Tempo de travessias: transbordar as margens

por Inês Nin

para Festival Dança Em Trânsito, Atelier Escrita sobre Dança, 2022

Em 2022, o festival itinerante Dança em Trânsito chega à sua vigésima edição, circulando por diversas cidades do Brasil e uma do exterior. Neste ano, a Vitrine Brasileira de Dança Contemporânea ocupa quase integralmente a programação do “Circuito 3”, que ocorre entre os dias 3 e 7 de agosto, no Rio de Janeiro. E, se a dança está em trânsito, o público também transita pelos diferentes espaços nos quais ela acontece.

Situado no prédio da antiga TV Manchete, na Glória, e reinaugurado em 2019, o Teatro Prudential – Sala Adolpho Bloch, projetado por Oscar Niemeyer e com paisagismo de Burle Marx, traz um palco externo, ambiente ventilado de caráter mais livre, que se permite atravessar pelo céu, pela rua. Do lado de dentro, o teatro clássico, de 359 lugares, e um palco italiano de 140m² de estrutura modernizada, hermeticamente fechado. As apresentações do festival se dividem, ora ocupando o palco externo, ora o teatro. Há, ainda, no último dia, apresentações realizadas na rua, em frente ao Museu do Amanhã, na Praça Mauá, recanto histórico e recentemente revitalizado da cidade. Todos os espetáculos convivem, assim, de maneira ou outra com uma bagagem histórica de ressignificação dos espaços, em constante movimento.

Da diversidade apresentada nos trabalhos, chama a atenção um expressivo número de solos, muitos deles masculinos, criados em tempos de isolamento social provocado pela pandemia da COVID-19. Se aproximando da performance, no palco externo do dia 4 se destaca “Blanc”, de Cie Arrangement Provisoire / Vania Vaneau, deixando o público sem ar. Emoções: do sorriso nasce o choro que nasce o afeto. Rotatória, bobina, movimentos repetitivos, circulares. Os adereços espalhados pelo palco são vestidos um a um, evocando rituais, como se fosse possível simultaneamente vestir todas as culturas do mundo. E então despir-se delas, como uma lagarta que abandona seu casulo de borboleta.

“Ubirajara, uma cantoria”, de Soraya Ravenle, no palco externo, surpreende com uma apresentação que beira a stand-up comedy, em que tudo é aparentemente realizado pela artista. Eis que ela, após cânticos, contações de histórias de pandemia e danças, apresenta sua equipe, apontando para pontos vazios no local. Trata-se de uma banda invisível, mas muito presente. A solidão compartilhada. “Registro vivo de um corpo após experienciar o isolamento” é a forma como se introduz “Couraça”, de Leônidas Portella, no catálogo do evento. Caracterizado com chifres, pintura e lantejoulas na pele, o bailarino incorpora uma versão contemporânea de Bumba-meu-boi, em referência à vertente maranhense da tradição popular. Acompanhado de um cortejo com percussão ao vivo, vem abrindo caminhos, propondo ao público atravessar os espaços e seguir junto. Assim, vai-se do externo ao interno, para ter o com o boi e vê-lo brilhar com suas danças. O teatro já não é mais clássico.

A sisudez da tradição também é cutucada da maneira sagaz pela Clarin Cia de Dança, que abre sua eletrizante apresentação de “Ou 9 ou 80” com Beethoven, no canto esquerdo do palco, dançado à moda do “quadradinho”, como é conhecido o movimento orquestrado dos glúteos na cultura do funk carioca. Das margens para o centro, naquele momento uma surpresa, seguida de outras, e outras. Se o passinho predomina, há um rompante de vogue, da cultura queer ballroom, e um misto de danças urbanas. Questões de violência e diversidade de gênero, de liberdade dos corpos, ali são problematizadas da forma mais explícita e contundente, costuradas junto ao espetáculo. Este que é dançado com excelência, público e os próprios dançarinos vibrando. Cada novo gesto provoca um acontecimento, do qual todos saem arrebatados.

