expedito

considera-se uma obra póstuma 

pontapé para o infinito, luminescência. construção de mercado velho feito afoita velha vontade, eu começo, eu ando em intenção e invento circunferências. já estão ditas, já estão escritas com todas as palavras do vocabulário corrente, em línguas misturadas que se apropriam umas às outras, como indeléveis imagens.

um começo é uma estória, um porque em manifestação interna sem que responda à pergunta. eu recortei, ampliei e repaginei o conto, remixtures da música, misticismos dos outros e mais uma dúzia de ovos. não precisamos de justificativas, mas de ações. o ato de alguma forma antecede a teoria, pode ser versão da própria, cópia involutária de outrem, pastiche calado que subscreve. por mais que procuremos entender, não mergulharemos em todos os universos, não será possível dar conta do todo; por isso a unidade, o sujeito parcial que não se contém em querer criar suas versões dos mundos em ambientes pelos quais transita.

porco-espinho mede universos, conhece intelectos e tem sua forma mutável de transeunte. pessoa culta que sabe cotar bem o embaralho das coisas, curte filme francês e vestes de seu avô que sequer conheceu em vida. “estava cheio de tecnologia”, um recém-amigo disse uma vez durante o trajeto. curiosíssima observação, senso comum das palavras impressas no jornal. dizem tanto desses parques de diversões contemporâneos ao ponto de nem parar pra pensar o que de fato se observa. adentrasse sem teoria prévia, o que é pouco provável, diria estar numa casa de fliperama dos novos tempos, ou num parque de televisões: estruturas expostas da máquina e outros experimentos com a luz industrial mágica.

transmissão 3D

resenha da palestra “transmissão 3D”
por inês nin, riomarket 2010

Tecnologias de ponta, distribuição e inovações marcaram a primeira mesa do ciclo de debates sobre 3D, realizado na sala de cinema do Pavilhão do Festival do Rio.

Eunézio de Souza, ou Prof. Thoroh, foi o primeiro a falar. Em poucos minutos, questões que tangem a distribuição de filmes e a qualidade dos mesmos foram abordadas do ponto de vista da tecnologia; Thoroh é cientista e coordenador do Laboratório de Fotônica da Universidade Mackenzie.

Primeiramente, ele comparou a distribuição “convencional e analógica”, tal como é feita hoje, na qual o filme sai da ilha de edição não-linear (digital, portanto nem tão antiga assim) para o transfer, a partir do qual são produzidas cópias em película, que por sua vez serão transportadas por caminhão até a sala de cinema. Ao fim, as cópias são eliminadas.

O novo modelo que propõe, chamado de “futuro cinema digital”, prevê uma transferência direta das ilhas de edição não-lineares para o “centro de distribuição cinematográfica”, local responsável por transmitir o filme via satélite, através de redes de fibra óptica ou de mídias físicas, diretamente para as salas de cinema. Lá, o material ficará temporariamente armazenado. As projeções serão digitais, e, ao fim do processo, os arquivos serão deletados.

Atualmente, existem alguns modos de distribuição digital, e o sistema RAIN transmite os filmes de maneira vagamente similar. A grande diferença estaria na qualidade – os filmes em 4k, de acordo com Thoroh, não deixam nada a desejar se comparados à projeção em película 35mm. Cabe, portanto, às tecnologias das redes de fibra óptica – e mesmo aos satélites – aprimorarem sua capacidade para poder receber esse material, que sem dúvida alguma ocupa muitos terabits.

Thoroh exibe, então, alguns gráficos que ilustram as transferências de dados que são feitas atualmente via GLIF – Global Lambda Integrated Facility (“organização visual integrada que promove o paradigma das redes lambda”), atribuições VLAN unicast e outros. As redes de fibra óptica que se propõem a serem usadas para as transmissões de filmes em superalta resolução constituiriam o que Thoroh chama de “a internet do futuro”: redes de IP com tecnologia aprimorada de maneira a viabilizar as transmissões, tendo também o problema da compressão de dados resolvido por novos formatos de arquivo, como o j2k ou o jpeg2000, que já existem.

Há o caso de um grupo japonês que propõe a transmissão de dados sem que seja necessária a compressão. Chama-se ‘Projeto 2014k’. Experimentalmente, o projeto se propõe a “demonstrar a potencialidade da futura internet no Brazil por streaming ao vivo em superalta definição”. A tecnologia R&D, representada na palestra por um esquema, pode parecer inicialmente complexa, mas na verdade vem a serviço da solução de um problema, tornando ideias mais simples de serem realizadas. Um dos provedores de conteúdo participantes do projeto é a Universidade Mackenzie, em meio a outra, e algumas das indústrias envolvidas são a Giga, Kyatera e RNP.

“A previsão é muito difícil, especialmente quando se trata do futuro”, exibe Thoroh no telão, no original em inglês, em citação a Niels Bohr. Conta que a primeira transmissão à distância feita com cabos de fibra óptica foi em 16 de agosto de 1858, por James Buchanan, Cyrus Fields, Lord Kelvin e Samuel Morse. A grande ameaça que se apresenta atualmente é o crescimento acelerado da internet, levando ao risco da incapacidade de transmitir todos os dados: seria a “catástrofe da internet”. Os satélites usados hoje para transmissões estariam em seu limite disponível. Não à toa, o assunto tem mobilizado diversos pesquisadores ao redor do mundo. Thoroh fornece, então, alguns links e artigos através dos quais o público pode se familiarizar mais com o assunto:

http://www.corning.com/docs/opticalfiber/r3461.pdf,http://zakon.org/robert/internet/timeline/ e http://www.telegeography.com/

Fábio Lima, da MovieMobz, apresenta-se em seguida. Dando continuidade ao assunto de sobrecarga de dados da internet, Lima especifica que os arquivos de música e vídeo compõem, hoje, o maior volume de dados transmitidos. Segundo ele, futuras soluções de transmissão de dados audiovisuais para as salas de cinema poderão ser tanto pendrives com altíssima capacidade de armazenamento (para gravação) quanto as redes de fibra óptica (para transmissões ao vivo).

