asfalto dança, revolvido e celeste

do que seremos capazes. quando estivermos em residência. quando estivermos juntos. quando soubermos desatar os laços e não nos deixar contaminar pelas ruas. pelo ruído que envolve.

encruzilhadas de encontros e um tanto de terra descascada, casa — muitos moraram aqui. nós estamos. um curto período de tempo, esses dias: vejo transição. pra mim transição, enfim transição, de polir arestas transição.

transitoriedade. estamos. rio de janeiro se impõe transitório, quando cutuca suas terras abaixo, tantas camadas. seria não só o pó que entra pelas janelas ou o ruído alto de máquinas, às vezes acontece, como o samba. mas ele perdura. a serra elétrica é tão sabão quanto as suas meias, você não questiona elas. você não questiona a serra elétrica e se pensar nem os helicópteros (aviões sentimos muito por essas bandas), nem a furadeira você considera. quem escolheu esse ruído? haveria máquinas silenciosas?

tenho preferido manivelas e pedais e reco-recos a qualquer custo para não ensurdecer qualquer vizinhança, seja da minha casa ou de quem for. e minha casa minha dívida, minha dúvida ou desejo ou de fato algo que não existe. não existem quase casas no sentido lar numa cidade como essa, em que se atravessa túneis subterrâneos e então todos viramos asfalto, aos poucos asfalto, que é para casar com toda a máfia das construtoras que nos assalta.

tomados de assalto, abrupto, e no entanto leva anos. o balneário da tevê dos sonhos de tantos brasileiros e brasileiras, nesta ordem subalterna que tem tantas categorias pouco gentis e pouco dignas porque sim ordenaram, na terra onde se fez escravos, então refúgio de uns brancos europeus que então trouxeram armas e ainda matam nativos, hoje

multidão, faremos e somos e construímos pontes entre as membranas que descolam e as camadas que vêm à superfície como fúria, furiosamente nos deixando atravessar por camadas que caem, pouco a pouco, todos os dias, furiosamente perfuradas por máquinas ruidosas que constroem túneis por onde passa todo tipo de concreto e rios que não são mais rios mas fétidos detritos disso que chamam saneamento básico, as pessoas.

as pessoas se juntam, as pessoas colaboram. as pessoas pensam rua. as pessoas nunca serão uníssono, multidão não é sobre isso. aprendi muito sobre dissenso e distensão e uns saberes práticos de autonomia (urbana) durante ocupações de tempos e tempos, que de tempos em tempos ocorrem, e cruzamos com elas. são terreno de mistura e utopias postas à mesa, ações e abraços e conjuntas confusões e desfiladeiros de acasos fortuitos, dentre outros movimentos

o que será todo esse concreto que nos envolve? serão os viadutos capazes de nos engolir? lembrarão os carros do que um dia foram, quando não havia motores? como era viver sem motores?

percorro ruínas com uma bicicleta.

relações com esforço, pernas. como meias, sabão: relações com esforço, braços. me yoga pela manhã, para assentar os músculos e não torturá-los demais. gradativamente. alcanço

subir montanhas era uma intenção perspicaz e há muito alimentada nisso que chamam rio — tantas matas — complexa de pôr em prática assim como desejada, talvez por excesso de desejo, talvez pela clássica fatalidade dos dias e das noites (e as divisões dos tempos e do trabalho, nosso empecilho mais clássico, assim como as noitadas)

florestas de noite ainda existem, mas não as adentramos na cidade (sobrevivência; prioridades)

voaria lá nos altos dos montes e pernas fortes, pernas dormentes, pernas crescentes assim como a lua que agora nos assiste lá do alto, construindo lares acasos outros muito mais afáveis que quaisquer uns feitos em concreto

são de matéria fluida os sonhos mais compridos e bonitos e velozes de saborear (é possível viver de matéria, maleável e componente fértil de outras casas, outras vozes, construção elementar de inventos e mundos, sim casas, habitações e cotidianos)

