derrida e o labirinto do livro: primeira volta

por inês nin, março de 2013

 

“Estranha a serenidade de tal retorno. Desesperada pela repetição e contudo alegre por afirmar o abismo, por habitar o labirinto como poeta, por escrever o buraco, ‘o destino do livro‘ no qual só nos podemos enfiar, que devemos guardar ao destruí-lo. Afirmação dançante e cruel de uma economia desesperada. A habitação é pouco acolhedora por seduzir, como o livro, num labirinto. O labirinto é aqui um abismo: penetramos na horizontalidade de uma pura superfície, representando-se a si própria de meandro em meandro.”

(Jacques Derrida, A Escritura e a Diferença)

 

De um lado a linguagem ordenada e dura das intituições, da teoria que se pretende firme, e, de outro, uma possibilidade de “abertura” à vastidão do mundo, o qual adquire sentido somente quando este lhe é atribuído (um movimento posterior, portanto, que exige em si algum esforço em sua execução). Como diz Derrida, em A Escritura e a Diferença:

Aqui ou ali, discernimos a escritura: uma partilha sem simetria desenhava de um lado o fechamento do livro, do outro a abertura do texto. De um lado a enciclopédia teológica e segundo o seu modelo, o livro do homem. Do outro, uma rêde de traços marcando o desaparecimento de um Deus extenuado ou de um homem eliminado. A questão da escritura só se podia iniciar com o livro fechado. A alegre errância do graphein era então impossível. A abertura ao texto era a aventura, o gasto sem reserva. (DERRIDA, 1971, p. 73)

Não cabe, nessa leitura, qualquer vontade de plenitude, de “dar conta de”, de apreender um conceito. Os “quase-conceitos” de Jacques Derrida podem funcionar, em um primeiro momento, como tentativa ou porta de acesso a um texto que tanto rodeia, se perde em labirintos, evoca funções que lhe fogem à palavra, à presentificação de sentido que de alguma forma procuramos. Busca que de vez em vez retorna, talvez por vício de leitura, de linguagem, mas também por vontade de compreensão, de apreender de um sentido que insiste em escapar a todo momento (e, talvez, justamente por isso, se mostre mais maduro, seguro de suas incertezas).

E contudo não sabíamos nós que o fechamento do livro não era um limite entre outros? Que é apenas no livro, voltando constantemente a êle, tirando dêle todos os recursos, que nos seria necessário indefinidamente designar a escritura de além-livro? (ibid., p. 74)

“Eu perguntava a você por onde começar e você me encerrou em um labirinto”(1), protesta Henri Ronse ao entrevistar Derrida. Não se pode encarar uma obra sua como primeira, situada linear e claramente em algum ponto de um percurso trilhado, pois os caminhos são vários, e se permutam, se deixam corromper.

O retorno que em forma elíptica tende a um retorno ao texto, à origem que não é primeira, mas já é ela repetição em si. Uma espécie de paixão pela origem faz a escritura, “uma origem pela qual nada começou”. Dela só se encontra rasto, mas “não é ausência em lugar da presença”, pois ela nunca esteve presente. “Longe de se deixar oprimir ou envolver no volume, esta repetição é a primeira escritura”(2). Repetir é mistificar, criar a linha na qual se desdobra o pensamento, portanto leitura de algo que o antecede.

Se a linha é mistificação, o livro é o labirinto. “É infinita a hesitação entre a escritura como descentramento e a escritura como afirmação do jôgo.” (ibid., pp. 77-78). Descentramento porque não é possível formar um centro, completar o círculo, centralizar. A cada retorno a linha se modifica, é repetição e no entanto já não é a mesma. Esse lapso, intervalo impossível de captar, é em si variação. A repetição produz diferença. “O outro está no mesmo”(3), diz Derrida.

Encontrar o centro não seria a morte do texto? O centro seria o apaziguamento da escritura, onde não acontece. Onde não há mais jogo e não mais se produz diferença. Derrida diz que o centro é o mesmo que a morte, talvez situado no deslocamento da pergunta. É o inominável, o poço sem fundo fora do alcance. O desvio do processo, do jogo do devir, da transformação. “O centro é o luto”(4), diz o rabino.

No pequeno texto com que lidamos, que trata da elipse, Derrida parte do Livre de Questions, de Edmond Jabès, composto de sete tomos em torno “daquilo que não pode ser dito”, isto é, o Holocausto, ou a própria literatura. A relação com esse descentramento, com essa busca, torna-se visível ao ler Derrida sobre suas obras:

Pode-se tomar a Gramatologia como um longo ensaio articulado em duas partes (cuja soldatura é teórica, sistemática e não empírica), no meio do qual se poderia inserir A escritura e a diferença. … Inversamente, pode-se inserir a Gramatologia no meio d’A escritura e a diferença, uma vez que seis dos textos dessa obra são anteriores, de fato e de direito à publicação. … Mas as coisas não se deixam reconstituir, como você pode imaginar, tão simplesmente. (2001, p. 10-11)

Quanto título A voz e o fenômeno, Derrida diz que “sem dúvida, eu poderia tê-lo anexado, como uma longa nota, a qualquer das duas outras obras.” (ibid., p. 11). Publicados no mesmo ano (1967), os três livros se complementam e permitem atravessamentos que se dão por diferentes caminhos.

Há outras obras de Derrida sobre as quais se debruçar, sem dúvida, mas ao que essa resposta serve de exemplo é justamente à questão de como adentrar esse texto, que é, também (por vezes mais ou menos explicitamente) leitura de outros. Sem que com isso se atenha a uma tradição específica na qual o poderíamos encerrar. Como diz o próprio: “Tento me manter no limite do discurso filosófico” (ibid., p. 12), operando em um duplo gesto que aponta para fora(5) dessa estrutura, desse “sistema de constrições fundamentais, de oposições conceituais” que é a filosofia.

Por meio do que ele chama de “rasura”, a leitura das funções obliterantes presentes no interior desse sistema se torna possível, “inscrevendo violentamente no texto aquilo que buscava comandá-lo de fora” (ibid.). E avança, no que contribui para a apreensão de um quase-conceito importante em seu trajeto:

“Desconstruir” a filosofia seria, assim, pensar a genealogia estrutural de seus conceitos da maneira mais fiel, mais interior, mas, ao mesmo tempo, a partir de um certo exterior, por ela inqualificável, inominável, determinar aquilo de que a história foi capaz – ao se fazer história por meio dessa repressão, de algum modo, interessada – de dissimular ou interditar. Nesse momento produz-se – por meio dessa circulação ao mesmo tempo fiel e violenta entre o dentro e o fora da filosofia (quer dizer, do Ocidente) – um certo trabalho textual que proporciona um grande prazer. (ibid., p. 13)

Haddock-Lobo, em sua tese de doutorado, aponta que “o deslocamento da desconstrução se dá quando, ao mesmo tempo, se respeita e se desordena a ‘ordem interna’ de um texto” (2007, p. 88). Segundo o autor,

Este é o “trabalho” e o “amor” de Derrida. Desconstruir. Só se desconstrói o que se ama, diz ele em O monolingüismo do outro. Isso porque este é o desejo de Derrida, o desejo de fazer justiça à alteridade mesma, a este outro que sempre escapa e que sempre foi apreendido, compreendido, preso pela tradição filosófica. (ibid.)