A temática da violência urbana também está presente em apresentações de outras cias, como em “Vertigem”, da Cia Gente, na qual os bailarinos dançam com camisas de escola pública do Rio de Janeiro, uma delas manchada de sangue, remetendo a uma das muitas crianças negras mortas em decorrência da violência policial. Já a discussão sobre gênero ressurge, meio do nada e de maneira empobrecida, equivocada, em “O Vestido”, de Rosa Antuña, um ponto baixo do festival.

Não deve passar despercebido o espetáculo “Mão”, do coletivo homônimo, realizada no “palco” da Praça Mauá. “Translação da casa pela paisagem”, informa o texto sobre o trabalho, a respeito de uma apresentação inclassificável, em que o público, descontraído, composto de famílias, crianças e cães, assiste à montagem de uma estrutura/escultura que oscila entre o lúdico e o laboral, a partir zero. Obras, lona de proteção e gazes coloridos, nada seria mais familiar ao local.

As rotatórias retornam com força e continuamente no forte espetáculo de encerramento, “Set of Sets”, de GN, MC Guy Nader e Maria Campos, unindo dança contemporânea e técnicas acrobáticas a uma sonorização com bateria e sons eletrônicos ao vivo. O teatro é tomado por giros e alternâncias que não parecem ter fim, como fossem de aviões fazendo piruetas no ar. Fôlego, densidade. O tempo é um continuum. Ou, como diz Daniel Calvet do Ateliê do Gesto num alumbramento em “Dança Inacabada”: “a dança não acaba”.

falar com PHASMIDES, de daniel steegman-mangrané

crítica/percepção ou conversa publicada no sítio do ateliê397 em 18.11.2015

 

desestruturar-se. confundir-se. corpo que se mistura à lama e opera por associação. sujeito-corpo-ambiente. sequer sujeito, ainda: coisa. objeto que ANIMA. e então bicho. antes, poderia ser uma folha, um pedaço de pau, de árvore. enquanto planta, parte da paisagem; enquanto bicho, predomina? sobressai-se no todo? o animal existe, mas que será essa existência enquanto mundo?

sobressalentes, os modos de sossego que constrói um homem (no masculino, branco, singular) perante a TERRA, a que preço – desnorteia-se uma barragem, e cai sobre as cidades – de erguer os planos. dormentes, altivos, rígidos e retilíneos como nunca será uma planta. arranha-céus, ou sem precisar ir tão longe: de rastejos e lamaçais secos são preenchidas florestas e territórios nomeadamente inférteis – por ações infortunas. prédios, sem mantas. colossais membranas.

em outro canto surge um ramo. quem sabe já não estava lá. por acaso ou persistência floresce, se espalha. rumina. aos poucos se enche de plenitude e não se sabe mais se é bicho ou planta, assunto ou paisagem. engenhosos desenhos na pele de alguns, cadeia sem medos de tantos, acontece. complexas organizações priorizam, a exemplo das formigas e de tudo aquilo que observa, um certo funcionamento que se perpetua. a não ser que – para ver as formigas uns homens derramaram cimento nas frestas de formigueiros, e então formou-se uma escultura da megalópole subterrânea. repentinamente fossilizada. um simples genocídio em nome da ciência.

o que temos aqui é espaço produzido. consumido, pormenorizado, criado aos detalhes de composição. no começo é escuro, cascas de árvores. uma olhadela que espreita e averigua os detalhes da mata profunda, ou um simples jardim. sem verde, é quase tudo marrom. os planos são curtos, terminam antes que sejam decifrados. quiçá, a duração de um rolo de filme, em metros, unidade de medida física da celulose que compõe a matéria, em 16mm. a celulose na tela – as frações de árvores, os papéis. quase tudo compõe. quase tudo escapa.

aos poucos, acontece a fusão. papéis dobrados dividem o espaço com os fragmentos de galhos e folhas envelhecidas. o fundo sombrio dá lugar ao branco. estruturas são erguidas por entre a espécie – os galhos – e a eles almejam. o animal vai esgarçar o limite do entre coisas, do que é nulo, do que se nulifica. do que desaparece.

