mais do que nunca essa estética de apropriação e ressignificação faz sentido não só no campo da música, mas das artes como um todo.

A estética do som é inevitavelmente relacionada ao espaço que ela ocupa, seja em relação ao ambiente multirreferencial externo, seja em relação a espaços fechados. E, na era da reprodutibilidade técnica e mashups, as palavras de R. Murray Schafer no livro The Soundscape: Our Sonic Environment and the tuning of the world sobre espaços acústicos e seu tempo cabem:

A forma e o tamanho dos espaços interiores irão sempre controlar o andamento das atividades dentro deles. Novamente, isso pode ser ilustrado em referência à música. A velocidade de modulação das igrejas góticas ou da renascença é lenta; a dos séculos XIX e XX é muito mais rápida porque ela foi criada para salas menores e estúdios de transmissão. (…) O prédio comercial contemporâneo, que também consiste em pequenos e secos espaços, é similar ao frenesi do trabalho moderno, e assim contrasta vividamente com a temporalidade lenta da missa ou de qualquer ritual pensado para uma caverna ou cripta. Mais uma vez, os efeitos atenuados da música recente parecem sugerir um desejo de desaceleração do ritmo das coisas, exatamente como as músicas de Stravinsky e Webern uma vez prenunciaram a prática empresarial moderna. (MURRAY SCHAFER, 1977:219)

Ou seja, como afirma Murray Schafer em outro trecho, o papel da arquitetura é crucial tanto como elemento que interfere na percepção sonora, e em geral ela é pensada levando em conta esse aspecto. Isso pode ser feito na direção de aproveitar as vantagens que os espaços podem oferecer em termos de apreciação estética, criando experiências realmente belas dentro de catedrais ou mesmo edifícios, mas também pode pretender simplesmente suprimir os ruídos dos ambientes externo e interno e preenchê-los com formas sonoras menos edificantes para os ouvidos. E essa última tem sido a tendência contemporânea. Diz ele:

A arquitetura, assim com a escultura, está na fronteira entre os espaços de visão e som. Dentro e em volta de um edifício existem certos lugares que funcionam como pontos de ação tanto visuais quanto acústicos. (…) Em um mundo quieto, a acústica de edifícios floresceu como uma arte de invenção sônica. Em um mundo barulhento ela se transforma meramente na habilidade de silenciar ruídos internos e isolar incursões do turbulento ambiente além-muros. (MURRAY SCHAFER, 1977:222)

Ainda tendo em vista o espaço, Barthelmes carrega em seu texto uma boa contribuição de dois sociólogos, Hans-Peter Meier-Dallach e Hanna Meier, que falam da cidade como organismo social:

Eles começam com a hipótese de que sons e a paisagem sonora urbana funcionam como signos e se referem a uma relação específica entre as pessoas e o espaço urbano no qual elas vivem. “O som da cidade contém imagens do espaço social e seus ritmos, de acordo com os quais se move a sociedade”. (MEIER-DALLACH e MEIER, 1992:416, apud BARTHELMES, in: BRAUN, 2002:97)

E as sociedades contemporâneas empregam frequentemente a ressignificação das heranças culturais deixadas pelas décadas passadas, as quais comprometem as paisagens sonoras das cidades tanto quanto seus hábitos. Some-se a isso os ruídos provocados pelos carros e demais máquinas, acidental ou intencionalmente, que reverberam nos projetos arquitetônicos os mais diversos e ressoam nos ouvidos dos seus habitantes, somados aos sons de televisões e outros dispositivos midiáticos, e tem-se um vasto repertório de sons com que trabalhar. Melhor dizendo, cada vez mais eles são menos dissociáveis da vida enquanto experiência situada em tempo e espaços.

da relação entre som e espaço e o contexto do pós-guerra

parte 1/3 de artigo apresentado no encontro de música e mídia: e(st)éticas do som, na usp, em 2009

2/3 3/3

Fragmentado ou contínuo, dentro ou fora e em diferentes tonalidades, o som reverbera nos espaços cotidianamente. E a relação do espaço com o som é diferente da que este estabelece com as imagens, que estão na outra margem mais evidente dos meios perceptivos. São, efetivamente, meios tanto de percepção quanto de criação, e, portanto, os sons que são absorvidos ao longo da vida nas cidades contribuem para caracterizar aquilo que se chama experiência urbana, junto com outros aspectos que irão compor.

Brandon LaBelle, em Background Noise, diz que, diferentemente da imagem, “o som está sempre em mais de um lugar”. (LABELLE, 2006:x). E completa:

O som, deste modo, age com e através do espaço: navega geograficamente, reverbera acusticamente e estrutura socialmente; o som amplifica os silêncios, contorce, distorce e atinge a arquitetura; escapa salas, faz paredes vibrarem, perturba conversas; ele expande e contrai o espaço acumulando reverberações, reposicionando o espaço para além dele mesmo, carregando-o em sua onda, e habitando sempre mais de um lugar; ele desloca; como os alto-falantes de um carro explodindo em música alta, o som ultrapassa barreiras. Ele é ilimitado por um lado, e site-specific por outro. (LABELLE, 2006:xi)

Este trecho faz lembrar uma entrevista dada por Stockhausen em 1972, na qual ele fala sobre a possibilidade de apreensão dos sons que ouvimos no ambiente e da transformação deles através de alterações no seu tempo, comprimindo-os ou expandindo-os; enfim, pode-se manipular os sons apreendidos na cidade e nos espaços e ressignificá-los, organizando-os e tornando-os composições.