Desse modo, fica claro que o tópico “digitalização do cinema”, que vem sido impulsionado em grande parte pela implementação das salas com tecnologia 3D, não atinge somente os cinemas, mas também os usuários da internet. A média de salas 3D tem sido de 1 por complexo, mas, com o enorme sucesso das produções feitas com essa tecnologia, o número só tende a aumentar.

A qualidade do 3D difere bastante, no entanto. Os projetores 3D atuais das salas de cinema transmitem por broadcastings de 2k, metade da resolução apresentada pelas tecnologias mais recentes. O 3D captado por iMacs (70mm), por sua vez, possui uma diferença notável na profundidade se comparado ao 3D de alta resolução. Lima fala novamente na necessidade de aumento de banda e da capacidade dos satélites, como infraestrutura básica para que as transmissões de filmes em altíssima resolução possam avançar. E estes são capítulos a ser definidos sob o ponto de vista comercial.

Dolby, Real D, MasterImage e XPanD são as tecnologias 3D disponíveis hoje no mercado, afirma Albert Besso (TCE). Eles possuem diferenças entre si: os sistemas polarizados RealD e MasterImage (Transisom/Kelonik) agem por raios infravermelhos; o Dolby3D tem um filtro de cor no projetor. O RealD tem a tela metalizada. Os tipos de óculos também são bastante diferentes, e há uma disputa tecnológica muito grande para a produção de imagens 3D em superalta resolução que possam ser vistas a olho nu.

Besso apresenta novas tecnologias que vêm sendo implementadas. A cidade de Maringá (PR) receberá em breve, em primeira mão, um complexo que conta com uma tela 3D gigante, que vai quase até o chão e ocupa toda a largura da sala. Juntamente ao som espacial imersivo 3D, que evoluiu do Dolby 6.1 e 7.1 para o 23.1 (23 canais), a intenção é que o espectador se sinta totalmente envolvido pela experiência, configurando um tipo realmente diferenciado de cinema. Este esquema de som com 23 canais está atualmente sendo desenvolvido na Espanha, e o México já possui complexos com 3 salas com tecnologia 3D. É uma corrida muito grande, na qual muitos investimentos estão envolvidos.

“Um dos objetivos é combater a internet, o conteúdo sob demanda (VoD, sigla para Video-on-Demand) e os games, fornecendo uma experiência mais completa”, informa Besso. Por internet se entende a difusão de informação, a mudança de hábitos do consumidor e a pirataria, ao que Fábio Lima rebate: “Pirataria não é um problema, mas uma concorrência”. O VoD é a resposta comercial não-física à questão, que deve oferecer preços compatíveis, tal como já ocorre nos EUA. A contrapartida física é o cinema 3D, que deve oferecer um produto melhor e com mais vantagens.

Durante o debate, Walkiria Barbosa intervém citando números da Total Entertainment: “Devido à pirataria, com o ‘Se Eu Fosse Você 2’ perdemos um total de 1000% em lucros”. Fábio Lima: “O brasileiro passa muito tempo na internet, mas é porque o conteúdo é de graça”, completa. É um momento de transição, em que novos modelos e soluções têm sido pensados. O se mostraria necessário, agora, é infra-estrutura e incentivos governamentais a esses novos empreendimentos. Lima afirma que “O governo precisa se interessar mais pelo VoD e outras soluções de distribuição, tornando os produtos competitivos no mercado.”

Sobre infra-estrutura, Prof. Thoroh discorda, dizendo que o Brasil não está tão atrás assim: “O processo de modernização tecnológica é não-linear, até que todos atingem um turning point.” Para ele, o que falta é mão-de-obra especializada, porque incentivos à pesquisa existem. Walkiria Barbosa encerra o debate afirmando que não há no Brasil uma iniciativa para discutir o 3D fora do Festival do Rio.

IAEL – Marcas e Cinema: paródias e product placement

Posted on 30/09/2010 by Inês Nin

O segundo painel da IAEL dessa quinta-feira foi destinado à discussão de questões legais envolvidas no uso de marcas da indústria do entretenimento, como título, logos, nomes de personagens, locações, referências explícitas etc. Na mesa estavam presentes Anthony Lupo (Arent Fox LLP), Luiza Duarte Pereira (Murta Goyanes Advogados) e Louise Nemschoff (Independent Film and Television Alliance), moderados por Marcelo Goyanes (Murta Goyanes Advogados).

Luiza Duarte Pereira iniciou sua fala concentrando-se na questão da proteção às marcas criadas para um filme. Através do uso de slides, expôs pontos relacionados ao processo de registro/autorização de uso, que deve ser feito na INPI (Instituto Nacional de Propriedade Intelectual) pela produtora responsável. Consta, então, uma cláusula de originalidade, referente à cessão/licença exclusiva de direitos de roteiristas e argumentistas. O Brasil segue um sistema atributivo de direitos, o que significa que tanto a marca quanto a exploração comercial da obra, bem como de seus subprodutos, só vale efetivamente caso esta tenha sido registrada.
É importante que os contratos sejam minuciosamente elaborados, de modo que fiquem claras as condições referentes à utilização da marca por terceiros.