Apontando para uma direção distinta de Caputo, Haddock-Lobo destaca que o “amor a esse outro” não se dá através de uma “hermenêutica radical”, como diria Caputo, implicando, de todo modo, em um pensamento que se pauta por antagonismos como dentro/fora, presença/ausência, véus/desvelamento, o que não parece combinar com os quase-conceitos que operam em Derrida. O texto de Caputo se ampara em uma vontade de real ou de presença que se imporia na relação com esse outro. Caputo identifica em Derrida o que chama de “hiper-realismo”:

O hiper-realismo de Derrida deve ser pensado como um realismo além do realismo, um ‘realismo sem realismo’, de acordo com a lógica do sans, tal como a encontramos na sua “religião sem religião” (2002, p. 41).

E completa, mais adiante:

O hiper-real, o real para além do real, o que se encontra mais fora de nosso alcance, o mais além de tudo, é o que está por vir, o que esperamos, oramos e vertemos lágrimas para que venha, com o coração inquieto de um Agostinho judeu. … No hiper-real, a realidade é sempre abundante em expectativas. O mundo é o objeto não tanto de nossa percepção, mas de nossas orações e lágrimas. (ibid., p. 47)

Pois, nas próprias palavras de Derrida, “Não se poderá afirmar a não-referência ao centro em vez de chorar a ausência do centro? Por que razão se faria luto pelo centro?” (DERRIDA, 1971, p. 77). A interpretação de Caputo parece deslizar: topa com Santo Agostinho e verte-se em ansiedade. Haddock-Lobo observa que, para o autor, essa “coisa mesma que sempre nos escapa” nada tem a ver com orações e lágrimas. Ao contrário, diz ele que

O amor de Derrida é o amor pela partição no interior da coisa mesma, é o amor pela tensão, pelo quiasma, pela indecidibilidade mesma do real. E é esse amor que nos faz desconstruir, inclusive e sobretudo, o real, não para mostrar que existe um real mais real do que o real, mais real do que o rei, mas sim para mostrar que o real é multifacetado, diverso. (2012, pp. 7-8)

Aceitar essa impossibilidade de apreensão completa do todo é o ponto de partida para pensar qualquer diferença. O outro ou diferente que se coloca ao mesmo tempo como espelho e figura indecifrável, do qual o sentido, sempre insuficiente para dar conta de sua existência, se sobrepõe a ele enquanto leitura. A parcialidade implícita nesse contato é turva, mas é justamente isso o que seria o “amor” de Derrida, residir e lidar com essa indecidibilidade – e não procurar resistir a ela, orar para que ela se presentifique.

Retornemos ao inominável. Aos signos que se repetem indefinidamente, variando e gerando emaranhados, labirintos. Em Derrida, “pensar é estar diante do impossível”. É preciso assumir essa arbitrariedade do pensamento e do outro, como a reação de estranhamento do gato(6) diante de uma ação humana, mantendo-se no limiar das coisas. Para Derrida, “o real se mostra no ‘branco’ do discurso, no não-dito do texto.”

 

Notas

(1) DERRIDA, J. Posições, p. 11.

(2) DERRIDA, J. A Escritura e a Diferença, p. 74.

(3) DERRIDA, J. A Escritura e a Diferença, p. 76.

(4) DERRIDA, J. A Escritura e a Diferença, p. 77.

(5) Derrida chama a atenção para uma tensão permanente entre o “dentro” e o “fora”, que não estão em absoluto distantes, ao contrário, se contaminam… Nesse lugar do “entre” está o indeterminável, zona de contaminação, que nada mais é que uma fina camada como o tímpano de um ouvido: permeável, que pode ser rompido. E que escuta, tem acesso a ambas extremidades.

(6) DERRIDA, Jacques. O Animal que Logo Sou. São Paulo: Unesp, 2002.

 

Referências

CAPUTO, John. Por amor às coisas mesmas: o hiper-realismo de Derrida. In: DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar (org.). Às Margens – A propósito de Derrida. Rio de Janeiro: Editora PUC, 2008.

DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971.

___________ O Animal que Logo Sou. São Paulo: Unesp, 2002.

___________ Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

HADDOCK-LOBO, Rafael. O “hiperrealismo” de John Caputo e a desconstrução do real de Jacques Derrida. Texto apresentado no GT Desconstrução, Linguagem e Alteridade no XII Encontro Nacional da ANPOF, entre os dias 22 e 26 de outubro de 2012.

___________ Para um pensamento úmido – A filosofia a partir de Jacques Derrida. Tese (Doutorado em Filosofia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

potentia

reflete-se sobre ação e não-ação. governo e trabalho. antiguidade e modernidade. discurso. política. rebelião. o escopo visível se limita ao livro de hannah arendt, que não é nada limitador. expande tanto que foi feita uma varredura pelos capítulos, a fim de amadurecer a questão. era inevitável. influências externas invisíveis são da ordem da ação política local (leia-se: rio de janeiro), coletivos de arte-ativismo, atritos internos e externos, porto maravilha, expropriações contemporâneas. por isso, dispersão. os discursos se complementam.

Não devemos procurar esconder a ironia implícita na demora para a confecção de um artigo sobre a ação (o tema se auto-impõe, neste processo). Posto que análise aqui proposta parte de um capítulo do crucial livro de Hannah Arendt intitulado A Condição Humana, ocupemo-nos de definir o que Arendt entende por ação, primeiro:

Agir, em seu sentido mais geral, significa tomar iniciativa, iniciar (como indica a palavra grega archein, “começar”, “conduzir” e, finalmente, “governar”), imprimir movimento a alguma coisa (que é o significado original do termo latino agere). (ARENDT, 2011, p. 221)

E prossegue, ao expor a origem de cada palavra em pormenores, mais adiante:

Como exemplo do que está em jogo nesse particular, podemos lembrar que o grego e o latim, ao contrário das línguas modernas, possuem duas palavras totalmente diferentes, mas correlatas, para designar o verbo “agir”. Aos dois verbos gregos archein (“começar”, “liderar” e, finalmente, “governar”) e prattein (“atravessar”, “realizar” e “acabar”) correspondem aos dois verbos latinos agere (“pôr em movimento”, “liderar”) e gerere (cujo significado original é “conduzir”). Aqui, é como se toda ação estivesse dividida em duas partes: o começo, feito por uma só pessoa, e a realização, à qual muitos se associam para “conduzir”, “acabar”, levar a cabo o empreendimento. Não só as palavras se correlacionam de modo análogo, como a história do seu emprego é também muito semelhante. Em ambos os casos, a palavra que originalmente designava apenas a segunda parte da ação, ou seja, sua realização – prattein e gerere –, passou a ser o termo aceito para designar a ação em geral, enquanto a palavra que designava o começo da ação adquiriu um significado especial, pelo menos na linguagem política. Archein passou a significar, principalmente, “governar” e “liderar”, quando empregada de maneira específica, e agere passou a significar “liderar”, mais do que “pôr em movimento”. (ibid., p. 236-7)

Para Arendt, a ação corresponde à condição humana por excelência, “a única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria” (ibid., p. 8). É somente por meio da ação que a vida humana pode se expressar em toda a sua pluralidade, isto é, através da atividade política, que se dá entre cidadãos iguais perante a lei.