a um mínimo movimento, se vê patas. enfim, patas! é um bicho, agora. a aparição do mesmo – fasmídeo, palavra irmã de fantasmas – se dá à maneira semelhante ao monge de filmes recentes de tsai ming liang, tais como ‘walker’ (2012) e ‘jornada ao oeste’ (2014). o movimento, mínimo, é suficiente para identificar a ação e distinguir, a partir daquele momento, personagem. na cena seguinte, o mesmo sucede. ele está lá? forma-se um jogo, em tempo lento, episódios.

acrobático, o disfarce do sutil bicho-bailarino forma ângulos, opera por semelhança até mesmo com as geometrias que o envolvem, papéis dobrados que muito se assemelham às construções de lygia clark: bichos, mais uma vez.

será importante essa distinção entre forma e forma, animal ou perfídia? a própria lygia clark nos dá pistas em suas anotações, em especial a partir do ‘caminhando’ (1964), ao buscar uma espécie de dissolução da existência no mundo, em que corpo é também paisagem, atravessada e hibridizada por bichos, frequências, intensidades. “pássaros e leões nos habitam, diz lygia – são nosso corpo-bicho”, traz suely rolnik. da supressão do objeto: “a fantasia do mundo como um grande bicho não percebido pelo homem”.

daniel steegman mangrané, em entrevista a fábio zucker, narra que, conscientemente, não pensou em lygia clark ao construir o ambiente em estúdio no qual caminha o bicho-pau em ‘phasmides’, revelado na sequência final. contudo, em situação posterior, criou um dispositivo arquitetônico que se viu confrontado, em uma exposição, a um dos bichos de lygia e a um metaesquema, de hélio oiticica.

o contraste entre obras arquitetônicas – e suas suas linhas retas – e a manifestação forte e de caráter englobante do que conhecemos por natureza, floresta e seus habitantes, aparece em grande parte das obras do artista. uma conversa evidente com o legado do concretismo e abstracionismo também se mostra, em que grafismos, construções metálicas e instalações contestam meios de se estar e adentrar lugares, compor formas, assimilar-se.

no contexto da exposição ‘o que caminha ao lado’, com curadoria de isabella rjeille, PHASMIDES se apresenta ao público em uma pequena sala próxima à área de convivência do espaço. as obras dos outros artistas presentes na coletiva evocam, de distintos modos, imagens ou sons de fantasmas, indícios, semelhantes e dessemelhantes, imitações, vultos. o doppelgänger, antigo mito alemão, provoca a evidência do duplo, ou sua alusão, de modo que limites identitários são postos à prova.

dois anos após sua primeira aparição, PHASMIDES, em 2015, conversa com seus duplos adversos, crianças que correm, bichos, outros fantasmas. sobrevivência de corpo em ambiente, existência em estúdio, linhas retas?

chelpa ferro atualiza as curvas da capital portuguesa

relatos e registros da visita do grupo a portugal; artigo publicado na revista da secretaria de estado de cultura do rio de janeiro em 2012

Pela primeira vez em terras lusitanas, o grupo multimídia Chelpa Ferro acaba de expor em Lisboa seu mais recente trabalho, a instalação site-specific Craca, além de se apresentar ao vivo junto ao artista português Pedro Tudela. Formado há 17 anos pelos artistas Luiz Zerbini, Sérgio Mekler e Barrão, o Chelpa Ferro realiza performances, instalações híbridas com dispositivos tecnológicos e lançou três discos, o último recentemente.

Convidado pelo Carpe Diem Arte e Pesquisa, instituição voltada para o campo alargado da arte contemporânea, o grupo preparou uma peça sonora inédita para 18 canais de áudio. Somando uma mistura de instrumentos tradicionais, parafernálias criadas pelos próprios integrantes e recursos eletrônicos, o som gravado chega ao público através de espessos blocos de isopor dispostos em diversos pontos da sala, que interferem na sua emissão. Uma atmosfera composta de ruídos é então gerada, preenchendo o espaço da Sala Azul do antigo Palácio Pombal, no coração histórico de Lisboa. A obra, exposta entre os meses de junho e setembro desse ano no XI Módulo Expositivo do Carpe Diem Arte e Pesquisa, deve ser remontada em breve em outro local da mesma cidade, considerando suas dimensões variáveis.