Pereira apresenta exemplos de product placement, distinguindo-os de casos em que se detectou violação de uma marca. A diferença consiste essencialmente em que, no caso do product placement, uma empresa fecha um acordo comercial com a produção de um filme para divulgar seu produto, inserindo o anúncio no contexto da narrativa. É uma ação paga e acordada mediante contrato. Violação, por outro lado, consiste no uso indevido de uma marca por outra.

Pereira ilustra sua fala usando exemplos da indústria do entretenimento: o filme “Tropa de Elite” tem uma logo com uma caveira, logo, uma marca; os personagens do “Sítio do Picapau Amarelo” têm nomes e um visual específico bem reconhecível.

Cita dois casos conhecidos de violação, ambos envolvendo a Rede Globo: a marca de produtos de beleza Maya veiculou uma propaganda ambientada na Índia, referindo-se, no texto, explicitamente à telenovela “Caminhos das Índias”. O caso foi a julgamento e terminou com a Maya sendo condenada a retirar o comercial do ar. Em outra situação, há mais tempo, uma telenovela da Globo citou “sabão da Costa” junto a uma menção a Iemanjá, entidade do candomblé e umbanda. A marca “Sabão da Costa” não gostou nada da menção, mas a roteirista argumentou que havia utilizado uma expressão de uso corrente: “sabão da Costa” é um termo tradicionalmente usado por escravos brasileiros, e o nome se refere à Costa do Marfim, na África.

Em seguida, Louise Hemschoff, advogada da Independent Film and Television Alliance, falou sobre o uso de marcas em filmes, concentrando-se nos usos humorísticos que podem ser feitos. Em quais casos o uso é legal, justificado como “fair use” (“utilização justa”), e em quais não é? Se comparada à brasileira, a legislação dos EUA é mais permissiva quanto a isso, diz ela. Existem variações: o fair use não-normativo, que corresponde a promoções em filmes, e a propaganda comparativa, que deve ser verdadeira. É permitido, nos EUA, que o comercial de um produto o compare a outro, desde que sua afirmação seja verdadeira.

Hemschoff, em sua fala, prefere se concentrar em um tipo específico de fair use: a paródia. Seu uso deve ser não comercial, e necessariamente humorístico. Nos EUA, há uma forte tradição de T-shirts, lembra, que funcionam nos meios urbanos como forma de auto-expressão. As paródias são manifestações criativas, e emergem, desse modo, frequentemente como comentário social.

Do ponto de vista jurídico, surge a pergunta: “Do que a paródia ri? Qual é seu objeto?”. Pode ser um comentário social ou se direcionar à própria marca em questão. Hemschoff traz diversos exemplos: bolsas Louis Vouitton de pelúcia branca feitas para cachorros, que zombam do alto valor atribuído a elas; a campanha “The North Face”, representada por uma curva, que se tornou “The South Butt”, com a curva invertida; um rótulo que lembra o do café Starbucks mostrando uma mulher semi-nua e drogada e “Enjoy Cocaine”, referente à Coca-Cola.

Mesmo quando se trata de comentário social, que poderia estar presente em todos os casos mencionados, existem limites quanto à exploração da marca. Ao menos quanto à justificativa da campanha por fair use. “As empresas detestam associações com sexo e drogas, isso é fato”, alerta. Por isso, tanto “Enjoy Cocaine” quanto a versão da logo da Starbucks foram vistas como difamação, gerando embates judiciais.

Finalmente, Anthony Lupo, da Arent Fox LLP, concentra sua exposição na legislação implicada no licenciamento de marcas nos EUA. Com enfoque sobre a indústria do cinema, reitera que os estadunidenses tendem a ser mais liberais. Diz que o registro de obras não é requerido, mas altamente recomendável, pois facilita acordos de product placement emedia placement. “Todas as condições referentes aos direitos de terceiros devem estar bem claras”, recomenda. Os usos a serem feitos de determinada marca devem ser estabelecidos por contrato.

A partir disso, são fixadas attorney fees, que consistem em taxas estipuladas previamente para a cessão de parte da obra, com usos estipulados. Devem-se ponderar os valores de mercadoria e a expressão artística, de maneira a não comprometer o produto final. Ao falar das vantagens e condições implicadas nessas parcerias, Lupo encerra seu discurso dizendo: “Transforme um filme com o product placement”.

ludologia e narratologia: teorias de jogos eletrônicos

por inês nin, julho de 2008

 

Em busca de teorias que fossem capazes de interpretar os jogos eletrônicos – forma midiática que emergia com a computação –, foi criado o campo acadêmico chamado game studies, ou estudo de jogos. Os textos mais antigos datam de 1997 e são de Janet H. Murray (Hamlet no Holodeck – O Futuro da Narrativa no Ciberespaço) e Espen J. Aarseth (Cybertext – Perspectives on Ergotic Literature). Ambos fazem uso do prefixo cyber, cunhado por Norbert Wiener em Cibernética (1948) e O Uso Humano dos Seres Humanos (1950), sendo o primeiro um livro de enfoque mais técnico e o segundo uma obra sobre a interação entre humanos e máquinas como forma de comunicação.

No momento presente, pouco mais de dez anos após as primeiras publicações no campo, sites na internet se multiplicaram acerca dos estudos; novos termos e abordagens foram trazidos para o campo; novos teóricos surgiram propondo debates e os games em si foram complexificados e aperfeiçoados. Dentro do campo crescente dos game studies, autores como Gonzalo Frasca e Jesper Juul surgiram inaugurando o que eles próprios chamam de ludologia (do inglês ludology), que em si se diferencia da abordagem feita da chamada (pelos ludologistas) de narratologia (narratology). Eles partem da teoria de Aarseth, que fala do cibertexto e da literatura egórdica – que necessita de um esforço maior que um simples virar a página de um livro para ser lida (apesar dos termos). Dela destacam em especial a passagem “To claim there is no difference between games and narratives is to ignore essential qualities of both categories” (AARSETH, 1997), de Cybertext, para ir em direção contrária à perspectiva “narratologista” de Murray e outros como Henry Jenkins.