O grande antagonismo que se coloca, diante desse fato, é que onde há autoridade, não pode haver ação. Nos regimes políticos implementados desde a antiguidade, desde a monarquia até a democracia liberal, não raro se verifica esse esvaziamento da política: o poder de agir, nesse caso, é outorgado ao governante ou ao pequeno grupo que governa. Contudo, o que podemos verificar, é a consolidação de toda uma tradição da filosofia política, remontando desde Platão e Aristóteles até Rawls, que se debruça sobre a legitimidade do poder, ou seja, quem merece governar. Desse modo, invariavelmente, a capacidade de cada cidadão de agir é excluída da política, assim como são esvaziadas as iniciativas de discussão sobre as decisões tomadas.

A fim de esclarecer o que é esse agir, lidaremos com o conceito de pólis. Ao contrário do que muitos acreditam, a pólis não é a cidade grega em si, em cuja ágora se configura o espaço de discussão e ação política. A pólis são os cidadãos, não importando o espaço real onde eles estejam. Como diz Arendt, “a pólis não era atenas, e sim os atenienses” (ibid. p. 243).

A rigor, a pólis não é cidade-Estado em sua localização física; é a organização das pessoas tal como ela resulta do agir e falar em conjunto, e o seu verdadeiro espaço situa-se entre as pessoas que vivem juntas com tal propósito, não importa onde estejam. “Onde quer que vás, serás uma pólis”. (p. 248)

Está claro que há diferenças bastante notáveis entre cada regime político. A democracia, “governo de muitos”, acaba por se tornar governo de ninguém – e, mesmo que haja sistema de votos, diferentes instâncias do poder político divididas burocraticamente, ou um parlamento, no caso de alguns países nórdicos, a faculdade de tomar decisões e de agir compete, em última instância, ao(s) governante(s). No caso da tirania, que a autora disseca em outras publicações mais a fundo, os indivíduos encontram-se tão isolados entre si quanto o governante de todos os outros. Neste caso, não há de fato qualquer espaço para a ação.

Esse esvaziamento do espaço da ação através da fuga da ação para o governo ocorre por uma operação que substitui a ação pela fabricação. Para melhor compreender o assunto, recuaremos a uma questão bem estrutural: para que, afinal, existe o governo? Por que a crença dominante ainda defende que precisamos dele? Ora, se considerarmos toda a imprevisibilidade das ações dos indivíduos, e portanto a iminência de perigo que elas podem representar – por inconsequência, ou simplesmente reflexos da condição plural que compartilhamos, da diferença – criam-se leis, que estabelecem postulados éticos do que é ou não aceito na esfera do comum, e um governo, que administra essas leis e promete garantir segurança aos membros de uma comunidade.

O advento do contrato social – não esqueçamos as contribuições de John Locke e seus próximos no que se refere ao estabelecimento da ordem tal como ela se apresenta nos dias de hoje – parte justamente daí, da necessidade de se gerar ordem, como alternativa a estarmos sujeitos à fragilidade dos assuntos humanos. Pois “a solidez e a quietude da ordem” (ibid., p. 277) são ideais almejados desde os tempos de Platão. Na prática, consistem em nada mais que “uma série de tentativas de encontrar fundamentos teóricos e meios práticos de uma completa fuga da política” (ibid.).

E nem devemos superestimar a existência das leis per se, pois, como destaca Arendt,

o legislador era como o construtor dos muros da cidade, alguém cuja obra devia ser executada e terminada antes que a atividade política pudesse começar. Consequentemente, era tratado como qualquer outro artesão ou arquiteto, e podia ser trazido de fora e contratado sem que precisasse ser cidadão (…). Para os gregos, as leis, como os muros ao redor da cidade, não eram um resultado da ação, mas um produto da fabricação. (p. 243)

Ou seja, o legislador, na grécia antiga, era meramente um profissional contratado para prestar um serviço. Como bom homo faber, ele produz uma obra, que possui utilidade técnica para um povo, que irá operacionalizá-la (ou menor, submeter-se a ela – pois quem é responsável por coordenar é o governo). Essa é uma boa imagem para ilustrar a questão que se coloca de modo mais amplo: o que chamamos de “fuga da ação para o governo” ou “a substituição da ação pela fabricação” é precisamente essa operacionalização da função, no caso “legislar”, que é esvaziada de sentido por parte daquele que a executa. Essa transformação da ação em uma modalidade de fabricação implica que pensemos de acordo com as categorias de meios e fins, posto que estas se atêm à perspectiva da instrumentalidade.

Platão, no diálogo O Político, esclarece do que se trata: revisitando os termos gregos archein e prattein, ambos ligados ao conceito de ação, Platão instaura um abismo entre ambos. Lembremos que o termo archein corresponde a “começar”, enquanto que prattein, a “realizar”, e eram vistos, até então, como intimamente conectados. Na prática, isso significa que aquele que “começa”, ou que tem a ideia, não mais é responsável por sua execução. De modo a “garantir que o iniciador permanecesse como senhor absoluto daquilo que começou” (ibid., p. 277), sem que outros intervissem ativamente em sua execução, a solução encontrada foi a utilização de outros na execução de ordens, esvaziando seu papel de agentes. Àquele que iniciou a ação, ou que teve a ideia, caberia portanto governar esses outros, sem precisar em absoluto agir.

O homo faber é, assim, aquele que trabalha com as mãos, hábil, “o fazedor de instrumentos e produtor de coisas” – o homem por excelência da era moderna. A diferença primordial entre “o trabalho de nosso corpo” e “a obra de nossas mãos” consiste no fato de que as atividades nas quais se faz uso do corpo para a execução de tarefas básicas, diretamente ligadas à manutenção da vida humana (atividades agrícolas, domésticas etc.), são consideradas menores. A figura do animal laborans, o trabalhador, remonta aos escravos da antiguidade (embora não se possa assumir que a escravidão esteja, hoje, extinta, infelizmente), cuja função primeira era aliviar seus senhores de cuidar da própria subsistência, para assim poderem se dedicar à vida política (cidadãos eram homens com propriedades e que não trabalhavam).

Uma definição possível para compreender essas diferenciações se encontra em Marx:

Ao contrário da produtividade da obra, que acrescenta novos objetos ao artifício humano, a produtividade da força de trabalho só incidentalmente produz objetos e preocupa-se fundamentalmente com os meios de sua própria reprodução; além disso, como a sua força não se extingue quando sua reprodução já está assegurada, ela pode ser utilizada para a reprodução de mais de um processo vital, mas nunca “produz” outra coisa senão “vida”. (ibid., p. 109)

Mesmo assim, do ponto de vista puramente social, profundamente contemplado por Marx, todo trabalho é “produtivo”, mesmo as atividades que não deixam vestigios, o que automaticamente invalida a distinção anterior. Fortalecendo a confusão, Arendt destaca:

À primeira vista, é surpreendente que a era moderna – tendo invertido todas as tradições, tanto a posição tradicional da ação e da contemplação como a tradicional hierarquia dentro da vita activa, com sua glorificação do trabalho como fonte de todos os valores e sua elevação do animal laborans à posição tradicionalmente ocupada pelo animal rationale – não tenha engendrado uma única teoria que distinguisse claramente entre o animal laborans e o homo faber, entre o “trabalho do nosso corpo e a obra de nossas mãos”. Ao invés disso, encontramos primeiro a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo, e, um pouco mais tarde, a diferenciação entre obra qualificada e não qualificada, e, finalmente, sobrepondo-se a ambas, por ser aparentemente de significação mais fundamental, a divisão de todas as atividades em trabalho manual e intelectual. (ibid., p. 105)