Materializando um desejo do curador Paulo Reis, falecido em 2011, carioca radicado em Portugal e fundador do Carpe Diem Arte e Pesquisa, Chelpa Ferro e Pedro Tudela realizaram um concerto idealizado há aproximadamente uma década, quando o grupo e o artista tiveram a oportunidade de se conhecer em São Paulo. O improviso foi a chave da apresentação, que ocorreu no Teatro do Bairro, como parte do Programa Próximo Futuro da Fundação Calouste Gulbenkian. Em parceria inédita, os artistas uniram conhecimentos e repertórios oriundos das fontes mais impensáveis, provocando diferentes dimensões auditivas.

Pedro Tudela, assim como o Chelpa Ferro, é artista plástico, se desdobrando desde 1982 entre performances, programas de rádio, discos, concertos de música experimental eletrônica e projetos cenográficos. Os dois eventos, XI Módulo Expositivo do Carpe Diem Arte e Pesquisa e o Programa Próximo Futuro da Fundação Calouste Gulbenkian, de instituições parceiras, tiveram como característica marcante a participação simultânea de artistas brasileiros e portugueses, que se somavam a outros de diferentes nacionalidades.

Ao caminhar pela cidade, as aproximações e intercâmbios se intensificavam: enquanto o Chelpa preparava a exposição no Carpe Diem Arte e Pesquisa, a cantora gaúcha Adriana Calcanhotto fazia um show com um grande fadista português, o grupo almoçava no restaurante que a presidente Dilma Rousseff costuma frequentar, de onde contam a exótica experiência de comer caracóis. Exotismo quase local, se considerarmos todas as nossas heranças históricas, que se misturam de maneira curiosa, gerando comparações que ora nos aproximam, ora afastam.

E é irrevogável a importância desse contato, que ganha tons de humor quando o grupo relata ter visto Portugal ser eliminado da Eurocopa (“viveram esse triste momento”) ou entusiasmo, como quando falam da Galeria Zé dos Bois, misto de espaço de exposições e ações performáticas, com forte pé fincado na música experimental. A presença no espaço se faz fundamental não só pelas atividades previstas, que por si já seriam singulares e aguardadas fazia longo tempo. Mas coisas do acaso, como topar na rua com o grande colecionador de música e galerista Zé Mário, ou encontros fortuitos com artistas com quem podem gerar futuras parcerias, até mesmo comer caracóis, são agentes da nossa cultura antropofágica que vem atualizar raízes, estabelecer contatos, fundar novas buscas.

as colunas caíram do céu, de luiz zerbini

sobre a instalação de luiz zerbini, exposta no evento luz na cidade, rio de janeiro, 2012

Da obra intitulada “minha última pintura”, 2005, que se desdobrou em outras e reinventou para o próprio artista a ideia e a vontade de pintar – e, porque não, para o público, já que ele também aparece no quadro, refletido – pode-se dizer que ao mesmo tempo ela motivou e fez parte de futuras instalações. Esse movimento, da pintura para a instalação, acontece dentro de uma trajetória em que os trabalhos se complementam, às vezes se misturando ou confundindo.

“Minha última pintura” se faz presente nas paredes de trabalhos anteriores desse mesmo processo, como a instalação “paisagemnaturezamortaretrato”, realizada por Luiz Zerbini em 2008 no Centro Universitário Maria Antônia, CEUMA, em São Paulo. Em “paisagemnaturezamortaretrato”, site-specific, as vigas do teto da própria sala adquiriam cores, ressaltando sua estrutura geométrica.