Alguns artistas têm de fato feito experimentações nesse sentido, e, dentre esses, são sempre muito lembrados Pierre Schaeffer e Pierre Henry da musique concrète francesa, que desde o fim dos anos 40, mas mais enfaticamente a partir das décadas de 50 e 60 do século XX, vêm produzindo peças sonoras que desafiam limites do que até então se conhecia por música, incorporando a ela diversos sons apreendidos do ambiente. O contexto do pós-II Guerra mundial favoreceu experimentações nesse sentido, porque, com o boom tecnológico que adentrava a vida das pessoas, surgiram também novidades como sintetizadores e novas técnicas de gravação e reprodução, como as fitas magnéticas. A música eletrônica dava então seus primeiros passos, sendo Henry, que fazia uso de loops e samples e suas obras, posteriormente reconhecido por DJs e produtores de techno, drum’n’bass e outros gêneros como seu precursor em muitos sentidos.

As composições de musique concrète foram das primeiras a incluir ruídos diversos capturados no ambiente, misturados a barulhos, vozes e instrumentos musicais dispostos em estruturas que exploravam, dentre outras variações, a espacialização das peças sonoras, como se verifica em “Symphonie pour un Homme Seul”, de 1951, de Schaeffer e Henry.

Pierre Schaeffer, diferentemente de Henry, não seguiu produzindo música depois da dissolução do movimento conhecido por musique concrète, cujo manifesto aponta para a observação de cada som em sua particularidade. Através do distanciamento desse som de seu contexto original, o artista poderia rearranjá-lo e reordená-lo de modo a torná-lo composição. Ainda assim, críticos* da musique concrète apontavam como ponto fraco desta o fato de não alterarem significativamente a natureza dos sons, questionando assim até que ponto os músicos teriam real controle de suas obras. De qualquer modo, ficou claro, como aponta Timothy Taylor em “Post-war Music and the Technoscientific Imaginary” (de Strange Sounds, 2001) que a Schaeffer interessava mais os experimentalismos em música e sonoridades, influenciando em grande parte o que hoje é chamado de sound art, enquanto que Henry nunca perdeu de vista os potenciais do som enquanto forma de linguagem e comunicação, mais que de prática artística.

John Cage, outro importante artista a se destacar no pós-guerra, pesquisou amplamente formas de audição, ruído e composição; atuou junto ao movimento Fluxus nos anos 60 e expandiu suas práticas para os dominíos da escrita – crítica ou poética – e para as artes visuais e happenings, junto a outros artistas tais como Allan Kaprow. O que interessava a ele era procurar no ambiente, enquanto espaço auditivo, uma estrutura musical não-intencional. Contexto e audiência, portanto, desempenham papéis determinantes em seu trabalho, pois, ao interferirem no ambiente, transformam-se em material de composição.

Ao comparar os artistas da musique concrète a Cage, LaBelle diz que

A diferença entre o objeto material de Cage e o objeto sonoro de Schaeffer é uma diferença de contexto e procedimento: para Cage, o mundo em si paira dentro e por trás do trabalho musical, como uma presença material e espaço de liberdade individual, no qual a vida comum toma forma; em contraste, para Schaeffer o objeto sonoro em si oferece o potencial de realização de uma experiência musical alterada e esclarecida, determinada por uma paleta expandida de detalhes sonoros exposta através de manipulações eletrônicas. (LABELLE, 2006:32-33)

A conhecida obra 4’33”, de Cage, é talvez o mais interessante exemplo para ilustrar como, em seu modo de perceber, os ruídos do ambiente interferem e constituem verdadeiramente a composição. E, coerentemente, LaBelle completa dizendo que o movimento Fluxus, de uma certa maneira, é sobre percepção. Mais ainda, ele argumenta que tanto a estética musical, relacionada à musique concrète, quanto a observação das sonoridades do ambiente, de Cage, são conceitos possíveis de se complementar. Em ambos pode-se notar interpretações e modos de lidar com os sons encontrados no mundo. Assim sendo, em última instância, todas essas interferências, seja no caso do acoustic design, instalações sonoras ou quaisquer obras que pensam a relação do espaço com o som, todas elas necessariamente irão se relacionar com a arquitetura, essa que permeia o espaço urbano.