Frasca foi quem “inaugurou” o que seria esta nova disciplina especificamente criada para estudar os jogos – eletrônicos ou não, ainda que tenha ênfase nestes – em um artigo de 1999 entitulado “Ludology Meets Narratology: Similitude and differences between (video)games and narrative.” O termo ludology, de fato, não foi cunhado por ele, e nem é novo, mas tem sido usado há algum tempo por jogadores de jogos não-eletrônicos. Ludus, em si, vem do grego e denota aspectos relativos a jogo. Na teoria ludológica ele vem assumir um significado mais específico.

Partindo das categorias criadas por Roger Caillois, Frasca estabelece a distinção entre ludus e paidia (em português, ludo e paideia) como formas diferentes de jogo. Esta necessidade é explicitada pela confusão potencialmente encontrada com as palavras “play” (em inglês, que tem duplo significado e pode ser tanto verbo quanto substantivo) e as respectivas em outras línguas, que só encontram um significado (em português poderíamos encontrar a distinção entre “jogo” e “brincadeira”, ou jogar/brincar). De acordo com a ludologia, essencialmente, ludo seria o jogo com regras, e paideia, sem regras.

A paideia aqui remete àquela brincadeira de crianças bem pequenas que não tem hora para acabar e cujas regras mudam de acordo com o gosto da criança. O ludo seria o jogo de adultos, como o xadrez, que tem objetivo definido, estratégia e regras bem demarcadas. O jogo do tipo ludo é o que mais se aproxima da concepção de jogos eletrônicos abordada pelos “narratologistas”. Ele traz em si os três atos apontados pela teoria estética de Aristóteles (ver Poética) e que se verificam mais tipicamente nas narrativas hollywoodianas.

Seriam correspondentes aos jogos eletrônicos de aventura. Murray encara os jogos de computador como novas formas de criar histórias, ou narrativas, considerando a constante escolha por caminhos que se tem que fazer nos jogos como direções tomadas por uma narrativa multi-linear. Os jogos especificamente analisados por ela são os MUDs (Multi-User Dungeons), precursores dos atuais MMORPGs (Massive Multi-player Online Role Playing Games), como Zork e Myst.

É de fato inegável a semelhança de tais jogos às narrativas cinematográficas, por exemplo, e diversos estudos têm sido feitos a respeito disso, apontando semelhanças e diferenças. Sem dúvida a principal diferença é que no caso do jogo eletrônico o interator (que interage com o texto; um nome para a forma de leitura descrita por Murray em meio digital) tem a possibilidade de “incorporar” o personagem e interagir ativamente com a história – que está então sendo construída.

Acerca disso, Frasca argumenta que pessoas reais não agem como personagens, especialmente se lembrarmos da forma tradicional deles e presente nas narrativas (dotadas de estrutura clássica). Personagens em geral são baseados em arquétipos, tipos, enquanto pessoais reais são seres muito mais complexos que esta forma simplificada criada para a literatura e peças teatrais.

As diferenças entre as concepções teóricas são muitas, enfim. Podemos estabelecer aqui as linhas gerais: os auto-intitulados ludologistas acreditam que o que há de principal em um jogo são as regras, que é o que os distingüe das formas narrativas e os próprios jogos entre si. O enfoque deles é no aspecto da simulação, argumentando que os jogos são antes baseados nisso que em narrativas (mas não excluem a possibilidade de existir jogos narrativos), cuja base está no comportamento (do software do jogo), que vai permitir ou não determinadas ações. Atentam ainda para o aspecto ideológico dos jogos, tanto em seu aspecto mais explícito (como nos chamados advergames – jogos que servem para promoções publicitárias) quanto implícito, que estaria presente em todos os jogos a partir de seus conjunto de regras: eles permitem determinada ação ou não.

Os chamados narratologistas, por eles próprios assumidos apenas como formalistas, como Murray, enfatizam os aspectos dos jogos que são comuns às narrativas, ou à criação de histórias: início, desenvolvimento e fim – vencedor ou perdedor. Segundo Murray, “um jogo é um tipo de narração abstrata que se parece com o universo da experiência cotidiana, mas condensa esta última a fim de aumentar o interesse.” (MURRAY, 1997). A partir daí ela cunha os conceitos que seriam específicos do caso dos jogos eletrônicos, como interator (no lugar do leitor; é um leitor que interage com a obra); imersão (pois a experiência de jogar se assemelha ao estar mergulhado em um ambiente totalmente novo); agência (em oposição a autoria, o interator agencia os elementos de um jogo) e transformação (a partir da agência do interator ele pode transformar aquela obra para os caminhos que deseja – desde que o jogo permita).

O “debate” entre estes dois enfoques dos game studies é só mais ou menos declarado, tendo os ludologistas surgido posteriormente para clamar uma distinção dos demais e chamando a atenção para a necessidade de uma disciplina que abordasse somente jogos. Murray os acusa de fazer uso de uma perspectiva a-histórica, negando a relação existente que se estabelece historicamente entre os diferentes meios e tecnologias da comunicação (indo em direção contrária, os ludologistas, do que afirmam Bolter e Grusin, quando falam do conceito de remediação – de fato, a dupla é enquadrada no campo dos narratologistas). Mas ao mesmo tempo diz encontrar alguns avanços no campo da ludologia, e clama por uma mútua cooperação (e não uma oposição). Resta ver os caminhos pelos quais a questão irá trafegar.

tempo e tecnologias: um estudo da temporalidade na era da técnica

por inês nin, janeiro de 2008

 

O tempo (aion) é uma criança que brinca jogando dados:
governo de criança.