Em “As Colunas Caíram do Céu”, instalação apresentada no evento Luz na Cidade, diferentemente, a estrutura da obra é auto-portante, construída fora do espaço expositivo e posteriormente transferida para lá. Sob esse ponto de vista, o trabalho funciona como uma escultura de grandes proporções. As vigas coloridas, instaladas abaixo dos lustres da sala, aparecem ‘dissolvidas’ em reflexo, tal como em “paisagemnaturezamortaretrato”. Pretas e luminosas, as paredes cobertas por tinta automotiva nos apresentam uma imagem menos nítida da obra, ecoando tanto as cores das vigas quanto a própria imagem do público.

“Desde que a pintura morreu, não paro de pensar nela”, dizia Luiz Zerbini à época de “minha última pintura”. Em texto sobre a obra, Agnaldo Farias diz que “o tipo de intervenção realizada no espaço expositivo retarda o entendimento dessa confissão, como se tivesse sido sussurrada”. Dos quadros imprevistos e vistos, muitos deles absolutamente figurativos, não raro incorporando diversos elementos gráficos e algumas abstrações, parte também uma reflexão consistente que recai sobre o espaço tridimensional.

Pode-se chamar, talvez, “As Colunas Caíram do Céu” de instalação pictórica, vinda do mesmo movimento que parte do quadro para o espaço real da sala, o qual o público é convidado a percorrer.

bebop?

texto produzido como parte do conteúdo integrante do site promocional do filme “na estrada”, dirigido por walter salles e lançado no brasil em 2012

Jazz pode ser uma canção doce, com roupagem lo-fi e levada calma, como aquelas que inspiraram a bossa nova, mas não só. Nos anos 40, o jazz, ritmo que tomou forma uns 20 anos antes, era sacudido, revirado e subvertido: foi quando surgiu o bebop.

Mais mau comportada que o próprio rock para o contexto da época, essa vertente do jazz é marcada pela improvisação, o ritmo acelerado e músicos muito talentosos. Naquela época, o padrão de duração das músicas gravadas não podia ultrapassar os 3 minutos, devido às próprias limitações dos discos de vinil de 78 rotações, que aos poucos iam sendo substituídos pelos de 33 e ½ – formato que se tornou padrão. Só que ao vivo, as noitadas eram longas, e as canções variavam muito, dependendo da empolgação dos músicos (e do público).

Situada em Nova York, a Minton’s Playhouse era uma casa de shows que ficou conhecida pelas longas jam sessions que sediava, contando com músicos como Charlie Parker, Thelonious Monk, Dizzie Gillespie e Kenny Clarke tocando sem parar noite adentro. Depois de um tempo, as noites de bop contavam em geral com quintetos formados por trompete, saxofone, piano, baixo e bateria, admitindo variações. A música é complexa e engenhosa, sendo grande parte construída a partir de improvisações – ainda que houvesse quem fizesse diferente.

De estrutura livre, o bebop fez história e se transformou num divisor de águas, inaugurando o que chamamos hoje de jazz moderno. O saxofonista que virava noite adentro tocando jazz se tornaria uma espécie de herói americano, ao passo que o bebop se espalhava como trilha sonora da juventude boêmia. Seu apogeu foi na São Francisco dos anos 50, mesma data e local onde estavam os beats – e de fato, havia uma grande afinidade entre eles. Longas sessões de jazz/poetry teriam então lugar, em que poemas eram declamados ao som de sax, contrabaixo e outros instrumentos.

Fonte: “O que é Jazz?”, de Roberto Muggiati. Ed. Brasiliense, 2008 e pesquisa de Dodô Azevedo.

patti smith e os beats

texto produzido como parte do conteúdo integrante do site promocional do filme “na estrada”, dirigido por walter salles e lançado no brasil em 2012