* Taylor cita especificamente Pierre Boulez, músico francês contemporâneo a eles e ainda vivo, além de artistas da Elektronische Musik alemã, que compunham canções puramente eletrônicas a partir de sons sintetizados.

ludologia e narratologia: teorias de jogos eletrônicos

por inês nin, julho de 2008

 

Em busca de teorias que fossem capazes de interpretar os jogos eletrônicos – forma midiática que emergia com a computação –, foi criado o campo acadêmico chamado game studies, ou estudo de jogos. Os textos mais antigos datam de 1997 e são de Janet H. Murray (Hamlet no Holodeck – O Futuro da Narrativa no Ciberespaço) e Espen J. Aarseth (Cybertext – Perspectives on Ergotic Literature). Ambos fazem uso do prefixo cyber, cunhado por Norbert Wiener em Cibernética (1948) e O Uso Humano dos Seres Humanos (1950), sendo o primeiro um livro de enfoque mais técnico e o segundo uma obra sobre a interação entre humanos e máquinas como forma de comunicação.

No momento presente, pouco mais de dez anos após as primeiras publicações no campo, sites na internet se multiplicaram acerca dos estudos; novos termos e abordagens foram trazidos para o campo; novos teóricos surgiram propondo debates e os games em si foram complexificados e aperfeiçoados. Dentro do campo crescente dos game studies, autores como Gonzalo Frasca e Jesper Juul surgiram inaugurando o que eles próprios chamam de ludologia (do inglês ludology), que em si se diferencia da abordagem feita da chamada (pelos ludologistas) de narratologia (narratology). Eles partem da teoria de Aarseth, que fala do cibertexto e da literatura egórdica – que necessita de um esforço maior que um simples virar a página de um livro para ser lida (apesar dos termos). Dela destacam em especial a passagem “To claim there is no difference between games and narratives is to ignore essential qualities of both categories” (AARSETH, 1997), de Cybertext, para ir em direção contrária à perspectiva “narratologista” de Murray e outros como Henry Jenkins.

Frasca foi quem “inaugurou” o que seria esta nova disciplina especificamente criada para estudar os jogos – eletrônicos ou não, ainda que tenha ênfase nestes – em um artigo de 1999 entitulado “Ludology Meets Narratology: Similitude and differences between (video)games and narrative.” O termo ludology, de fato, não foi cunhado por ele, e nem é novo, mas tem sido usado há algum tempo por jogadores de jogos não-eletrônicos. Ludus, em si, vem do grego e denota aspectos relativos a jogo. Na teoria ludológica ele vem assumir um significado mais específico.

Partindo das categorias criadas por Roger Caillois, Frasca estabelece a distinção entre ludus e paidia (em português, ludo e paideia) como formas diferentes de jogo. Esta necessidade é explicitada pela confusão potencialmente encontrada com as palavras “play” (em inglês, que tem duplo significado e pode ser tanto verbo quanto substantivo) e as respectivas em outras línguas, que só encontram um significado (em português poderíamos encontrar a distinção entre “jogo” e “brincadeira”, ou jogar/brincar). De acordo com a ludologia, essencialmente, ludo seria o jogo com regras, e paideia, sem regras.

A paideia aqui remete àquela brincadeira de crianças bem pequenas que não tem hora para acabar e cujas regras mudam de acordo com o gosto da criança. O ludo seria o jogo de adultos, como o xadrez, que tem objetivo definido, estratégia e regras bem demarcadas. O jogo do tipo ludo é o que mais se aproxima da concepção de jogos eletrônicos abordada pelos “narratologistas”. Ele traz em si os três atos apontados pela teoria estética de Aristóteles (ver Poética) e que se verificam mais tipicamente nas narrativas hollywoodianas.

Seriam correspondentes aos jogos eletrônicos de aventura. Murray encara os jogos de computador como novas formas de criar histórias, ou narrativas, considerando a constante escolha por caminhos que se tem que fazer nos jogos como direções tomadas por uma narrativa multi-linear. Os jogos especificamente analisados por ela são os MUDs (Multi-User Dungeons), precursores dos atuais MMORPGs (Massive Multi-player Online Role Playing Games), como Zork e Myst.

É de fato inegável a semelhança de tais jogos às narrativas cinematográficas, por exemplo, e diversos estudos têm sido feitos a respeito disso, apontando semelhanças e diferenças. Sem dúvida a principal diferença é que no caso do jogo eletrônico o interator (que interage com o texto; um nome para a forma de leitura descrita por Murray em meio digital) tem a possibilidade de “incorporar” o personagem e interagir ativamente com a história – que está então sendo construída.

Acerca disso, Frasca argumenta que pessoas reais não agem como personagens, especialmente se lembrarmos da forma tradicional deles e presente nas narrativas (dotadas de estrutura clássica). Personagens em geral são baseados em arquétipos, tipos, enquanto pessoais reais são seres muito mais complexos que esta forma simplificada criada para a literatura e peças teatrais.