e cotidianos velozes, meu bem, sabemos, temos demais. mas se pensar outro tipo de velocidade, aquela dos sonhos, em que se está aqui e depois em outro lugar, assim seguido, assim sobreposto, tempo-colagem, curva

quis trabalhar com técnicas velhas de fotografia porque sim nostálgica, e também mercado de pulgas, o melhor das cidades, cheio das memórias dos nossos avós que não foram nossos, mas participaram de um sobremundo que nos atravessa, que salta desses lugares quase esquecidos e vem cá na nossa frente dizer que ainda existem (e em vivas cores, vivas vivas e pueris)

de viagens pro estrangeiro também se enche o mercado de pulgas, a praça xv, e assim muitos mickeys povoam um imaginário infantil colonizado, que só três décadas depois começa a se dar conta inteiramente do que terá afinal sido tudo aquilo, todos aqueles bichos que não existiam nessas terras, todos uns referenciais meio estranhos, coloridinhos, colonizadinhos, branquinhos e muito pouco críticos, afinal

(e de crítica seremos muitos, mas também respirar, respirar, que não seja esse pó que nos atravessa mas também a importância tão gigante de ser permeável, de não se afetar e assim criar ossos mais resistentes que possam sobreviver a tanta matéria revolvida dos solos, todos os passados remotos mais amendrontadores que sobem com tanta fúria à superfície e dançam

dançar, vamos

inesnin; casacomum

tempo e tecnologias: um estudo da temporalidade na era da técnica

por inês nin, janeiro de 2008

 

O tempo (aion) é uma criança que brinca jogando dados:
governo de criança.

Heráclito de Éfeso

Haven’t you seen
the signs of the time?

Lali Puna

 

Introdução

Os gregos possuem cinco palavras pra designar o tempo. São elas: cronos, o tempo medida do movimento, a dimensão do tempo mensurável; kronos ou chronos, o tempo crônico não mensurável, da repetição; kaïros, o tempo ligado à medicina, limitado, oportuno, preciso; nun, o tempo do agora extenso, simultâneo, de dimensão que ultrapassa limites espaciais e aion, o tempo desprendido do movimento, que inclui todas as outras modalidades; ele agarra o princípio que permite a fluência de tudo. Estas cinco concepções de temporalidade gregas não existem por acaso: é possível encarar o tempo de diversas formas e lidar com ele de variadas maneiras, especialmente quando consideramos que cada época, momento ou atividade possui, necessariamente, uma temporalidade à qual este é associado.

Um outro conceito sempre intrinsecamente associado ao tempo é a noção de espaço, pois o tempo se desloca no espaço e ambos fazem parte de um conjunto que compreende os fatores os quais seriam essenciais para explicar muito do que se relaciona à vida humana, suas ações e criações.

A clássica fórmula matemática utilizada para o cálculo da aceleração a equivale em seu quadrado à divisão do deslocamento (espaço) sobre a variação temporal. Entretanto, o que a contemporaneidade sugere é uma aceleração imensurada, talvez imensurável; o avanço da técnica e das tecnologias, hoje digitais, desde a industrialização e o estabelecimento de uma economia capitalista inauguraram novas formas de se relacionar com o tempo e, conseqüentemente, com o espaço.

Com o advento da informática e, posteriormente, da internet, as distâncias efetivamente foram encurtadas pela possibilidade de transferência virtual de dados, informações, produtos culturais e mesmo relações afetivas. E esta inovação tecnológica, de abrangência cultural, política, econômica e social sem precedentes traz diversas implicações e mudanças na vida humana e nas suas concepções sobre a vida e seus aspectos cotidianos.

Torna-se necessário considerar a dimensão política desses avanços tecnológicos, bem como suas implicações estéticas relacionadas também às mídias que os precederam, uma vez que toda inovação se insere dentro de um contexto que abarca determinadas relações de poder e formas de mediações para com seus habitantes. Não se pode pensar um tempo sem relacioná-lo a seus predecessores, e o mesmo vale para as formas midiáticas.