Seja como for, pela própria experiência moderna e o que a sucede, torna-se evidente que a exploração do “trabalho manual” (ou do corpo, misturando as antigas distinções) por parte de governos, governantes, donos, senhores, diretores, coordenadores, chefes – em suma, aqueles que detêm as faculdades intelectuais do processo produtivo, a ideia e o controle sobre os meios de produção, ou do dinheiro – configura o mote principal da sociedade em que vivemos. Marx acreditava que chegaríamos a certo ponto em que o excedente de produção gerado por uma crescente força de trabalho em constante produção faria alcançar um ponto em que o homem se libertaria da necessidade do trabalho, aos poucos. Porém, o que tem se verificado, em um sistema que se reinventa e se revigora a cada vez que os mercados quebram, é um crescente acúmulo de riquezas por parte de uns, graças à força de trabalho de outros que, reduzidos às necessidades básicas da vida, são forçados à condição de trabalhadores de modo a prover sua subsistência. Ainda que a história nos mostre os casos mais emblemáticos de rebeliões e movimentos de trabalhadores, isso implica também, por conseguinte, na maioria das vezes, em um esvaziamento da possiblidade de agir dessas pessoas – que constituem a maioria da sociedade.

Como esclarece Arendt no último capítulo do livro:

A expropriação, o despojamento de certos grupos de seu lugar no mundo e sua nua exposição às exigências da vida, criou tanto o original acúmulo de riqueza como a possibilidade de transformar essa riqueza em capital mediante o trabalho. Tudo isso junto constituiu as condições para o surgimento de uma economia capitalista. Desde o começo, séculos antes da revolução industrial, era evidente que esse desdobramento, iniciado pela expropriação e nutrido por ela, resultaria em um enorme aumento da produtividade humana. A nova classe trabalhadora, que literalmente vivia da mão à boca, estava não só diretamente sob a urgência constrangedora das necessidades da vida, mas, ao mesmo tempo, alienada de qualquer cuidado ou preocupação que não decorresse imediatamente do próprio processo vital. O que foi liberado nos estágios iniciais da primeira classe trabalhadora livre da história foi a energia [force] inerente à “força de trabalho” [labor power], isto é, à mera abundância natural do processo biológico que, como todas as forças naturais – da procriação tanto quanto da atividade do trabalho -, garante un generoso excedente muito além do necessário à reprodução de jovens para contrabalançar os velhos. O que distingue esses desdobramentos do início da era moderna de ocorrências similares do passado é que a expropriação e o acúmulo de riqueza não resultaram simplesmente em novas propriedades nem levaram a uma nova redistribuição de riqueza, mas realimentaram o processo para gerar novas expropriações, maior produtividade e mais apropriação.” (ibid., p. 317-8)

Em decorrência desse sistema nefasto, que é sobretudo dependente da energia do trabalho, os movimentos dos trabalhadores, inicialmente, carregavam um pathos que “tem sua origem em sua luta contra a sociedade como um todo” (ibid., p. 272). Isso é muito potente. Lembremos que um dos termos que deu origem ao que chamamos de “palavra”, atualmente, tem origem no latim, potentia (e dynamis, em grego arcaico). Pois bem. Hannah Arendt nos chama a atenção para o fato supreendente de não ter havido nenhuma rebelião séria de escravos tanto na era antiga quanto na moderna (guardando a diferença de que, na era moderna, os escravos reinvidicavam liberdade e justiça, enquanto que na antiguidade um valor como a liberdade não era entendido como direito universal humano). A partir do momento em que os homens começam a se entender como indivíduos, ao mesmo tempo únicos em sua existência e parte de um coletivo, conseguem diferenciar-se, e, imediatamente, passam a ser dotados de ação e poder de fala. Potentia. O termo nos remete imediatamente à ideia de poder, potência. Logo, ação. Discurso.

A ação só se dá em conjunto, quando os indivíduos se encontram em grupo. A antiga pólis, móvel, e sua função discursiva, emerge, ali, em remetimento. Alguém só se constitui como alguém a partir do olhar do outro, que funciona como espelho. Assim se inicia um diálogo. “Do começo ao fim, o principal objetivo da pólis era fazer do extraordinário uma ocorrência ordinária da vida cotidiana.” (p. 246). O agente se revela no ato, que nada mais é que uma imagem. Independente, apropriável, polifônica, intercambiável, que cria vida própria quando vinda a público.

as colunas caíram do céu, de luiz zerbini

sobre a instalação de luiz zerbini, exposta no evento luz na cidade, rio de janeiro, 2012

Da obra intitulada “minha última pintura”, 2005, que se desdobrou em outras e reinventou para o próprio artista a ideia e a vontade de pintar – e, porque não, para o público, já que ele também aparece no quadro, refletido – pode-se dizer que ao mesmo tempo ela motivou e fez parte de futuras instalações. Esse movimento, da pintura para a instalação, acontece dentro de uma trajetória em que os trabalhos se complementam, às vezes se misturando ou confundindo.

“Minha última pintura” se faz presente nas paredes de trabalhos anteriores desse mesmo processo, como a instalação “paisagemnaturezamortaretrato”, realizada por Luiz Zerbini em 2008 no Centro Universitário Maria Antônia, CEUMA, em São Paulo. Em “paisagemnaturezamortaretrato”, site-specific, as vigas do teto da própria sala adquiriam cores, ressaltando sua estrutura geométrica.

Em “As Colunas Caíram do Céu”, instalação apresentada no evento Luz na Cidade, diferentemente, a estrutura da obra é auto-portante, construída fora do espaço expositivo e posteriormente transferida para lá. Sob esse ponto de vista, o trabalho funciona como uma escultura de grandes proporções. As vigas coloridas, instaladas abaixo dos lustres da sala, aparecem ‘dissolvidas’ em reflexo, tal como em “paisagemnaturezamortaretrato”. Pretas e luminosas, as paredes cobertas por tinta automotiva nos apresentam uma imagem menos nítida da obra, ecoando tanto as cores das vigas quanto a própria imagem do público.

“Desde que a pintura morreu, não paro de pensar nela”, dizia Luiz Zerbini à época de “minha última pintura”. Em texto sobre a obra, Agnaldo Farias diz que “o tipo de intervenção realizada no espaço expositivo retarda o entendimento dessa confissão, como se tivesse sido sussurrada”. Dos quadros imprevistos e vistos, muitos deles absolutamente figurativos, não raro incorporando diversos elementos gráficos e algumas abstrações, parte também uma reflexão consistente que recai sobre o espaço tridimensional.

Pode-se chamar, talvez, “As Colunas Caíram do Céu” de instalação pictórica, vinda do mesmo movimento que parte do quadro para o espaço real da sala, o qual o público é convidado a percorrer.

realismo no cinema segundo gilles deleuze

A “invenção” (…) não deve ser entendida como uma descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apóiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral.
(Michel Foucault)

Em algum momento se disse que caberia à filosofia, ou mesmo ao pensamento como um todo, procurar entender as ideias prontas que nos são fornecidas e encontrar meios de desmontá-las por dentro – tal como se pode fazer com um objeto, por exemplo. A alegoria aqui se apresenta mais no sentido de desmontar os conceitos, como se fossem um brinquedo ou um telefone velho, para poder entender como foram produzidos: os processos pelos quais passaram até se tornarem o que são.