As diferenças entre as concepções teóricas são muitas, enfim. Podemos estabelecer aqui as linhas gerais: os auto-intitulados ludologistas acreditam que o que há de principal em um jogo são as regras, que é o que os distingüe das formas narrativas e os próprios jogos entre si. O enfoque deles é no aspecto da simulação, argumentando que os jogos são antes baseados nisso que em narrativas (mas não excluem a possibilidade de existir jogos narrativos), cuja base está no comportamento (do software do jogo), que vai permitir ou não determinadas ações. Atentam ainda para o aspecto ideológico dos jogos, tanto em seu aspecto mais explícito (como nos chamados advergames – jogos que servem para promoções publicitárias) quanto implícito, que estaria presente em todos os jogos a partir de seus conjunto de regras: eles permitem determinada ação ou não.

Os chamados narratologistas, por eles próprios assumidos apenas como formalistas, como Murray, enfatizam os aspectos dos jogos que são comuns às narrativas, ou à criação de histórias: início, desenvolvimento e fim – vencedor ou perdedor. Segundo Murray, “um jogo é um tipo de narração abstrata que se parece com o universo da experiência cotidiana, mas condensa esta última a fim de aumentar o interesse.” (MURRAY, 1997). A partir daí ela cunha os conceitos que seriam específicos do caso dos jogos eletrônicos, como interator (no lugar do leitor; é um leitor que interage com a obra); imersão (pois a experiência de jogar se assemelha ao estar mergulhado em um ambiente totalmente novo); agência (em oposição a autoria, o interator agencia os elementos de um jogo) e transformação (a partir da agência do interator ele pode transformar aquela obra para os caminhos que deseja – desde que o jogo permita).

O “debate” entre estes dois enfoques dos game studies é só mais ou menos declarado, tendo os ludologistas surgido posteriormente para clamar uma distinção dos demais e chamando a atenção para a necessidade de uma disciplina que abordasse somente jogos. Murray os acusa de fazer uso de uma perspectiva a-histórica, negando a relação existente que se estabelece historicamente entre os diferentes meios e tecnologias da comunicação (indo em direção contrária, os ludologistas, do que afirmam Bolter e Grusin, quando falam do conceito de remediação – de fato, a dupla é enquadrada no campo dos narratologistas). Mas ao mesmo tempo diz encontrar alguns avanços no campo da ludologia, e clama por uma mútua cooperação (e não uma oposição). Resta ver os caminhos pelos quais a questão irá trafegar.

tempo e tecnologias: um estudo da temporalidade na era da técnica

por inês nin, janeiro de 2008

 

O tempo (aion) é uma criança que brinca jogando dados:
governo de criança.

Heráclito de Éfeso

Haven’t you seen
the signs of the time?

Lali Puna

 

Introdução

Os gregos possuem cinco palavras pra designar o tempo. São elas: cronos, o tempo medida do movimento, a dimensão do tempo mensurável; kronos ou chronos, o tempo crônico não mensurável, da repetição; kaïros, o tempo ligado à medicina, limitado, oportuno, preciso; nun, o tempo do agora extenso, simultâneo, de dimensão que ultrapassa limites espaciais e aion, o tempo desprendido do movimento, que inclui todas as outras modalidades; ele agarra o princípio que permite a fluência de tudo. Estas cinco concepções de temporalidade gregas não existem por acaso: é possível encarar o tempo de diversas formas e lidar com ele de variadas maneiras, especialmente quando consideramos que cada época, momento ou atividade possui, necessariamente, uma temporalidade à qual este é associado.

Um outro conceito sempre intrinsecamente associado ao tempo é a noção de espaço, pois o tempo se desloca no espaço e ambos fazem parte de um conjunto que compreende os fatores os quais seriam essenciais para explicar muito do que se relaciona à vida humana, suas ações e criações.

A clássica fórmula matemática utilizada para o cálculo da aceleração a equivale em seu quadrado à divisão do deslocamento (espaço) sobre a variação temporal. Entretanto, o que a contemporaneidade sugere é uma aceleração imensurada, talvez imensurável; o avanço da técnica e das tecnologias, hoje digitais, desde a industrialização e o estabelecimento de uma economia capitalista inauguraram novas formas de se relacionar com o tempo e, conseqüentemente, com o espaço.

Com o advento da informática e, posteriormente, da internet, as distâncias efetivamente foram encurtadas pela possibilidade de transferência virtual de dados, informações, produtos culturais e mesmo relações afetivas. E esta inovação tecnológica, de abrangência cultural, política, econômica e social sem precedentes traz diversas implicações e mudanças na vida humana e nas suas concepções sobre a vida e seus aspectos cotidianos.

Torna-se necessário considerar a dimensão política desses avanços tecnológicos, bem como suas implicações estéticas relacionadas também às mídias que os precederam, uma vez que toda inovação se insere dentro de um contexto que abarca determinadas relações de poder e formas de mediações para com seus habitantes. Não se pode pensar um tempo sem relacioná-lo a seus predecessores, e o mesmo vale para as formas midiáticas.

É possível perceber-se em conformidade com alguma forma de temporalidade, ou medida temporal, como por exemplo quando escutamos uma canção, que possui uma duração determinada, ou quando nos confrontamos com prazos pré-estabelecidos para a entrega de um trabalho. A marcação temporal é algo que não é possível de escapar da vida cotidiana. No entanto, essa imensa estrutura na qual nos encontramos inseridos é resultado de pura criação humana, na busca por uma organização da vida em sociedade.