É possível perceber-se em conformidade com alguma forma de temporalidade, ou medida temporal, como por exemplo quando escutamos uma canção, que possui uma duração determinada, ou quando nos confrontamos com prazos pré-estabelecidos para a entrega de um trabalho. A marcação temporal é algo que não é possível de escapar da vida cotidiana. No entanto, essa imensa estrutura na qual nos encontramos inseridos é resultado de pura criação humana, na busca por uma organização da vida em sociedade.

Gilles Deleuze, ao analisar as idéias de Bergson, em especial no que se refere ao livro Matéria e Memória, faz uso de conceitos como imagem-tempocronosignos, enquanto Paul Virilio aborda o que chama de cronopolítica. As imagens a que Deleuze se refere participam diretamente do contexto político descrito por Virilio: a produção artística em épocas de reprodutibilidade técnica, seja no âmbito do cinema, do audiovisual como um todo ou nos meios digitais possui uma ordem que lhe é própria, uma estrutura de difusão e insersão/relação com a vida cotidiana muito particular.

O que procuro esclarecer é que, embora devamos reconhecer que esses autores tratam de objetos sensivelmente distintos, todos eles se referem genericamente ao mesmo objeto, e sem dúvida alguma ao mesmo recorte temporal, que é o momento contemporâneo. Estabelecendo paralelos entre o acirramento do capitalismo industrial e reconhecendo as estruturas inauguradas no momento de sua implementação, nosso foco são as análises das diferentes concepções possíveis no tempo, em específico aquelas que dizem respeito ao contexto presente: o tempo real.

Em se tratando de terminologias, Sibilia fala em tecnologias digitais; Deleuze em imagem-cristal e em arte industrial; Virilio em tecnologias do tempo real e em tempo-máquina; Lévy em informática. Explicitaremos a seguir quais são estas abordagens e como poderemos relacioná-las.

A única subjetividade é o tempo

Deleuze fala da percepção das imagens projetadas na tela do cinema da mesma forma como da vida humana. Utiliza filmes para explicar um conceito de temporalidade que parte de Bergson, e afirma que a única subjetividade é o tempo. De fato, o tempo está inscrito em toda e qualquer ação que façamos e assim é na arte, assim é na tela. A imagem que imprime a sensação de movimento, este oriundo de dentro ou de fora da tela, tem por princípio uma estrutura de tempo intrínseca a ela mesma, uma velocidade necessária para a sua movimentação e uma subjetividade a ser explicitada/alcançada através desses mecanismos.

Ele diz que somos interiores ao tempo, e não o inverso: nascemos dentro do cristal do tempo e devemos sair dele; ou, misturando a vida ao cinema, ela deve sair dele (o cristal do tempo) depois de ensaiada. O recurso da imagem-cristal é utilizado para explicar a temporalidade própria da imagem, ou o tempo em sua dimensão mais ampla, que conteria ele mesmo dentro de si nós mesmos, não enquanto vida, pois ela lhe escapa, mas a morte, que a antecede.

O cristal é complexo e possui diversas facetas, formas de manifestação e uma formação constante. Ele compreende dentro de si o tempo presente que nunca permanece enquanto tal, mas está sempre oscilando entre passado e futuro; a condição presente é a única constante. E essa ideia em muito se assemelha ao conceito de tempo real.

A imagem-cristal é composta por cristais de tempo, ou por espelhos enviesados. Isto porque um cristal perfeito, finalizado, seria a representação de um estado ideal:

Suponhamos um estado ideal que fosse um cristal perfeito, acabado. (…) Suas facetas são espelhos enviesados (…), e os espelhos não se contentam em refletir a imagem atual, eles constituem o prisma, a lente onde a imagem desdobrada não pára de correr atrás de si mesma para se encontrar. (DELEUZE, 1990, P. 104)

Deleuze completa dizendo que não há cristal acabado, “todo cristal é, em direito, infinito, está se fazendo.” (DELEUZE, 1990, p. 110).