1.1 Ação

“Como a produção e a aparição de algo novo são possíveis?” (DELEUZE, 1983, p. 11), questiona Gilles Deleuze no começo do livro A Imagem-movimento (1983). Poderia também ser: como um sistema fechado e já estabelecido recebe uma ideia nova? Um fenômeno que lhe é estranho? Deleuze então completa: “Sabemos que as coisas e as pessoas são sempre forçadas, obrigadas a se esconder quando começam. Elas surgem num conjunto que não as comportava, e devem pôr em evidência os caracteres comuns que conservam com esse conjunto para não serem rejeitadas.” (ibid.)

O cinema em seus primórdios aparecia como uma novidade; uma descoberta curiosa, um corpo estranho. Mesmo os irmãos Lumière haviam dito que a invenção – fotogramas estáticos projetados em tela grande numa sala escura em tal velocidade que os perceberíamos em movimento – poderia ser somente uma curiosidade a ser explorada durante um certo tempo, para ser então esquecida. Bergson, contemporâneo à invenção do cinema, aborda “o mecanismo cinematográfico do pensamento e a ilusão mecanicista” no quarto capítulo da obra A Evolução Criadora, e, como diz Deleuze, “batiza a fórmula injusta: a ilusão cinematográfica” (ibid., p. 10). O cinema não faria mais que reconstituir o movimento a partir de cortes imóveis, provocando a ilusão de movimento, tal como funciona a nossa própria percepção, ou o modo como conhecemos o mundo: “em vez de nos prendermos ao devir interior das coisas, postamo-nos fora delas para recompor artificialmente seu devir” (BERGSON, 2006, p. 330-331).

Quanto a isso, Deleuze argumenta que, partindo da reprodução da ilusão, o cinema, ao se emancipar do mero e constante mecanismo de projeção e reprodução de uma ilusão e, avançando em seus caminhos, teria conseguido produzir um corte móvel – a imagem-movimento. Para Deleuze, a percepção imediata, ao contrário, produziria apenas cortes imóveis, seleções apreendidas do mundo que é em si mobilidade(1).

O próprio Bergson teria elaborado, no primeiro capítulo de Matéria e Memória, a tese na qual Deleuze se baseia para pensar o cinema. Bergson entende o mundo como um conjunto de imagens. Percebemos o mundo em referência ao nosso corpo, no mundo material, e portanto os objetos todos a nossa volta comportam-se como imagens que a ele se referem. Em sua filosofia, Bergson elimina a oposição entre o mundo físico do movimento e o mundo psicológico da imagem. As imagens não são o duplo das coisas. São as próprias coisas.

Imagens, Deleuze acrescenta, equivalem a movimento(2). Ao cinema faltaria esse centro de referência, e, “a partir deste estado de coisas, justamente porque lhe faltam centro de ancoragem e horizonte, os cortes que opera não o impediriam de remontar o caminho pelo qual desce a percepção natural. Em vez de ir do estado de coisas acentrado à percepção centrada, ele poderia remontar rumo ao estado de coisas acentrado e dele se aproximar” (DELEUZE, ibid., p. 78).

E completa: “todas as coisas, isto é, todas as imagens, se confundem com suas ações e reações: é a variação universal” (ibid.). O processo de apreensão das coisas no mundo, de acordo com Bergson, se daria partindo da percepção (reconhecimento das imagens) -> afecção (reflexo das imagens no corpo) -> ação (exteriorização desse movimento).

Para Deleuze, essa divisão em conceitos serve para identificar a forma que assume a imagem cinematográfica em suas variações possíveis, tendo em vista os elementos que contribuem para sua composição, tais como a temática, o enquadramento, a montagem e a mise-en-scène. O foco pode recair, grosso modo, sobre o que é visto (o plano-sequência, caracterizando a imagem-percepção); expressões de sensações (close-ups e ênfase na face, a imagem-afecção); espaços degenerados (repetição ou entropia acelerada, a imagem-pulsão) ou o foco poderia ser direcionado à duração da ação (plano médio, a imagem-ação).

A imagem-ação pertence ao universo do Realismo. Narrativas históricas e sociais têm lugar em espaços e tempos determinados que participam e atuam sobre o sujeito da ação, que por sua vez deverá reagir. A chamada grande forma da imagem-ação é compreendida pela estrutura SAS’ (situação-ação-situação, em que a ação é capaz de transformar a situação). “A ação é em si própria um duelo de forças, uma série de duelos: duelo com o meio, com os outros, consigo mesmo” (ibid., p. 179), afirma Deleuze. É a saga do herói que irá colidir com a Ambiência ou o Englobante(3) à sua volta, ou com indivíduos, ou situações, e aceitará o desafio. Ao longo do percurso, ele poderá recuar, sofrer e passar por diversas provações, desde que, ao final da jornada, a situação se modifique. Nela se incluem o herói, o meio e os indivíduos à sua volta.

A diferença principal colocada por Deleuze entre a grande e a pequena forma reside essencialmente em qual dos dois elementos centrais, a ação ou a situação, irá orientar os movimentos da outra: no caso da pequena forma, ao contrário do ambiente atuar como meio que culmina na ação, para enfim modificá-la4, cada pequeno movimento ou gesto revela aos poucos a situação. É um cinema concentrado mais nos detalhes do cenário, na indumentária, nos objetos e nas reações dos corpos que nos grandes feitos, mas que, ainda assim, possui uma estrutura fechada, em que ações modificam situações. A forma, representada pelo esquema ASA’, possui uma imagem indicial5, atuando primeiro por falta (a ação inicial revela indiretamente a situação) e depois por distância (“uma diferença muito pequena na ação ou entre duas ações induz uma distância muito grande entre duas situações”(6)).

Os movimentos da imagem-ação, segundo os modos de operação da pequena forma, são apresentados portanto como elipses (que opera por ausência). Diferentemente desses, a imagem-ação da grande forma atua por espirais (que gira em torno de um centro). dentre as quais se distinguem dois signos: o synsigno(7), que corresponde a “um conjunto de qualidades-potências enquanto atualizadas num meio, num estado de coisas ou num espaço-tempo determinados” (ibid., p. 179-180), e o binômio, no qual uma força aparece em contraposição à outra, em duelo. A realização da imagem-ação então se dá tanto por disfarces, ostentações, armadilhas – em que os gestos se direcionam ao outro – quanto pelo próprio embate, em especial quando as forças opostas aparecem em um mesmo quadro.(8)

Há uma série de gêneros que podem ser identificados com a imagem-ação. Enquanto a pequena forma é mais afim ao burlesco, à comédia de costumes e ao filme de época(9), a grande forma tem a sua manifestação por excelência no grande filme histórico. Ainda assim, ela é capaz de comportar uma variedade bem razoável de gêneros: o documentário, o western, o filme psicossocial; além do fantástico, o extraordinário, o heróico e, não sem destaque, o melodrama. O que é fundamental é que a estrutura, própria do realismo, seja mantida. Isto é, “meios e comportamentos; meios que atualizam e comportamentos que encarnam. A imagem-ação é a relação entre os dois, e todas as variedades dessa relação” (ibid., p. 178).