Gilles Deleuze, ao analisar as idéias de Bergson, em especial no que se refere ao livro Matéria e Memória, faz uso de conceitos como imagem-tempocronosignos, enquanto Paul Virilio aborda o que chama de cronopolítica. As imagens a que Deleuze se refere participam diretamente do contexto político descrito por Virilio: a produção artística em épocas de reprodutibilidade técnica, seja no âmbito do cinema, do audiovisual como um todo ou nos meios digitais possui uma ordem que lhe é própria, uma estrutura de difusão e insersão/relação com a vida cotidiana muito particular.

O que procuro esclarecer é que, embora devamos reconhecer que esses autores tratam de objetos sensivelmente distintos, todos eles se referem genericamente ao mesmo objeto, e sem dúvida alguma ao mesmo recorte temporal, que é o momento contemporâneo. Estabelecendo paralelos entre o acirramento do capitalismo industrial e reconhecendo as estruturas inauguradas no momento de sua implementação, nosso foco são as análises das diferentes concepções possíveis no tempo, em específico aquelas que dizem respeito ao contexto presente: o tempo real.

Em se tratando de terminologias, Sibilia fala em tecnologias digitais; Deleuze em imagem-cristal e em arte industrial; Virilio em tecnologias do tempo real e em tempo-máquina; Lévy em informática. Explicitaremos a seguir quais são estas abordagens e como poderemos relacioná-las.

A única subjetividade é o tempo

Deleuze fala da percepção das imagens projetadas na tela do cinema da mesma forma como da vida humana. Utiliza filmes para explicar um conceito de temporalidade que parte de Bergson, e afirma que a única subjetividade é o tempo. De fato, o tempo está inscrito em toda e qualquer ação que façamos e assim é na arte, assim é na tela. A imagem que imprime a sensação de movimento, este oriundo de dentro ou de fora da tela, tem por princípio uma estrutura de tempo intrínseca a ela mesma, uma velocidade necessária para a sua movimentação e uma subjetividade a ser explicitada/alcançada através desses mecanismos.

Ele diz que somos interiores ao tempo, e não o inverso: nascemos dentro do cristal do tempo e devemos sair dele; ou, misturando a vida ao cinema, ela deve sair dele (o cristal do tempo) depois de ensaiada. O recurso da imagem-cristal é utilizado para explicar a temporalidade própria da imagem, ou o tempo em sua dimensão mais ampla, que conteria ele mesmo dentro de si nós mesmos, não enquanto vida, pois ela lhe escapa, mas a morte, que a antecede.

O cristal é complexo e possui diversas facetas, formas de manifestação e uma formação constante. Ele compreende dentro de si o tempo presente que nunca permanece enquanto tal, mas está sempre oscilando entre passado e futuro; a condição presente é a única constante. E essa ideia em muito se assemelha ao conceito de tempo real.

A imagem-cristal é composta por cristais de tempo, ou por espelhos enviesados. Isto porque um cristal perfeito, finalizado, seria a representação de um estado ideal:

Suponhamos um estado ideal que fosse um cristal perfeito, acabado. (…) Suas facetas são espelhos enviesados (…), e os espelhos não se contentam em refletir a imagem atual, eles constituem o prisma, a lente onde a imagem desdobrada não pára de correr atrás de si mesma para se encontrar. (DELEUZE, 1990, P. 104)

Deleuze completa dizendo que não há cristal acabado, “todo cristal é, em direito, infinito, está se fazendo.” (DELEUZE, 1990, p. 110).

Segundo ele,  o tempo é a coexistência de todos os níveis de duração. Relacionando o cineasta Fellini a Bergson, diz que “somos ao mesmo tempo a infância, a velhice, a maturidade” (DELEUZE, 1992, p. 64). As obras de Fellini, em especial as citadas 8 ½, A Cidade das Mulheres e O Estado das Coisas tratariam destes temas, lidando com desde o lúdico da infância até a memória, a velhice.

Ainda partindo de Bergson, para Deleuze o tempo é aberto e está em constante mutação: trata-se do tempo não-cronológico, como a concepção grega identificada com os termos kronos ou chronos, o tempo da repetição:

O que constitui a imagem-cristal é a operação mais fundamental do tempo: já que o passado não se constitui depois do presente que ele foi, mas ao mesmo tempo, é preciso que o tempo se desdobre a cada instante em presente e passado, que por natureza diferem um do outro, ou, o que dá no mesmo, desdobre o presente em duas direções heterogêneas, uma se lançando em direção ao futuro e a outra caindo no passado. (…) A imagem-cristal não é o tempo, mas vemos o tempo no cristal. Vemos a perpétua fundação do tempo, o tempo não-cronológico dentro do cristal, Cronos e não Chronos. (DELEUZE, 1990, P. 102)

O dinheiro é tempo

O filme é movimento, mas o filme dentro do filme é o dinheiro, é o tempo.