Segundo ele,  o tempo é a coexistência de todos os níveis de duração. Relacionando o cineasta Fellini a Bergson, diz que “somos ao mesmo tempo a infância, a velhice, a maturidade” (DELEUZE, 1992, p. 64). As obras de Fellini, em especial as citadas 8 ½, A Cidade das Mulheres e O Estado das Coisas tratariam destes temas, lidando com desde o lúdico da infância até a memória, a velhice.

Ainda partindo de Bergson, para Deleuze o tempo é aberto e está em constante mutação: trata-se do tempo não-cronológico, como a concepção grega identificada com os termos kronos ou chronos, o tempo da repetição:

O que constitui a imagem-cristal é a operação mais fundamental do tempo: já que o passado não se constitui depois do presente que ele foi, mas ao mesmo tempo, é preciso que o tempo se desdobre a cada instante em presente e passado, que por natureza diferem um do outro, ou, o que dá no mesmo, desdobre o presente em duas direções heterogêneas, uma se lançando em direção ao futuro e a outra caindo no passado. (…) A imagem-cristal não é o tempo, mas vemos o tempo no cristal. Vemos a perpétua fundação do tempo, o tempo não-cronológico dentro do cristal, Cronos e não Chronos. (DELEUZE, 1990, P. 102)

O dinheiro é tempo

O filme é movimento, mas o filme dentro do filme é o dinheiro, é o tempo.

Gilles Deleuze

A partir da afirmação de que “a arte industrial não é a reprodução mecânica, mas a relação, que se interiorizou com o dinheiro.” (DELEUZE, 1990, p. 97), Deleuze abre espaço para a discussão acerca da relação estabelecida pelo capitalismo industrial com o tempo. A máxima burguesa “tempo é dinheiro” consta inclusive na Constituição dos EUA, segundo afirma Paula Sibilia, e chega a penetrar no âmbito da arte, tornando as obras produtos e a criatividade, mercadoria, ou força de trabalho que se vende como todas as demais.

Sibilia fala do “longo processo de virtualização do dinheiro” (SIBILIA, 2002, p. 26), que, ainda que não seja de forma alguma exclusividade das moedas correntes, é parte considerável do processo maior que é o do acirramento do capitalismo e seus mecanismos de controle. Citando Michel Foucault em Vigiar e Punir, Sibilia fala do capital financeiro se sobrepondo ao produtivo, “impondo a circulação de fluxos ao redor do planeta em uma tendência generalizada de abstração e virtualização dos valores” (SIBILIA, 2002, p. 25) e estabelecendo uma crescente utilização de bens como serviços.

De maneira simples e direta, Deleuze cita L’Herbier para afirmar que

com o espaço e o tempo se tornando cada vez mais caros no mundo moderno, a arte teve de se fazer ‘arte industrial internacional’, quer dizer, cinema, para comprar espaço e tempo enquanto ‘títulos imaginários do capital humano’. (…) Bresson mostra que, o dinheiro, por ser da ordem do tempo, torna impossível qualquer reparação do mal, qualquer equivalência ou retribuição justa. (DELEUZE, 1990, pp. 98-99, grifo meu)

O tempo movido a dinheiro implica em velocidade, em otimização máxima do tempo, como diz um jornalista da revista Scientific American, em uma edição especial sobre o tempo: “a era tecnológica tornou-se um jogo em que todos querem sempre estar à frente”. O que não é de maneira alguma novidade, mas se impõe enquanto meio e finalidade na sociedade contemporânea que não se subestime o tempo, que se aceite as suas partições, os seus limites e imposições; em resumo, o capitalismo industrial da contemporaneidade exige que se lide com o tempo e suas imposições as mais obscuras e entranhadas na vida cotidiana de forma a manter o estrito controle das vidas humanas, e sugue até a última gota de sangue daqueles inseridos no mercado.

O preço de se estar sempre “à frente”, “atualizado”, “moderno” e bem-sucedido é participar da sociedade da forma como ela impõe a si mesma, infestada de limites, regras e relógios com o tempo sendo cronometrado.