Heráclito de Éfeso

Haven’t you seen
the signs of the time?

Lali Puna

 

Introdução

Os gregos possuem cinco palavras pra designar o tempo. São elas: cronos, o tempo medida do movimento, a dimensão do tempo mensurável; kronos ou chronos, o tempo crônico não mensurável, da repetição; kaïros, o tempo ligado à medicina, limitado, oportuno, preciso; nun, o tempo do agora extenso, simultâneo, de dimensão que ultrapassa limites espaciais e aion, o tempo desprendido do movimento, que inclui todas as outras modalidades; ele agarra o princípio que permite a fluência de tudo. Estas cinco concepções de temporalidade gregas não existem por acaso: é possível encarar o tempo de diversas formas e lidar com ele de variadas maneiras, especialmente quando consideramos que cada época, momento ou atividade possui, necessariamente, uma temporalidade à qual este é associado.

Um outro conceito sempre intrinsecamente associado ao tempo é a noção de espaço, pois o tempo se desloca no espaço e ambos fazem parte de um conjunto que compreende os fatores os quais seriam essenciais para explicar muito do que se relaciona à vida humana, suas ações e criações.

A clássica fórmula matemática utilizada para o cálculo da aceleração a equivale em seu quadrado à divisão do deslocamento (espaço) sobre a variação temporal. Entretanto, o que a contemporaneidade sugere é uma aceleração imensurada, talvez imensurável; o avanço da técnica e das tecnologias, hoje digitais, desde a industrialização e o estabelecimento de uma economia capitalista inauguraram novas formas de se relacionar com o tempo e, conseqüentemente, com o espaço.

Com o advento da informática e, posteriormente, da internet, as distâncias efetivamente foram encurtadas pela possibilidade de transferência virtual de dados, informações, produtos culturais e mesmo relações afetivas. E esta inovação tecnológica, de abrangência cultural, política, econômica e social sem precedentes traz diversas implicações e mudanças na vida humana e nas suas concepções sobre a vida e seus aspectos cotidianos.

Torna-se necessário considerar a dimensão política desses avanços tecnológicos, bem como suas implicações estéticas relacionadas também às mídias que os precederam, uma vez que toda inovação se insere dentro de um contexto que abarca determinadas relações de poder e formas de mediações para com seus habitantes. Não se pode pensar um tempo sem relacioná-lo a seus predecessores, e o mesmo vale para as formas midiáticas.

É possível perceber-se em conformidade com alguma forma de temporalidade, ou medida temporal, como por exemplo quando escutamos uma canção, que possui uma duração determinada, ou quando nos confrontamos com prazos pré-estabelecidos para a entrega de um trabalho. A marcação temporal é algo que não é possível de escapar da vida cotidiana. No entanto, essa imensa estrutura na qual nos encontramos inseridos é resultado de pura criação humana, na busca por uma organização da vida em sociedade.

Gilles Deleuze, ao analisar as idéias de Bergson, em especial no que se refere ao livro Matéria e Memória, faz uso de conceitos como imagem-tempocronosignos, enquanto Paul Virilio aborda o que chama de cronopolítica. As imagens a que Deleuze se refere participam diretamente do contexto político descrito por Virilio: a produção artística em épocas de reprodutibilidade técnica, seja no âmbito do cinema, do audiovisual como um todo ou nos meios digitais possui uma ordem que lhe é própria, uma estrutura de difusão e insersão/relação com a vida cotidiana muito particular.

O que procuro esclarecer é que, embora devamos reconhecer que esses autores tratam de objetos sensivelmente distintos, todos eles se referem genericamente ao mesmo objeto, e sem dúvida alguma ao mesmo recorte temporal, que é o momento contemporâneo. Estabelecendo paralelos entre o acirramento do capitalismo industrial e reconhecendo as estruturas inauguradas no momento de sua implementação, nosso foco são as análises das diferentes concepções possíveis no tempo, em específico aquelas que dizem respeito ao contexto presente: o tempo real.

Em se tratando de terminologias, Sibilia fala em tecnologias digitais; Deleuze em imagem-cristal e em arte industrial; Virilio em tecnologias do tempo real e em tempo-máquina; Lévy em informática. Explicitaremos a seguir quais são estas abordagens e como poderemos relacioná-las.

A única subjetividade é o tempo

Deleuze fala da percepção das imagens projetadas na tela do cinema da mesma forma como da vida humana. Utiliza filmes para explicar um conceito de temporalidade que parte de Bergson, e afirma que a única subjetividade é o tempo. De fato, o tempo está inscrito em toda e qualquer ação que façamos e assim é na arte, assim é na tela. A imagem que imprime a sensação de movimento, este oriundo de dentro ou de fora da tela, tem por princípio uma estrutura de tempo intrínseca a ela mesma, uma velocidade necessária para a sua movimentação e uma subjetividade a ser explicitada/alcançada através desses mecanismos.

Ele diz que somos interiores ao tempo, e não o inverso: nascemos dentro do cristal do tempo e devemos sair dele; ou, misturando a vida ao cinema, ela deve sair dele (o cristal do tempo) depois de ensaiada. O recurso da imagem-cristal é utilizado para explicar a temporalidade própria da imagem, ou o tempo em sua dimensão mais ampla, que conteria ele mesmo dentro de si nós mesmos, não enquanto vida, pois ela lhe escapa, mas a morte, que a antecede.

O cristal é complexo e possui diversas facetas, formas de manifestação e uma formação constante. Ele compreende dentro de si o tempo presente que nunca permanece enquanto tal, mas está sempre oscilando entre passado e futuro; a condição presente é a única constante. E essa ideia em muito se assemelha ao conceito de tempo real.