Gilles Deleuze

A partir da afirmação de que “a arte industrial não é a reprodução mecânica, mas a relação, que se interiorizou com o dinheiro.” (DELEUZE, 1990, p. 97), Deleuze abre espaço para a discussão acerca da relação estabelecida pelo capitalismo industrial com o tempo. A máxima burguesa “tempo é dinheiro” consta inclusive na Constituição dos EUA, segundo afirma Paula Sibilia, e chega a penetrar no âmbito da arte, tornando as obras produtos e a criatividade, mercadoria, ou força de trabalho que se vende como todas as demais.

Sibilia fala do “longo processo de virtualização do dinheiro” (SIBILIA, 2002, p. 26), que, ainda que não seja de forma alguma exclusividade das moedas correntes, é parte considerável do processo maior que é o do acirramento do capitalismo e seus mecanismos de controle. Citando Michel Foucault em Vigiar e Punir, Sibilia fala do capital financeiro se sobrepondo ao produtivo, “impondo a circulação de fluxos ao redor do planeta em uma tendência generalizada de abstração e virtualização dos valores” (SIBILIA, 2002, p. 25) e estabelecendo uma crescente utilização de bens como serviços.

De maneira simples e direta, Deleuze cita L’Herbier para afirmar que

com o espaço e o tempo se tornando cada vez mais caros no mundo moderno, a arte teve de se fazer ‘arte industrial internacional’, quer dizer, cinema, para comprar espaço e tempo enquanto ‘títulos imaginários do capital humano’. (…) Bresson mostra que, o dinheiro, por ser da ordem do tempo, torna impossível qualquer reparação do mal, qualquer equivalência ou retribuição justa. (DELEUZE, 1990, pp. 98-99, grifo meu)

O tempo movido a dinheiro implica em velocidade, em otimização máxima do tempo, como diz um jornalista da revista Scientific American, em uma edição especial sobre o tempo: “a era tecnológica tornou-se um jogo em que todos querem sempre estar à frente”. O que não é de maneira alguma novidade, mas se impõe enquanto meio e finalidade na sociedade contemporânea que não se subestime o tempo, que se aceite as suas partições, os seus limites e imposições; em resumo, o capitalismo industrial da contemporaneidade exige que se lide com o tempo e suas imposições as mais obscuras e entranhadas na vida cotidiana de forma a manter o estrito controle das vidas humanas, e sugue até a última gota de sangue daqueles inseridos no mercado.

O preço de se estar sempre “à frente”, “atualizado”, “moderno” e bem-sucedido é participar da sociedade da forma como ela impõe a si mesma, infestada de limites, regras e relógios com o tempo sendo cronometrado.

Citando Rifkin, Paula afirma que “‘a propriedade é uma instituição lenta demais para se ajustar à nova velocidade da nossa cultura’, pois ela se baseia na ideia de que possuir um ativo físico em um período extenso de tempo é algo valioso; no entanto, ‘em um mundo de produção customizada, de inovação e atualizações contínuas e de ciclos de vida de produto cada vez mais breves, tudo se torna quase imediatamente desatualizado’”. (SIBILIA, 2002, p. 27, grifos meus)

Divisões do tempo

Quase sempre quando aparece uma matéria jornalística na televisão sobre a questão do tempo, seja sobre calendários, colecionadores, idosos ou datas festivas, ela costuma ser ilustrada pela imagem de um relógio. O “tic-tac” é símbolo quase onipresente ao se falar de tempo, e ele representa apenas uma faceta do mesmo, que é a do tempo mensurável, cronos, dividido em números. O relógio é uma invenção antiga do homem, que foi sendo aprimorado e assimilado pela forma como a sociedade se estrutura, podendo ser visto com o cerne de toda a ordem vigente.

Paula Sibilia diz que “tal enquadrinhamento do tempo não ocorreu sem violência: os organismos humanos tiveram que sofrer uma série de operações para se adaptarem aos novos compassos” (SIBILIA, 2002, p. 24). Segundo Foucault, foram estabelecidos inúmeros “mecanismos que faziam funcionar a sociedade industrial a um ritmo sempre cronometrado por infinitos relógios, cada vez mais precisos na incansável tarefa de pautar o tempo dos homens” (SIBILIA, 2002, p. 25).

Esses mecanismos, estabelecidos pelos próprios homens para si mesmos, fizeram entranhar na sociedade valores mensuráveis e medidos a todo momento – em dinheiro –, ideias bizarras como a ‘perda de tempo’, virtudes como a pontualidade e formas de controle baseadas em valores exatos e atitudes padronizadas – assim como se pretendem ser todos os produtos.