No centro do espiral da grande forma está o Englobante. Ali, o meio atua como representação orgânica, capaz de reunir tudo e todos a sua volta em um mesmo organismo que respira. Os cenários dos filmes western, bem como seu enredo, são a melhor maneira de tornar isso visível: as extensas paisagens em que céu e terra ganham destaque, além das festas coletivas, exibem um mundo que varia, que se contrai e se expande. O herói participa desse mundo e aparece como representante da comunidade. Como tal, ao fim do trajeto deverá, através de suas ações, igualar-se ao meio, reestabelecendo assim a ordem.

Sobretudo nos filmes de John Ford, aponta Deleuze, a mera compreensão dessa ordem restaurada como cíclica não daria conta de antever os seus meios. É antes uma ordem espiral, em que S não equivale a S’, mas, ao contrário o que ocorre é uma harmonia conquistada sob muito custo, um avanço – a manifestação de um sonho. Torna-se evidente, então, uma ética embutida na imagem, expondo a trajetória de um personagem sob o ponto de vista moral de um povo que visa conquistas e desbravamentos. As injustiças deverão ser combatidas, o sonho deve ser revigorado e os inimigos e traidores eliminados. A imagem tem uma missão, que é fazer o público sonhar junto aos personagens.

Em 1915 G.W. Griffith lançava Nascimento de uma Nação(10), ainda na fase do cinema mudo. O filme, dentre outros méritos históricos e controvérsias políticas que lhe são atribuídos, tornou-se referência na narração do chamado sonho americano. Deleuze afirma que a Ford interessava antes de tudo que a comunidade (estadunidense) pudesse “ter certas ilusões a respeito de si mesma” (ibid., p. 185-186). Essas “ilusões” fazem parte de um conjunto de crenças que chegariam, até hoje, a aparecer em muitos filmes de Hollywood. Vieram a constituir uma forma própria – a imagem-ação –, tal que o mesmo filme fundamental fosse filmado e refilmado inúmeras vezes, e cuja matriz, de certo modo, reside na narrativa dirigida por Griffith.

Não é à toa que Deleuze estabelece uma comparação direta entre o cinema clássico-narrativo americano da grande forma e as concepções históricas apreendidas por Nietzsche. A afinidade se dá pela simples razão de que, grosso modo, todos os gêneros ficcionais clássicos americanos apresentariam em maior ou menor grau uma série de valores característicos de uma narrativa histórica. O sonho americano é compreendido dentro de um Englobante, que abarca as mudanças das sociedades e as carrega em direção a um fim comum, lhes conferindo sentido e legitimidade. É a história dos vencedores, na qual as minorias se fundem e chefes são eleitos para defender o sonho e atingir aquilo que acreditam lhes ser predestinado.

O mesmo tipo de raciocínio se manifesta no cinema soviético, e este consiste na crença na finalidade de uma história universal. A diferença reside em que, se os russos articulavam dialeticamente essa representação orgânica – donde surge Eisenstein, com suas teorias seminais para a montagem cinematográfica –, para os estadunidenses “ela é, sozinha, toda a história, a linhagem germinal na qual cada nação civilizada se destaca como um organismo, cada uma prefigurando a América” (ibid., p. 186). O movimento de superação de obstáculos para a fundação de uma nação-civilização traz também ecos das narrativas bíblicas, transpostas para o cinema em inúmeras variações e formas que iriam narrar, em essência, a mesma história. As civilizações decadentes são vistas como organismos doentes, cujos males o futuro deverá se encarregar de sanar e encontrar os modos de vencer.

É a história monumental. Ela pressupõe que “os grandes momentos da humanidade se comunicam pelo ápice” (ibid., p. 187) e se orientam segundo normas comuns. Colecionam efeitos sem causas precisas, mas se dispõem a identificar, paralela e dualisticamente, personas representativas que se repetem, tais como ricos e pobres, o homem justo e o traidor etc.(11) Caberá, pois, à história antiquária, compor com detalhes e ornamentos os grandiosos eventos da história monumental, seja ampliando seus duelos em grandes batalhas, seja na reconstituição de objetos da intimidade e do cotidiano dos sujeitos.

Nesse ambiente, aparecem cores referenciais em tecidos de época e máquinas, por serem estas últimas símbolos representativos fundamentais à emergência ou ao fim de civilizações. A história crítica, renomeada por Deleuze como ética, soma-se às duas anteriores como dispositivo moral encarregado de denunciar os males que acometeram os episódios do passado. Essa ética estará a serviço da retomada do sonho, sucessivamente, de modo que a América seja sempre redescoberta.

1.2 Variação

“Mas pode uma crise da imagem-ação ser apresentada como algo novo? Não foi este o estado constante do cinema?” (ibid., p. 252), ecoa a pergunta novamente, desta vez no último capítulo do livro. Deleuze relaciona a crise da imagem-ação ao contexto global do pós-guerra. Esta estrutura, bem como a indústria do cinema nos moldes em que vinha se mantendo, teria entrado em declínio juntamente à “guerra e seus desdobramentos, a vacilação do ‘sonho americano’ sob todos os seus aspectos, a nova consciência das minorias, a ascensão e a inflação das imagens tanto no mundo exterior como na mente das pessoas” e “a influência sobre o cinema dos novos modos de narrativa experimentados pela literatura” (ibid., p. 253).

A consciência política emergida no pós-2ª Guerra desencadeou uma série de transformações em várias áreas da produção de conhecimento. Os efeitos das guerras seriam sentidos aos poucos, e cada país teria que lidar aos seus modos com um contexto político reconfigurado. As mudanças trazidas com a nova ordem política serviriam então como orientação para os interesses de cada nação, ainda que, de modo geral, juntamente à reconstrução das cidades e à mudança de estratégias políticas, se mostrasse também necessária uma renovação no campo das artes. O contexto alterado provocava uma demanda por novas formas de lidar com os sonhos, as ideias e sobretudo os ideais que apareceriam revestidos por formas estéticas em salas de cinema, livros ou exposições.

Uma nova forma de fazer cinema que emergia, então, diante desse ambiente, se propunha a contemplar a realidade dispersiva e os acontecimentos imprevistos, procurando orquestrar uma simultaneidade de memórias e situações em uma totalidade aberta. As formas tradicionais do cinema clássico-narrativo estadunidense, isto é, SAS’ e ASA’, não perderiam, no entanto, seu forte apelo frente ao público, como forma consolidada de se contar estórias e histórias. Não à toa, até hoje os grandes sucessos comerciais em geral seguem a estrutura da imagem-ação. Mas o que se verifica, a partir da Segunda Guerra, é uma guinada significativa rumo ao desconhecido, a uma reinvenção da forma a partir de uma ideia mínima, em um mundo em que as estruturas antes tão sólidas apareciam em ruínas.

Hitchcock havia, anteriormente, trazido uma série de inovações para o cinema. Mas o que sua imagem-mental (ou imagem-relação), nas palavras de Deleuze, fazia, de fato, era questionar a natureza das formas já existentes – percepção, afecção, ação –, compondo um cinema profundamente rico, mas que ainda assim não seria capaz de subverter por completo os paradigmas da imagem-movimento. A mudança efetiva, diante do contexto do pós-guerra, se daria primeiramente na Itália, seguida da França e da Alemanha. Os novos rumos também seriam verificados mais tarde no cinema que se fazia nos EUA fora de Hollywood, bem como no cinema novo e no cinema marginal brasileiros. A conjuntura global se modificava, e com ela os modos de produção de subjetividade.