Citando Rifkin, Paula afirma que “‘a propriedade é uma instituição lenta demais para se ajustar à nova velocidade da nossa cultura’, pois ela se baseia na ideia de que possuir um ativo físico em um período extenso de tempo é algo valioso; no entanto, ‘em um mundo de produção customizada, de inovação e atualizações contínuas e de ciclos de vida de produto cada vez mais breves, tudo se torna quase imediatamente desatualizado’”. (SIBILIA, 2002, p. 27, grifos meus)

Divisões do tempo

Quase sempre quando aparece uma matéria jornalística na televisão sobre a questão do tempo, seja sobre calendários, colecionadores, idosos ou datas festivas, ela costuma ser ilustrada pela imagem de um relógio. O “tic-tac” é símbolo quase onipresente ao se falar de tempo, e ele representa apenas uma faceta do mesmo, que é a do tempo mensurável, cronos, dividido em números. O relógio é uma invenção antiga do homem, que foi sendo aprimorado e assimilado pela forma como a sociedade se estrutura, podendo ser visto com o cerne de toda a ordem vigente.

Paula Sibilia diz que “tal enquadrinhamento do tempo não ocorreu sem violência: os organismos humanos tiveram que sofrer uma série de operações para se adaptarem aos novos compassos” (SIBILIA, 2002, p. 24). Segundo Foucault, foram estabelecidos inúmeros “mecanismos que faziam funcionar a sociedade industrial a um ritmo sempre cronometrado por infinitos relógios, cada vez mais precisos na incansável tarefa de pautar o tempo dos homens” (SIBILIA, 2002, p. 25).

Esses mecanismos, estabelecidos pelos próprios homens para si mesmos, fizeram entranhar na sociedade valores mensuráveis e medidos a todo momento – em dinheiro –, ideias bizarras como a ‘perda de tempo’, virtudes como a pontualidade e formas de controle baseadas em valores exatos e atitudes padronizadas – assim como se pretendem ser todos os produtos.

Entretanto, com o avanço do tempo e a transferência gradual das estruturas disciplinares da sociedade capitalista para as típicas da sociedade de controle (DELEUZE, 1992, a partir de William Burroughs), diz-se que o tempo foi perdendo os seus interstícios, o que pode ser facilmente ilustrado pelos relógios digitais, que não mais apresentam as frações menores dos valores de medição do tempo. Indo ainda mais longe, Sibilia afirma que

A função do relógio foi completamente internalizada, com uma proliferação de modelos nos lares do mundo inteiro, nos prédios e nas ruas das cidades, e inclusive embutidos nos pulsos das pessoas e nos artefatos de uso cotidiano. (SIBILIA, 2002, p. 30)

Essa internalização dos mecanismos de controle, representados pelo relógio, é característica básica para definir a sociedade de controle. Acerca do tema da temporalidade, Deleuze coloca que

Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador universal. (DELEUZE, 1992, pp. 221-222, grifo meu)

Esse contexto inaugura uma complexidade muito maior nas formas de controle, que, como diz Deleuze, “possui anéis de uma serpente” (DELEUZE, 1992, pp. 226) que são ainda mais complicados que seus antecessores.

O autopoliciamento generalizado, inaugurado pelas estratégias de biopoder (aquele que tem como foco a vida humana), encontra nas tecnologias digitais o principal meio de impor a sua força. “A tecnologia adquire uma importância fundamental, passando das leis mecânicas e analógicas para as informáticas e digitais” (SIBILIA, 2002, p. 28, grifos da autora). E estas geralmente se apresentam revestidas de uma roupagem amigável, sendo vendidas como inovações tecnológicas ou gadgets que visam a facilitar a vida humana, mas não raro, condicioná-la e vigiá-la.

As tecnologias do tempo real

Paul Virilio inicia seu livro O Espaço Crítico e as Perspectivas do Tempo Real falando do espaço da cidade, das relações dos homens com este espaço e suas dimensões crítica e política. Termina por falar do tempo real e da supressão do espaço físico por meio das tecnologias digitais. Trocando em miúdos, Virilio defende que as dimensões naturais do espaço teriam sido poluídas pelas tecnologias do tempo real.