Entretanto, com o avanço do tempo e a transferência gradual das estruturas disciplinares da sociedade capitalista para as típicas da sociedade de controle (DELEUZE, 1992, a partir de William Burroughs), diz-se que o tempo foi perdendo os seus interstícios, o que pode ser facilmente ilustrado pelos relógios digitais, que não mais apresentam as frações menores dos valores de medição do tempo. Indo ainda mais longe, Sibilia afirma que

A função do relógio foi completamente internalizada, com uma proliferação de modelos nos lares do mundo inteiro, nos prédios e nas ruas das cidades, e inclusive embutidos nos pulsos das pessoas e nos artefatos de uso cotidiano. (SIBILIA, 2002, p. 30)

Essa internalização dos mecanismos de controle, representados pelo relógio, é característica básica para definir a sociedade de controle. Acerca do tema da temporalidade, Deleuze coloca que

Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador universal. (DELEUZE, 1992, pp. 221-222, grifo meu)

Esse contexto inaugura uma complexidade muito maior nas formas de controle, que, como diz Deleuze, “possui anéis de uma serpente” (DELEUZE, 1992, pp. 226) que são ainda mais complicados que seus antecessores.

O autopoliciamento generalizado, inaugurado pelas estratégias de biopoder (aquele que tem como foco a vida humana), encontra nas tecnologias digitais o principal meio de impor a sua força. “A tecnologia adquire uma importância fundamental, passando das leis mecânicas e analógicas para as informáticas e digitais” (SIBILIA, 2002, p. 28, grifos da autora). E estas geralmente se apresentam revestidas de uma roupagem amigável, sendo vendidas como inovações tecnológicas ou gadgets que visam a facilitar a vida humana, mas não raro, condicioná-la e vigiá-la.

As tecnologias do tempo real

Paul Virilio inicia seu livro O Espaço Crítico e as Perspectivas do Tempo Real falando do espaço da cidade, das relações dos homens com este espaço e suas dimensões crítica e política. Termina por falar do tempo real e da supressão do espaço físico por meio das tecnologias digitais. Trocando em miúdos, Virilio defende que as dimensões naturais do espaço teriam sido poluídas pelas tecnologias do tempo real.

As dimensões às quais ele se refere são orgânicas, e as mesmas subvertidas e encurtadas em tempo de trajeto com a revolução dos transportes, hoje já anciã, e que tornou possíveis muitas viagens, tanto de mercadorias quanto de pessoas, em curtos espaços de tempo.

Em se tratando deste controverso ponto de vista sobre as inovações tecnológicas, não se deve deixar de lado nenhuma ótica possível: se de um lado inúmeras transações, profissões, viagens e relacionamentos foram tornados possíveis graças ao advento dos transportes – sejam eles mediados por terra, ar ou água –, por outro novas relações com a distância – logo, com o espaço e com o tempo – foram estabelecidas e as antigas, rebaixadas para a memória coletiva.

O que é importante ter em mente é que estabelecer uma dimensão crítica para com a situação presente – e nela as tecnologias digitais e seus avanços cada vez mais ganham destaque – torna-se necessário, e disso faz parte analisar os prós e os contras das inovações, ou ao menos especular sobre eles.

Distante, muito distante dos textos sobre tecnologias da comunicação que exaltam as maravilhas das inovações que surgem a cada dia, Virilio fala com extrema cautela e mesmo exaltação em movimento contrário das tecnologias do tempo real, como ele as chama, e as quais, indo muito mais longe que os transportes um dia inauguraram, propõem e possibilitam um anulamento das distâncias físicas e do espaço do lugar de encontro, em virtude do espaço virtual. Ele afirma que

É o fim do mundo ‘exterior’, o mundo inteiro torna-se subitamente endótico, um fim que implica tanto o esquecimento da exterioridade espacial quanto da exterioridade temporal (now-future) em benefício único do instante ‘presente’, deste instante real das telecomunicações instantâneas. (VIRILIO, 1993, p. 107, grifos do autor)

Considerando-se a data de publicação da obra (1993), nos anos 90 a informática ainda engatinhava, se comparada aos terabites de memória real já existentes hoje e a velocidade com que as informação caminha graças à internet. No entanto, em 1993 já existia internet, certo que não com a mesma abrangência, e as transmissões de mídias de áudio e vídeo começavam a serem feitas.

Virilio utiliza-se do prefixo “tele” para compor as palavras que ele relaciona a essas tecnologias do tempo real, que assumiriam sua expressão máxima com a internet e suas possibilidades de comunicação à distância através de variadas mídias. À época, a televisão parecia ainda representar a melhor metáfora.

Ao falar do impacto do tempo-máquina sobre o ambiente, em comparação aos outros impactos considerados poluidores do espaço físico, Virilio encontra sua maior hipérbole, mas para a qual ele mesmo conclui uma possível solução:

Apesar da ausência de intervalo devida à inexistência do espaço real do encontro, a interface do signo nulo das ondas eletromagnéticas que permite a telecomunicação impede a confusão habitual do aqui e agora, uma vez que a instantaneidade da interatividade não elimina jamais a distinção entre o ato e o agir à distância. (VIRILIO, 1993, p. 104)

Pierre Lévy, em Tecnologias da Inteligência, faz um estudo das diferentes linguagens e técnicas utilizadas pelo homem para enfim chegar à informática. No livro ele estabelece o que seriam os três pólos do espírito, ou os três momentos distintos de formas de comunicação, que não se localizam temporalmente; eles se misturam em cada instante e lugar, mas com intensidade variável.