Patti Smith – Patricia Lee Smith nasceu em Chicago, EUA, em 1946. Em 1967, depois de uma experiência traumática, mudou-se aos 19 anos para Nova York para começar uma nova vida. Lá, conheceu Robert Mapplethorpe, iniciando uma parceria que duraria para a vida toda. Moraram juntos como casal e permaneceram amigos, vivendo ainda sob o mesmo teto durante algum tempo. Colaboravam intensivamente um com o trabalho do outro, chegando a organizar uma exposição juntos no início da carreira. Compartilharam dificuldades, experimentações e descobertas do que viria a ser a carreira de cada um. Patti escrevia poesias e desenhava, e mais tarde veio a se interessar por performances. A ideia de somar poesia a rock’n’roll surgiu naturalmente, primeiro por meio de convites que recebeu, decidindo enfim formar uma banda em 1974. Enquanto isso, Mapplethorpe, que desenhava, elaborava instalações e colagens, descobriu-se fotógrafo, atividade que emergiu à mesma época em que explorava sua própria sexualidade. Ambos eram frequentadores da famosa casa de shows CBGB, onde mais tarde se apresentaria com sua banda. Patti Smith alcançou o sucesso já no primeiro disco, Horses, lançado em 1975. Cantora, compositora, poeta e artista plástica, Patti Smith é grande fã do poeta Arthur Rimbaud e hoje reconhecida como uma das grandes expoentes do punk rock novaiorquino.

O encontro com Allen Ginsberg se deu de forma curiosa: nos primeiros anos de Nova York, ela e Mapplethorpe viviam sempre com o dinheiro contado, muitas vezes faltando para comer. Dotada de um metabolismo rápido, ela estava sempre com fome, e havia conseguido juntar 55 centavos de dólar, o preço exato de um sanduíche de queijo à época. Chegando na lanchonete, o preço tinha subido para 65. Eis que surge um sujeito barbudo se oferecendo para cobrir os 10 centavos restantes, e ainda a convidando para um café. Patti aceitou na hora. Ao conversarem, Patti descobre que Ginsberg a havia confundido com um menino – ele estava chegando nela! Mais tarde se tornariam amigos, e Patti diria simplesmente que Ginsberg lhe deu comida quando tinha fome.

Patti Smith transitou pelo círculo de amizades dos beatniks, com os quais compartilhava o amor pela literatura. Vivendo por um período no famoso Chelsea Hotel, em Nova York, ela e Mapplethorpe foram vizinhos de Burroughs, a quem ela faria visitas constantes. As histórias que permeiam o período em que viveu em Nova York, e em especial a relação com Robert Mapplethorpe, foram relatadas no premiado livro Só Garotos (Just Kids), lançado em 2010.

as drogas e os beats

texto produzido como parte do conteúdo integrante do site promocional do filme “na estrada”, dirigido por walter salles e lançado no brasil em 2012

O nome beat vem da expressão “man, I’m beat!”, frase usada por Kerouac para para dizer que estava detonado (provavelmente por ter bebido demais ou algo do gênero) em uma conversa com o escritor John Clellon Holmes. Mais tarde, Kerouac expandiria o significado do termo para associá-lo também a conceitos como beatificação e outras variações, como “upbeat” (animado, alegre, otimista) e “to be on the beat”, ou estar no ritmo. Beatnik surgiria mais tarde como um rótulo criado pela mídia, somando aos beats a associação com o nome Sputnik, o primeiro satélite artificial a ser posto em órbita da Terra, de origem russa.
E os beats de fato procuravam explorar outros mundos, partindo literalmente em fuga na contracorrente da cultura conservadora americana dominante. É importante reparar que as aventuras e excessos que fazem parte da trajetória alucinada de On the Road foram escritos entre fins dos anos 40 e o começo dos 50. Muito diferente do contexto que se estabeleceu a partir dos anos 60, para o qual os beats foram grandes inpiradores, naquela época aquelas atitudes eram extremamente subversivas, novas e desafiadoras. Eram gritos de liberdade rumo ao desconhecido.

Em 1944, na Universidade de Columbia, Lucien Carr, Ginsberg, Kerouac e Burroughs criaram uma espécie de grupo de estudos que denominavam Ciclo Libertino (Libertine Circle). A partir dele, elaboraram o que chamariam de Nova Visão (New Vision), baseados na vidência como desregramento dos sentidos, conceito retirado da obra do poeta Arthur Rimbaud e no misticismo visionário de William Blake, somado às ideias de W. B. Yeats. Na prática, se tratava de uma mistura de pesquisas e experiências literárias com o uso de drogas visando a alteração de estados de consciência. Carr acabou se afastando do grupo e de Columbia ainda naquele ano, por ter assassinado David Kammerer.