A imagem-cristal é composta por cristais de tempo, ou por espelhos enviesados. Isto porque um cristal perfeito, finalizado, seria a representação de um estado ideal:

Suponhamos um estado ideal que fosse um cristal perfeito, acabado. (…) Suas facetas são espelhos enviesados (…), e os espelhos não se contentam em refletir a imagem atual, eles constituem o prisma, a lente onde a imagem desdobrada não pára de correr atrás de si mesma para se encontrar. (DELEUZE, 1990, P. 104)

Deleuze completa dizendo que não há cristal acabado, “todo cristal é, em direito, infinito, está se fazendo.” (DELEUZE, 1990, p. 110).

Segundo ele,  o tempo é a coexistência de todos os níveis de duração. Relacionando o cineasta Fellini a Bergson, diz que “somos ao mesmo tempo a infância, a velhice, a maturidade” (DELEUZE, 1992, p. 64). As obras de Fellini, em especial as citadas 8 ½, A Cidade das Mulheres e O Estado das Coisas tratariam destes temas, lidando com desde o lúdico da infância até a memória, a velhice.

Ainda partindo de Bergson, para Deleuze o tempo é aberto e está em constante mutação: trata-se do tempo não-cronológico, como a concepção grega identificada com os termos kronos ou chronos, o tempo da repetição:

O que constitui a imagem-cristal é a operação mais fundamental do tempo: já que o passado não se constitui depois do presente que ele foi, mas ao mesmo tempo, é preciso que o tempo se desdobre a cada instante em presente e passado, que por natureza diferem um do outro, ou, o que dá no mesmo, desdobre o presente em duas direções heterogêneas, uma se lançando em direção ao futuro e a outra caindo no passado. (…) A imagem-cristal não é o tempo, mas vemos o tempo no cristal. Vemos a perpétua fundação do tempo, o tempo não-cronológico dentro do cristal, Cronos e não Chronos. (DELEUZE, 1990, P. 102)

O dinheiro é tempo

O filme é movimento, mas o filme dentro do filme é o dinheiro, é o tempo.

Gilles Deleuze

A partir da afirmação de que “a arte industrial não é a reprodução mecânica, mas a relação, que se interiorizou com o dinheiro.” (DELEUZE, 1990, p. 97), Deleuze abre espaço para a discussão acerca da relação estabelecida pelo capitalismo industrial com o tempo. A máxima burguesa “tempo é dinheiro” consta inclusive na Constituição dos EUA, segundo afirma Paula Sibilia, e chega a penetrar no âmbito da arte, tornando as obras produtos e a criatividade, mercadoria, ou força de trabalho que se vende como todas as demais.

Sibilia fala do “longo processo de virtualização do dinheiro” (SIBILIA, 2002, p. 26), que, ainda que não seja de forma alguma exclusividade das moedas correntes, é parte considerável do processo maior que é o do acirramento do capitalismo e seus mecanismos de controle. Citando Michel Foucault em Vigiar e Punir, Sibilia fala do capital financeiro se sobrepondo ao produtivo, “impondo a circulação de fluxos ao redor do planeta em uma tendência generalizada de abstração e virtualização dos valores” (SIBILIA, 2002, p. 25) e estabelecendo uma crescente utilização de bens como serviços.

De maneira simples e direta, Deleuze cita L’Herbier para afirmar que

com o espaço e o tempo se tornando cada vez mais caros no mundo moderno, a arte teve de se fazer ‘arte industrial internacional’, quer dizer, cinema, para comprar espaço e tempo enquanto ‘títulos imaginários do capital humano’. (…) Bresson mostra que, o dinheiro, por ser da ordem do tempo, torna impossível qualquer reparação do mal, qualquer equivalência ou retribuição justa. (DELEUZE, 1990, pp. 98-99, grifo meu)

O tempo movido a dinheiro implica em velocidade, em otimização máxima do tempo, como diz um jornalista da revista Scientific American, em uma edição especial sobre o tempo: “a era tecnológica tornou-se um jogo em que todos querem sempre estar à frente”. O que não é de maneira alguma novidade, mas se impõe enquanto meio e finalidade na sociedade contemporânea que não se subestime o tempo, que se aceite as suas partições, os seus limites e imposições; em resumo, o capitalismo industrial da contemporaneidade exige que se lide com o tempo e suas imposições as mais obscuras e entranhadas na vida cotidiana de forma a manter o estrito controle das vidas humanas, e sugue até a última gota de sangue daqueles inseridos no mercado.

O preço de se estar sempre “à frente”, “atualizado”, “moderno” e bem-sucedido é participar da sociedade da forma como ela impõe a si mesma, infestada de limites, regras e relógios com o tempo sendo cronometrado.

Citando Rifkin, Paula afirma que “‘a propriedade é uma instituição lenta demais para se ajustar à nova velocidade da nossa cultura’, pois ela se baseia na ideia de que possuir um ativo físico em um período extenso de tempo é algo valioso; no entanto, ‘em um mundo de produção customizada, de inovação e atualizações contínuas e de ciclos de vida de produto cada vez mais breves, tudo se torna quase imediatamente desatualizado’”. (SIBILIA, 2002, p. 27, grifos meus)

Divisões do tempo

Quase sempre quando aparece uma matéria jornalística na televisão sobre a questão do tempo, seja sobre calendários, colecionadores, idosos ou datas festivas, ela costuma ser ilustrada pela imagem de um relógio. O “tic-tac” é símbolo quase onipresente ao se falar de tempo, e ele representa apenas uma faceta do mesmo, que é a do tempo mensurável, cronos, dividido em números. O relógio é uma invenção antiga do homem, que foi sendo aprimorado e assimilado pela forma como a sociedade se estrutura, podendo ser visto com o cerne de toda a ordem vigente.