Estabelecendo uma ponte com as idéias de Virilio, Lévy diz que

Por analogia com o tempo circular da oralidade primária e o tempo linear das sociedades históricas, poderíamos falar de uma espécie de implosão cronológica(1), de um tempo pontual instaurado pelas redes de informática. (LÉVY, 1997, p. 115, grifo do autor)

O tempo da oralidade primária é(2) circular, marcado pela imediatez e pela idéia de reversibilidade; “como o espaço, era concreto, definido por e relacionado com acontecimentos, colorido pelas emoções e carregado de significado simbólico.” (SZAMOSI, 1986, p. 69). Ele completa:

Essa visão circular e periódica do tempo, com suas raízes na mecânica do sistema solar e com suas manifestações nos ciclos dia-noite e sazonais, era um modelo simbólico soberbamente útil. (…) O tempo circular era também reversível (…) O tempo repetitivo torna até tolerável a idéia de morte pela promessa de renascimento (SZAMOSI, 1986, p. 70).

O tempo linear das sociedades históricas, que é o da escrita, é relacionado ao conceito de inscrição no tempo (cronológico); a memória encontra-se semi-objetivada na escrita, existindo uma identificação parcial entre indivíduo e saber que possibilita uma leitura crítica, sendo regido pela noção de verdade. No tempo da informática, da comunicação digital, “as mensagens escritas (…) são cada vez menos concebidas para durar” (LÉVY, 1997, p. 121).

Na era da informática, ou das tecnologias digitais, a palavra-chave é velocidade, o perigo, paradoxalmente, é a inércia (como os engarrafamentos), de acordo com Paul Virilio. Diante deste ambiente, a simulação se apresenta como uma experiência possível e mais rica sensorialmente do que suas antecessoras, ainda que a memória torne-se subitamente um conceito subjetivo e questionável (quanto à sua permanência – é o tempo da imediatez e não se sabe até onde vai a confiabilidade das mídias de fibra ótica).

O presente se sobrepõe às outras temporalidades e é marcado por pontos, ao invés de círculos (oralidade) ou linhas (escrita). Lévy conclui, acerca da simulação e da condição do tempo real dizendo que

A simulação, portanto, não remete a qualquer pretensa irrealidade do saber ou da relação com o mundo, mas antes a um aumento dos poderes da imaginação e da intuição. Da mesma forma, o tempo real talvez anuncie o fim da história, mas não o fim dos tempos, nem a anulação do devir. Em vez de uma catástrofe cultural, poderíamos ler nele um retorno ao kaïros dos sofistas. O conhecimento por simulação e a interconexão em tempo real valorizam o momento oportuno, a situação, as circunstâncias relativas, por oposição ao sentido molar da história ou à verdade fora do tempo e espaço, que talvez fossem apenas efeitos da escrita. (LÉVY, 1997, pp. 125-126)

Este trecho estabelece uma perspectiva lúcida e crítica sobre o problema do tempo real e as suas propriedades em relação às outras formas de comunicação que antecederam a informática. Como iremos lidar com elas, com as tecnologias digitais e sua imediatez, somadas a outras faces que elas podem vir a assumir, é algo a ser tido ainda como incerto, dado o caráter de novidade que ainda as circunda.

Nada é certo no tempo presente, porque se o agora já era capaz de se desdobrar em muitos, na dita era digital essas possibilidades se multiplicam, ao menos as possibilidades de comunicação se multiplicam e a velocidade se impõe como natural. Ainda assim, mesmo que o tempo se prolongue, multiplique ou apresente novos problemas, existe um algo que o coloca mais ou menos dentro de uma estrutura abstrata. Citando Deleuze (1990, p. 123), “o que o passado é para o tempo, o sentido é para a linguagem, e a ideia para o pensamento.”

 

Notas

(1) Da ordem de chronos ou kronos.

(2) Ainda que ele se relacione mais intimamente com um momento da história anterior à escrita, é presente ainda hoje em algumas sociedades ou perdura misturado aos outros.

 

Referências

DELEUZE, Gilles. A Imagem-tempo. (1990). São Paulo: Editora Brasiliense.

DELEUZE, Gilles. Conversações. (1992). São Paulo: Editora 34.

LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência – O Futuro do Pensamento na Era da Informática. (1997). São Paulo: Editora 34.

Scientific American Brasil. Edição Especial Paradoxos do Tempo (2007). São Paulo: Ediouro.

SIBILIA, Paula. O Homem Pós-Orgânico – Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. (2002). Rio de Janeiro: Relume Dumará.

SZAMOSI, Géza. Tempo & Espaço – dimensões gêmeas. (1986). Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

VIRILIO, Paul. O Espaço Crítico e as Perspectivas do Tempo Real. (1993). São Paulo: Editora 34.