É fato conhecido que os beats usavam diversos tipos de drogas. Jack Kerouac bebia muito, vindo a morrer por conta da cirrose aos 47 anos, e Neal Cassady teria se destruído principalmente devido às anfetaminas. Ao seu redor, como parte das explorações da Nova Visão, havia uma variedade muito maior delas: morfina e heroína, estimulantes como benzedrina e anfetamina, alucinógenos como maconha e haxixe, psilobicina (de cogumelos) e mercalina (dos cactos) e tranquilizantes como o nembrutal. Entre cada uma delas há diferenças grandes. Experimentando LSD com Timothy Leary, Ginsberg viria mais tarde a politizar o uso de alucinógenos, defendendo até mesmo suas potências de paz para a humanidade. Por outro lado, concluiu que nada de bom poderia vir da cocaína.

O primeiro livro publicado de William Burroughs se chama Junkie, reconhecido por narrar essa então desconhecida parcela da sociedade americana, a partir de fatos que ele mesmo vivenciou. Burroughs experimentou de tudo, de veneno para insetos a outras substâncias mais estranhas, mas demonstrava desprezo pelos alucinógenos. Ele e sua mulher, Joan Vollmer, chegaram a viver com Herbert Huncke em uma fazenda de 40 hectares cuja principal plantação era de maconha – para venda, o que não deu muito certo. Em episódio relatado no livro Visions of Cody, de Kerouac, ela teve que ser hospitalizada por abuso de anfetaminas, pois entrara em um delírio sem fim: ele entra no apartamento de Hal Chase, amigo deles, e encontra Joan completamente nua e alucinada, acusando-o aos berros de querer estuprá-la, sem o reconhecer. Huncke está na cama entorpecido e inerte enquanto Ginsberg, também sob o efeito de anfetaminas, datilografa muito concentrado um poema sobre morte e violência.

Na segunda parte do poema Uivo (Howl), até hoje o poema mais conhecido de Ginsberg, grita “Moloch! Moloch!” diversas vezes, e conta que foi escrita a partir de uma alucinação que teve sob efeito de mescalina, em que de fato via o rosto do personagem bíblico Moloch em uma horrível aparição na fachada do hotel em que se encontrava. Acreditando sobretudo na transcendência dos estados da mente por meio dos alucinógenos, Ginsberg foi mais fundo em suas pesquisas, aproximando-se de outras formas de atingir estados alterados de consciência. Interessou-se por zen budismo, inicialmente através de Gary Snyder e fez uma longa viagem ao Oriente, da qual retornaria praticante de meditação. Ainda em Columbia, ele e seus amigos já haviam entrado em contato com doutrinas gnosticistas, graças ao professor Raymond Weaver. Desse modo, as experiências extremas vividas e narradas pelos beats se misturavam a universos líricos e pesquisas místicas. De fato, é inútil tentar dissociar inteiramente uma coisa da outra, assim como, em seus escritos, misturavam ficção e realidade, intensidades poéticas e práticas autodestrutivas.

intrépida trupe: entre voos e desafios, aos 25

entrevista com beth martins, da intrépida trupe, publicada no overmundo, pouco depois do festival tangolomango. rio de janeiro, 2011

Em novembro desse ano aconteceu o Tangolomango – festival da diversidade cultural, nas cidades Rio de Janeiro e Buenos Aires. Comemorando 10 anos de atividades, o Tangolomango resolveu inovar em 2011, dando início a um ciclo de eventos que ocorrerão simultaneamente em uma capital brasileira e outra da América Latina, alternando as cidades onde acontecem a cada ano.

Tangolomango é muito mais do que o espetáculo de um só dia, que acontece (ou aconteceu), no caso do Rio de Janeiro, no Circo Voador. É um espaço de intensas trocas entre grupos de dança, circo e música, que se propõem a trabalhar juntos durante as datas que antecedem imediatamente o festival, para criar uma grande e diversificada apresentação.