As dimensões às quais ele se refere são orgânicas, e as mesmas subvertidas e encurtadas em tempo de trajeto com a revolução dos transportes, hoje já anciã, e que tornou possíveis muitas viagens, tanto de mercadorias quanto de pessoas, em curtos espaços de tempo.

Em se tratando deste controverso ponto de vista sobre as inovações tecnológicas, não se deve deixar de lado nenhuma ótica possível: se de um lado inúmeras transações, profissões, viagens e relacionamentos foram tornados possíveis graças ao advento dos transportes – sejam eles mediados por terra, ar ou água –, por outro novas relações com a distância – logo, com o espaço e com o tempo – foram estabelecidas e as antigas, rebaixadas para a memória coletiva.

O que é importante ter em mente é que estabelecer uma dimensão crítica para com a situação presente – e nela as tecnologias digitais e seus avanços cada vez mais ganham destaque – torna-se necessário, e disso faz parte analisar os prós e os contras das inovações, ou ao menos especular sobre eles.

Distante, muito distante dos textos sobre tecnologias da comunicação que exaltam as maravilhas das inovações que surgem a cada dia, Virilio fala com extrema cautela e mesmo exaltação em movimento contrário das tecnologias do tempo real, como ele as chama, e as quais, indo muito mais longe que os transportes um dia inauguraram, propõem e possibilitam um anulamento das distâncias físicas e do espaço do lugar de encontro, em virtude do espaço virtual. Ele afirma que

É o fim do mundo ‘exterior’, o mundo inteiro torna-se subitamente endótico, um fim que implica tanto o esquecimento da exterioridade espacial quanto da exterioridade temporal (now-future) em benefício único do instante ‘presente’, deste instante real das telecomunicações instantâneas. (VIRILIO, 1993, p. 107, grifos do autor)

Considerando-se a data de publicação da obra (1993), nos anos 90 a informática ainda engatinhava, se comparada aos terabites de memória real já existentes hoje e a velocidade com que as informação caminha graças à internet. No entanto, em 1993 já existia internet, certo que não com a mesma abrangência, e as transmissões de mídias de áudio e vídeo começavam a serem feitas.

Virilio utiliza-se do prefixo “tele” para compor as palavras que ele relaciona a essas tecnologias do tempo real, que assumiriam sua expressão máxima com a internet e suas possibilidades de comunicação à distância através de variadas mídias. À época, a televisão parecia ainda representar a melhor metáfora.

Ao falar do impacto do tempo-máquina sobre o ambiente, em comparação aos outros impactos considerados poluidores do espaço físico, Virilio encontra sua maior hipérbole, mas para a qual ele mesmo conclui uma possível solução:

Apesar da ausência de intervalo devida à inexistência do espaço real do encontro, a interface do signo nulo das ondas eletromagnéticas que permite a telecomunicação impede a confusão habitual do aqui e agora, uma vez que a instantaneidade da interatividade não elimina jamais a distinção entre o ato e o agir à distância. (VIRILIO, 1993, p. 104)

Pierre Lévy, em Tecnologias da Inteligência, faz um estudo das diferentes linguagens e técnicas utilizadas pelo homem para enfim chegar à informática. No livro ele estabelece o que seriam os três pólos do espírito, ou os três momentos distintos de formas de comunicação, que não se localizam temporalmente; eles se misturam em cada instante e lugar, mas com intensidade variável.

Estabelecendo uma ponte com as idéias de Virilio, Lévy diz que

Por analogia com o tempo circular da oralidade primária e o tempo linear das sociedades históricas, poderíamos falar de uma espécie de implosão cronológica(1), de um tempo pontual instaurado pelas redes de informática. (LÉVY, 1997, p. 115, grifo do autor)

O tempo da oralidade primária é(2) circular, marcado pela imediatez e pela idéia de reversibilidade; “como o espaço, era concreto, definido por e relacionado com acontecimentos, colorido pelas emoções e carregado de significado simbólico.” (SZAMOSI, 1986, p. 69). Ele completa:

Essa visão circular e periódica do tempo, com suas raízes na mecânica do sistema solar e com suas manifestações nos ciclos dia-noite e sazonais, era um modelo simbólico soberbamente útil. (…) O tempo circular era também reversível (…) O tempo repetitivo torna até tolerável a idéia de morte pela promessa de renascimento (SZAMOSI, 1986, p. 70).