“Não acreditamos mais que uma situação global possa dar lugar a uma ação capaz de modificá-la. Também não acreditamos que uma ação possa forçar uma situação a se desvendar, mesmo parcialmente. Desmoronam as ilusões mais ‘sadias’” (DELEUZE, 1983, p. 253). O trecho explicita o paralelo direto estabelecido entre os vínculos sensório-motores na imagem – que corrrespondem aos “encadeamentos situação-ação, ação-reação, excitação-resposta” (ibid.) típicos da imagem-ação – e a situação das crenças políticas que havia então sofrido sérios abalos. O realismo não poderia mais dar conta da representação das ideias nesse momento reconfigurado, que possibilitava que novos modelos e novos formatos fossem postos em prática, de maneira experimental.

“A situação não se prolonga diretamente na ação: não é mais sensório-motora, como no realismo, mas, antes, ótica e sonora, investida pelos sentidos, antes de a ação se formar, utilizar e afrontar seus elementos” (DELEUZE, 1985, p. 13). O neo-realismo italiano e, em seguida, a nouvelle vague francesa, são movimentos nos quais essas mudanças tiveram seus ecos mais evidentes. A definição do primeiro já diz: “Em vez de representar um real já decifrado, o neo-realismo visava um real, sempre ambíguo, a ser decifrado; por isso o plano-sequência tendia a substituir a montagem das representações” (ibid., p. 9). No entanto, no que esses cinemas abandonavam os ideais de perfeição cíclica do mundo e as grandes utopias da modernidade, abraçavam para si questões políticas urgentes, mesmo que em seus filmes não fossem apresentar quaisquer soluções fáceis a respeito.

No cinema feito hoje, as linguagens adotadas ainda bebem muito em cineastas como Godard, Truffaut, Rosselini e De Sica, associados à nouvelle vague e ao neo-realismo italiano (e mesmo Godard continua a reinventar sua forma de fazer filmes e dialogar com o mundo). A eles, soma-se um sem número de novos referentes que vieram a apresentar seus repertórios estéticos, de maneira tão plural que a eles Deleuze teria que se dedicar quase que caso a caso.

O cinema moderno já começa a sofrer mutações consideráveis quando se fala em unidades específicas de pensamento, ou normas estéticas comuns. Da fragmentação e do afrouxamento dos vínculos sensório-motores rumo a imagens puramente ópticas ou sonoras, uma narrativa descontínua – se comparada ao cinema clássico-narrativo – e livre tanto para tender para o exagero quanto para adotar estruturas mais mínimas, assume em algum ponto uma curva possível na trajetória. Não há regras definidas a serem prescritas. Somente movimentos ondulatórios rumo ao desconhecido, cujo futuro é construído constantemente a partir de colagens, invenções e ressignificações desse passado que se consolida como repertório disponível, em uma linguagem sempre em movimento.

Notas

(1) “O modelo seria antes um estado de coisas que não pararia de mudar, uma matéria fluente onde nenhum ponto de ancoragem ou centro de referência seriam imputáveis. A partir desse estado de coisas, seria necessário mostrar como podem se formar centros em pontos quaisquer, que imporiam vistas fixas instantâneas.” (DELEUZE, ibid., p. 78)

(2) Deleuze em citação a Bergson: “A verdade é que os movimentos são muito claros como imagens, e que não cabe procurar no movimento outra coisa além do que nele se vê”.

(3) Deleuze define a Ambiência ou o Englobante, em A Imagem-movimento: “Aqui, a qualidade principal da imagem é o sopro, a respiração. É ela que não só inspira o herói, mas também reúne as coisas em um todo da representação orgânica, contraindo-se e dilatando-se segundo as circunstâncias.” (DELEUZE, 1983, p. 166)

(4) Existe ainda, na grande forma, dois modos variantes: SAS, em que o meio se apresenta como inabalável, só restando aos sujeitos da ação resistirem a esse meio, e SAS”, em que o sujeito passa por um processo de degradação decorrente do meio à sua volta, caracterizando uma patologia desse último.

(5) Deleuze se refere à semiótica pierciana quando fala em índices e signos.

(6) Ibid., p. 202, grifo do autor.

(7) Em apropriação ao termo “sinsigno”, de Pierce, Deleuze esclaresce que o uso do prefixo “syn” insiste não sobre a individualidade de um estado de coisas, como indicaria “sin”, mas justamente sobre as várias qualidades ou potências a serem atualizadas. O prefixo “syn” vem do grego remete à ideia de reunião espaço-temporal.

(8) Daí a identificação com o plano médio, também chamado de plano americano devido ao enquadramento que possibilita que o revólver do homens entre em quadro – como é o caso do western.

(9) Mas não somente. Ela irá comportar, também, o western, o documentário e outros, desde que sua estrutura narrativa seja respeitada, tal como ocorre na grande forma. Os gêneros, assim como as formas narativas, podem oscilar e variar caso a caso, comportar mais de uma estrutura e assim por diante. Para que isso seja apreendido, somente a análise de obras específicas pode evocar as referências precisas.

(10) The Birth of a Nation, no original.

(11) Eisenstein, em análise da montagem paralela feita para ilustrar tais representações, irá criticar essa lacuna deixada pelos efeitos expostos sem causa localizada. Apropriando-se ao mesmo tempo de visões dialéticas e monistas, irá em busca das “verdadeiras” causas, apoiando-se na teoria da luta de classes e em versões reconciliatórias da história no cinema.

 

Referências

BERGSON, Henri. A Evolução Criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 2006.

DELEUZE, Gilles. A Imagem-movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

DELEUZE, Gilles. A Imagem-tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

NIETZSCHE, Friedrich. Untimely meditations. Cambridge: University Press, 1997.

expedito

considera-se uma obra póstuma 

pontapé para o infinito, luminescência. construção de mercado velho feito afoita velha vontade, eu começo, eu ando em intenção e invento circunferências. já estão ditas, já estão escritas com todas as palavras do vocabulário corrente, em línguas misturadas que se apropriam umas às outras, como indeléveis imagens.

um começo é uma estória, um porque em manifestação interna sem que responda à pergunta. eu recortei, ampliei e repaginei o conto, remixtures da música, misticismos dos outros e mais uma dúzia de ovos. não precisamos de justificativas, mas de ações. o ato de alguma forma antecede a teoria, pode ser versão da própria, cópia involutária de outrem, pastiche calado que subscreve. por mais que procuremos entender, não mergulharemos em todos os universos, não será possível dar conta do todo; por isso a unidade, o sujeito parcial que não se contém em querer criar suas versões dos mundos em ambientes pelos quais transita.

porco-espinho mede universos, conhece intelectos e tem sua forma mutável de transeunte. pessoa culta que sabe cotar bem o embaralho das coisas, curte filme francês e vestes de seu avô que sequer conheceu em vida. “estava cheio de tecnologia”, um recém-amigo disse uma vez durante o trajeto. curiosíssima observação, senso comum das palavras impressas no jornal. dizem tanto desses parques de diversões contemporâneos ao ponto de nem parar pra pensar o que de fato se observa. adentrasse sem teoria prévia, o que é pouco provável, diria estar numa casa de fliperama dos novos tempos, ou num parque de televisões: estruturas expostas da máquina e outros experimentos com a luz industrial mágica.

ludologia e narratologia: teorias de jogos eletrônicos

por inês nin, julho de 2008

 

Em busca de teorias que fossem capazes de interpretar os jogos eletrônicos – forma midiática que emergia com a computação –, foi criado o campo acadêmico chamado game studies, ou estudo de jogos. Os textos mais antigos datam de 1997 e são de Janet H. Murray (Hamlet no Holodeck – O Futuro da Narrativa no Ciberespaço) e Espen J. Aarseth (Cybertext – Perspectives on Ergotic Literature). Ambos fazem uso do prefixo cyber, cunhado por Norbert Wiener em Cibernética (1948) e O Uso Humano dos Seres Humanos (1950), sendo o primeiro um livro de enfoque mais técnico e o segundo uma obra sobre a interação entre humanos e máquinas como forma de comunicação.