Paula Sibilia diz que “tal enquadrinhamento do tempo não ocorreu sem violência: os organismos humanos tiveram que sofrer uma série de operações para se adaptarem aos novos compassos” (SIBILIA, 2002, p. 24). Segundo Foucault, foram estabelecidos inúmeros “mecanismos que faziam funcionar a sociedade industrial a um ritmo sempre cronometrado por infinitos relógios, cada vez mais precisos na incansável tarefa de pautar o tempo dos homens” (SIBILIA, 2002, p. 25).

Esses mecanismos, estabelecidos pelos próprios homens para si mesmos, fizeram entranhar na sociedade valores mensuráveis e medidos a todo momento – em dinheiro –, ideias bizarras como a ‘perda de tempo’, virtudes como a pontualidade e formas de controle baseadas em valores exatos e atitudes padronizadas – assim como se pretendem ser todos os produtos.

Entretanto, com o avanço do tempo e a transferência gradual das estruturas disciplinares da sociedade capitalista para as típicas da sociedade de controle (DELEUZE, 1992, a partir de William Burroughs), diz-se que o tempo foi perdendo os seus interstícios, o que pode ser facilmente ilustrado pelos relógios digitais, que não mais apresentam as frações menores dos valores de medição do tempo. Indo ainda mais longe, Sibilia afirma que

A função do relógio foi completamente internalizada, com uma proliferação de modelos nos lares do mundo inteiro, nos prédios e nas ruas das cidades, e inclusive embutidos nos pulsos das pessoas e nos artefatos de uso cotidiano. (SIBILIA, 2002, p. 30)

Essa internalização dos mecanismos de controle, representados pelo relógio, é característica básica para definir a sociedade de controle. Acerca do tema da temporalidade, Deleuze coloca que

Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador universal. (DELEUZE, 1992, pp. 221-222, grifo meu)

Esse contexto inaugura uma complexidade muito maior nas formas de controle, que, como diz Deleuze, “possui anéis de uma serpente” (DELEUZE, 1992, pp. 226) que são ainda mais complicados que seus antecessores.

O autopoliciamento generalizado, inaugurado pelas estratégias de biopoder (aquele que tem como foco a vida humana), encontra nas tecnologias digitais o principal meio de impor a sua força. “A tecnologia adquire uma importância fundamental, passando das leis mecânicas e analógicas para as informáticas e digitais” (SIBILIA, 2002, p. 28, grifos da autora). E estas geralmente se apresentam revestidas de uma roupagem amigável, sendo vendidas como inovações tecnológicas ou gadgets que visam a facilitar a vida humana, mas não raro, condicioná-la e vigiá-la.

As tecnologias do tempo real

Paul Virilio inicia seu livro O Espaço Crítico e as Perspectivas do Tempo Real falando do espaço da cidade, das relações dos homens com este espaço e suas dimensões crítica e política. Termina por falar do tempo real e da supressão do espaço físico por meio das tecnologias digitais. Trocando em miúdos, Virilio defende que as dimensões naturais do espaço teriam sido poluídas pelas tecnologias do tempo real.

As dimensões às quais ele se refere são orgânicas, e as mesmas subvertidas e encurtadas em tempo de trajeto com a revolução dos transportes, hoje já anciã, e que tornou possíveis muitas viagens, tanto de mercadorias quanto de pessoas, em curtos espaços de tempo.

Em se tratando deste controverso ponto de vista sobre as inovações tecnológicas, não se deve deixar de lado nenhuma ótica possível: se de um lado inúmeras transações, profissões, viagens e relacionamentos foram tornados possíveis graças ao advento dos transportes – sejam eles mediados por terra, ar ou água –, por outro novas relações com a distância – logo, com o espaço e com o tempo – foram estabelecidas e as antigas, rebaixadas para a memória coletiva.

O que é importante ter em mente é que estabelecer uma dimensão crítica para com a situação presente – e nela as tecnologias digitais e seus avanços cada vez mais ganham destaque – torna-se necessário, e disso faz parte analisar os prós e os contras das inovações, ou ao menos especular sobre eles.

Distante, muito distante dos textos sobre tecnologias da comunicação que exaltam as maravilhas das inovações que surgem a cada dia, Virilio fala com extrema cautela e mesmo exaltação em movimento contrário das tecnologias do tempo real, como ele as chama, e as quais, indo muito mais longe que os transportes um dia inauguraram, propõem e possibilitam um anulamento das distâncias físicas e do espaço do lugar de encontro, em virtude do espaço virtual. Ele afirma que

É o fim do mundo ‘exterior’, o mundo inteiro torna-se subitamente endótico, um fim que implica tanto o esquecimento da exterioridade espacial quanto da exterioridade temporal (now-future) em benefício único do instante ‘presente’, deste instante real das telecomunicações instantâneas. (VIRILIO, 1993, p. 107, grifos do autor)

Considerando-se a data de publicação da obra (1993), nos anos 90 a informática ainda engatinhava, se comparada aos terabites de memória real já existentes hoje e a velocidade com que as informação caminha graças à internet. No entanto, em 1993 já existia internet, certo que não com a mesma abrangência, e as transmissões de mídias de áudio e vídeo começavam a serem feitas.

Virilio utiliza-se do prefixo “tele” para compor as palavras que ele relaciona a essas tecnologias do tempo real, que assumiriam sua expressão máxima com a internet e suas possibilidades de comunicação à distância através de variadas mídias. À época, a televisão parecia ainda representar a melhor metáfora.