O tempo linear das sociedades históricas, que é o da escrita, é relacionado ao conceito de inscrição no tempo (cronológico); a memória encontra-se semi-objetivada na escrita, existindo uma identificação parcial entre indivíduo e saber que possibilita uma leitura crítica, sendo regido pela noção de verdade. No tempo da informática, da comunicação digital, “as mensagens escritas (…) são cada vez menos concebidas para durar” (LÉVY, 1997, p. 121).

Na era da informática, ou das tecnologias digitais, a palavra-chave é velocidade, o perigo, paradoxalmente, é a inércia (como os engarrafamentos), de acordo com Paul Virilio. Diante deste ambiente, a simulação se apresenta como uma experiência possível e mais rica sensorialmente do que suas antecessoras, ainda que a memória torne-se subitamente um conceito subjetivo e questionável (quanto à sua permanência – é o tempo da imediatez e não se sabe até onde vai a confiabilidade das mídias de fibra ótica).

O presente se sobrepõe às outras temporalidades e é marcado por pontos, ao invés de círculos (oralidade) ou linhas (escrita). Lévy conclui, acerca da simulação e da condição do tempo real dizendo que

A simulação, portanto, não remete a qualquer pretensa irrealidade do saber ou da relação com o mundo, mas antes a um aumento dos poderes da imaginação e da intuição. Da mesma forma, o tempo real talvez anuncie o fim da história, mas não o fim dos tempos, nem a anulação do devir. Em vez de uma catástrofe cultural, poderíamos ler nele um retorno ao kaïros dos sofistas. O conhecimento por simulação e a interconexão em tempo real valorizam o momento oportuno, a situação, as circunstâncias relativas, por oposição ao sentido molar da história ou à verdade fora do tempo e espaço, que talvez fossem apenas efeitos da escrita. (LÉVY, 1997, pp. 125-126)

Este trecho estabelece uma perspectiva lúcida e crítica sobre o problema do tempo real e as suas propriedades em relação às outras formas de comunicação que antecederam a informática. Como iremos lidar com elas, com as tecnologias digitais e sua imediatez, somadas a outras faces que elas podem vir a assumir, é algo a ser tido ainda como incerto, dado o caráter de novidade que ainda as circunda.

Nada é certo no tempo presente, porque se o agora já era capaz de se desdobrar em muitos, na dita era digital essas possibilidades se multiplicam, ao menos as possibilidades de comunicação se multiplicam e a velocidade se impõe como natural. Ainda assim, mesmo que o tempo se prolongue, multiplique ou apresente novos problemas, existe um algo que o coloca mais ou menos dentro de uma estrutura abstrata. Citando Deleuze (1990, p. 123), “o que o passado é para o tempo, o sentido é para a linguagem, e a ideia para o pensamento.”

 

Notas

(1) Da ordem de chronos ou kronos.

(2) Ainda que ele se relacione mais intimamente com um momento da história anterior à escrita, é presente ainda hoje em algumas sociedades ou perdura misturado aos outros.

 

Referências

DELEUZE, Gilles. A Imagem-tempo. (1990). São Paulo: Editora Brasiliense.

DELEUZE, Gilles. Conversações. (1992). São Paulo: Editora 34.

LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência – O Futuro do Pensamento na Era da Informática. (1997). São Paulo: Editora 34.

Scientific American Brasil. Edição Especial Paradoxos do Tempo (2007). São Paulo: Ediouro.

SIBILIA, Paula. O Homem Pós-Orgânico – Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. (2002). Rio de Janeiro: Relume Dumará.

SZAMOSI, Géza. Tempo & Espaço – dimensões gêmeas. (1986). Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

VIRILIO, Paul. O Espaço Crítico e as Perspectivas do Tempo Real. (1993). São Paulo: Editora 34.