No momento presente, pouco mais de dez anos após as primeiras publicações no campo, sites na internet se multiplicaram acerca dos estudos; novos termos e abordagens foram trazidos para o campo; novos teóricos surgiram propondo debates e os games em si foram complexificados e aperfeiçoados. Dentro do campo crescente dos game studies, autores como Gonzalo Frasca e Jesper Juul surgiram inaugurando o que eles próprios chamam de ludologia (do inglês ludology), que em si se diferencia da abordagem feita da chamada (pelos ludologistas) de narratologia (narratology). Eles partem da teoria de Aarseth, que fala do cibertexto e da literatura egórdica – que necessita de um esforço maior que um simples virar a página de um livro para ser lida (apesar dos termos). Dela destacam em especial a passagem “To claim there is no difference between games and narratives is to ignore essential qualities of both categories” (AARSETH, 1997), de Cybertext, para ir em direção contrária à perspectiva “narratologista” de Murray e outros como Henry Jenkins.

Frasca foi quem “inaugurou” o que seria esta nova disciplina especificamente criada para estudar os jogos – eletrônicos ou não, ainda que tenha ênfase nestes – em um artigo de 1999 entitulado “Ludology Meets Narratology: Similitude and differences between (video)games and narrative.” O termo ludology, de fato, não foi cunhado por ele, e nem é novo, mas tem sido usado há algum tempo por jogadores de jogos não-eletrônicos. Ludus, em si, vem do grego e denota aspectos relativos a jogo. Na teoria ludológica ele vem assumir um significado mais específico.

Partindo das categorias criadas por Roger Caillois, Frasca estabelece a distinção entre ludus e paidia (em português, ludo e paideia) como formas diferentes de jogo. Esta necessidade é explicitada pela confusão potencialmente encontrada com as palavras “play” (em inglês, que tem duplo significado e pode ser tanto verbo quanto substantivo) e as respectivas em outras línguas, que só encontram um significado (em português poderíamos encontrar a distinção entre “jogo” e “brincadeira”, ou jogar/brincar). De acordo com a ludologia, essencialmente, ludo seria o jogo com regras, e paideia, sem regras.

A paideia aqui remete àquela brincadeira de crianças bem pequenas que não tem hora para acabar e cujas regras mudam de acordo com o gosto da criança. O ludo seria o jogo de adultos, como o xadrez, que tem objetivo definido, estratégia e regras bem demarcadas. O jogo do tipo ludo é o que mais se aproxima da concepção de jogos eletrônicos abordada pelos “narratologistas”. Ele traz em si os três atos apontados pela teoria estética de Aristóteles (ver Poética) e que se verificam mais tipicamente nas narrativas hollywoodianas.

Seriam correspondentes aos jogos eletrônicos de aventura. Murray encara os jogos de computador como novas formas de criar histórias, ou narrativas, considerando a constante escolha por caminhos que se tem que fazer nos jogos como direções tomadas por uma narrativa multi-linear. Os jogos especificamente analisados por ela são os MUDs (Multi-User Dungeons), precursores dos atuais MMORPGs (Massive Multi-player Online Role Playing Games), como Zork e Myst.

É de fato inegável a semelhança de tais jogos às narrativas cinematográficas, por exemplo, e diversos estudos têm sido feitos a respeito disso, apontando semelhanças e diferenças. Sem dúvida a principal diferença é que no caso do jogo eletrônico o interator (que interage com o texto; um nome para a forma de leitura descrita por Murray em meio digital) tem a possibilidade de “incorporar” o personagem e interagir ativamente com a história – que está então sendo construída.

Acerca disso, Frasca argumenta que pessoas reais não agem como personagens, especialmente se lembrarmos da forma tradicional deles e presente nas narrativas (dotadas de estrutura clássica). Personagens em geral são baseados em arquétipos, tipos, enquanto pessoais reais são seres muito mais complexos que esta forma simplificada criada para a literatura e peças teatrais.

As diferenças entre as concepções teóricas são muitas, enfim. Podemos estabelecer aqui as linhas gerais: os auto-intitulados ludologistas acreditam que o que há de principal em um jogo são as regras, que é o que os distingüe das formas narrativas e os próprios jogos entre si. O enfoque deles é no aspecto da simulação, argumentando que os jogos são antes baseados nisso que em narrativas (mas não excluem a possibilidade de existir jogos narrativos), cuja base está no comportamento (do software do jogo), que vai permitir ou não determinadas ações. Atentam ainda para o aspecto ideológico dos jogos, tanto em seu aspecto mais explícito (como nos chamados advergames – jogos que servem para promoções publicitárias) quanto implícito, que estaria presente em todos os jogos a partir de seus conjunto de regras: eles permitem determinada ação ou não.

Os chamados narratologistas, por eles próprios assumidos apenas como formalistas, como Murray, enfatizam os aspectos dos jogos que são comuns às narrativas, ou à criação de histórias: início, desenvolvimento e fim – vencedor ou perdedor. Segundo Murray, “um jogo é um tipo de narração abstrata que se parece com o universo da experiência cotidiana, mas condensa esta última a fim de aumentar o interesse.” (MURRAY, 1997). A partir daí ela cunha os conceitos que seriam específicos do caso dos jogos eletrônicos, como interator (no lugar do leitor; é um leitor que interage com a obra); imersão (pois a experiência de jogar se assemelha ao estar mergulhado em um ambiente totalmente novo); agência (em oposição a autoria, o interator agencia os elementos de um jogo) e transformação (a partir da agência do interator ele pode transformar aquela obra para os caminhos que deseja – desde que o jogo permita).

O “debate” entre estes dois enfoques dos game studies é só mais ou menos declarado, tendo os ludologistas surgido posteriormente para clamar uma distinção dos demais e chamando a atenção para a necessidade de uma disciplina que abordasse somente jogos. Murray os acusa de fazer uso de uma perspectiva a-histórica, negando a relação existente que se estabelece historicamente entre os diferentes meios e tecnologias da comunicação (indo em direção contrária, os ludologistas, do que afirmam Bolter e Grusin, quando falam do conceito de remediação – de fato, a dupla é enquadrada no campo dos narratologistas). Mas ao mesmo tempo diz encontrar alguns avanços no campo da ludologia, e clama por uma mútua cooperação (e não uma oposição). Resta ver os caminhos pelos quais a questão irá trafegar.