Ao falar do impacto do tempo-máquina sobre o ambiente, em comparação aos outros impactos considerados poluidores do espaço físico, Virilio encontra sua maior hipérbole, mas para a qual ele mesmo conclui uma possível solução:

Apesar da ausência de intervalo devida à inexistência do espaço real do encontro, a interface do signo nulo das ondas eletromagnéticas que permite a telecomunicação impede a confusão habitual do aqui e agora, uma vez que a instantaneidade da interatividade não elimina jamais a distinção entre o ato e o agir à distância. (VIRILIO, 1993, p. 104)

Pierre Lévy, em Tecnologias da Inteligência, faz um estudo das diferentes linguagens e técnicas utilizadas pelo homem para enfim chegar à informática. No livro ele estabelece o que seriam os três pólos do espírito, ou os três momentos distintos de formas de comunicação, que não se localizam temporalmente; eles se misturam em cada instante e lugar, mas com intensidade variável.

Estabelecendo uma ponte com as idéias de Virilio, Lévy diz que

Por analogia com o tempo circular da oralidade primária e o tempo linear das sociedades históricas, poderíamos falar de uma espécie de implosão cronológica(1), de um tempo pontual instaurado pelas redes de informática. (LÉVY, 1997, p. 115, grifo do autor)

O tempo da oralidade primária é(2) circular, marcado pela imediatez e pela idéia de reversibilidade; “como o espaço, era concreto, definido por e relacionado com acontecimentos, colorido pelas emoções e carregado de significado simbólico.” (SZAMOSI, 1986, p. 69). Ele completa:

Essa visão circular e periódica do tempo, com suas raízes na mecânica do sistema solar e com suas manifestações nos ciclos dia-noite e sazonais, era um modelo simbólico soberbamente útil. (…) O tempo circular era também reversível (…) O tempo repetitivo torna até tolerável a idéia de morte pela promessa de renascimento (SZAMOSI, 1986, p. 70).

O tempo linear das sociedades históricas, que é o da escrita, é relacionado ao conceito de inscrição no tempo (cronológico); a memória encontra-se semi-objetivada na escrita, existindo uma identificação parcial entre indivíduo e saber que possibilita uma leitura crítica, sendo regido pela noção de verdade. No tempo da informática, da comunicação digital, “as mensagens escritas (…) são cada vez menos concebidas para durar” (LÉVY, 1997, p. 121).

Na era da informática, ou das tecnologias digitais, a palavra-chave é velocidade, o perigo, paradoxalmente, é a inércia (como os engarrafamentos), de acordo com Paul Virilio. Diante deste ambiente, a simulação se apresenta como uma experiência possível e mais rica sensorialmente do que suas antecessoras, ainda que a memória torne-se subitamente um conceito subjetivo e questionável (quanto à sua permanência – é o tempo da imediatez e não se sabe até onde vai a confiabilidade das mídias de fibra ótica).

O presente se sobrepõe às outras temporalidades e é marcado por pontos, ao invés de círculos (oralidade) ou linhas (escrita). Lévy conclui, acerca da simulação e da condição do tempo real dizendo que

A simulação, portanto, não remete a qualquer pretensa irrealidade do saber ou da relação com o mundo, mas antes a um aumento dos poderes da imaginação e da intuição. Da mesma forma, o tempo real talvez anuncie o fim da história, mas não o fim dos tempos, nem a anulação do devir. Em vez de uma catástrofe cultural, poderíamos ler nele um retorno ao kaïros dos sofistas. O conhecimento por simulação e a interconexão em tempo real valorizam o momento oportuno, a situação, as circunstâncias relativas, por oposição ao sentido molar da história ou à verdade fora do tempo e espaço, que talvez fossem apenas efeitos da escrita. (LÉVY, 1997, pp. 125-126)

Este trecho estabelece uma perspectiva lúcida e crítica sobre o problema do tempo real e as suas propriedades em relação às outras formas de comunicação que antecederam a informática. Como iremos lidar com elas, com as tecnologias digitais e sua imediatez, somadas a outras faces que elas podem vir a assumir, é algo a ser tido ainda como incerto, dado o caráter de novidade que ainda as circunda.

Nada é certo no tempo presente, porque se o agora já era capaz de se desdobrar em muitos, na dita era digital essas possibilidades se multiplicam, ao menos as possibilidades de comunicação se multiplicam e a velocidade se impõe como natural. Ainda assim, mesmo que o tempo se prolongue, multiplique ou apresente novos problemas, existe um algo que o coloca mais ou menos dentro de uma estrutura abstrata. Citando Deleuze (1990, p. 123), “o que o passado é para o tempo, o sentido é para a linguagem, e a ideia para o pensamento.”

 

Notas

(1) Da ordem de chronos ou kronos.

(2) Ainda que ele se relacione mais intimamente com um momento da história anterior à escrita, é presente ainda hoje em algumas sociedades ou perdura misturado aos outros.

 

Referências

DELEUZE, Gilles. A Imagem-tempo. (1990). São Paulo: Editora Brasiliense.

DELEUZE, Gilles. Conversações. (1992). São Paulo: Editora 34.

LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência – O Futuro do Pensamento na Era da Informática. (1997). São Paulo: Editora 34.

Scientific American Brasil. Edição Especial Paradoxos do Tempo (2007). São Paulo: Ediouro.

SIBILIA, Paula. O Homem Pós-Orgânico – Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. (2002). Rio de Janeiro: Relume Dumará.

SZAMOSI, Géza. Tempo & Espaço – dimensões gêmeas. (1986). Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

VIRILIO, Paul. O Espaço Crítico e as Perspectivas do Tempo Real. (1993). São Paulo: Editora 34.