Nesse contexto, o Overmundo já soma vários anos de parceria, seja na cobertura do evento, seja na feitura do catálogo e entrevistas, como nesse ano, agregando redes pelo Facebook e fazendo as entrevistas lá mesmo.

Durante a correria louca que foi produzir esse material, possibilitando trocas muito prazerosas e conhecendo grupos brilhantes que iriam participar, a única entrevista “analógica” que acabei fazendo foi com a Beth Martins, da Intrépida Trupe. A proximidade ajudou: o escritório do Overmundo fica a poucos passos da Fundição Progresso, espaço no qual a Intrépida ensaia já fazem nem sei quantos anos.

Eu era pequena quando comecei a acompanhar a Trupe, nos idos tempos em que morava em Niterói, e, mais tarde, ainda na escola primária, fui encontrar no Rio de Janeiro uma aula de acrobacia entre as atividades extracurriculares da escola! Tenho saudades do trapézio até hoje, me recordo de alguns movimentos, como o salto leão (acrobacia de solo), e na época eu era doida pra misturar isso com ginástica olímpica. Mas não sabia fazer parada de mão.

Por isso tudo, fiquei muito feliz de poder fazer essa entrevista pessoalmente. Nem deu tempo de falar para a Beth da relação afetiva que eu guardava com o grupo, em memórias, e sempre acompanhando os espetáculos que eles vêm fazendo, incansáveis. Sonhos de Einstein, relativamente recente, trata do sonho antigo que tem o ser humano de voar, e por isso pode parecer comum, mas é muito belo. Hoje, acho que me desperta mais interesse o uso de cordas, escadas e outros apetrechos que estão em algum lugar entre o alpinismo, o circo e, vagamente, aqueles brinquedos de subir de criança. E em muitas práticas. A infância está sempre ali em algum lugar – e eu digo aquela que ninguém devia nunca abandonar. De querer subir em coisas e dar piruetas, dançar.

Como foi feita em voz, registrada com gravador (digital), transcrevi a entrevista e editei procurando manter ao máximo a fidelidade aos modos de fala. Não é a primeira vez que faço um trabalho de transcrição, mas nesse pude ter a liberdade de manter todas as reticências que compõem uma fala, quando o pensamento procura uma resposta e ela vem em diversas frentes, semifalas que aos poucos vão constituindo uma linha de raciocínio. Às vezes ela se perde, ou se lemos pensando no falar – e sou muito grata a Guimarães Rosa por registrar com tamanha minúcia os hábitos e criações de fala de grupos específicos, pessoas – acabamos por entender o todo, e essas buscas feitas pelo pensamento. É construção.

Peço que não relevem o delay com que chega esse material na íntegra ao Overmundo. Um resumo bem resumido das ideias está no site do Tangolomango, junto aos textos que produzimos para os outros grupos. As entrevistas eram preferencialmente feitas pelo Facebook como uma forma experimental de promover a interação entre os entrevistados, e quem mais quisesse aparecer e participar.

Exclusiva, portanto, e não menos reflexiva, da entrevista na Fundição resultaram essas poucas palavras que troquei com a Beth Martins nos minutos antes do ensaio da equipe jovem da Intrépida. A maior parte das apresentações que ela cita já são passado, ainda que recente, como o próprio Tangolomango. Sobre como foi o festival, aqui no Rio de Janeiro e em Buenos Aires, vocês podem ler no site do Tangolomango – ou buscando diretamente pela tag ‘2011’. As outras palavras, sobre a trajetória da Intrépida Trupe, que comemora 25 anos em 2011, suas diversas atividades, modos de fazer, práticas, países latino-americanos, circo novo e circo tradicional, estão abaixo. Leiam com carinho e empolgação!

ENTREVISTA COM BETH MARTINS DA INTRÉPIDA TRUPE || TANGOLOMANGO 2011

concedida a Inês Nin, Overmundo, em 31/10/2011

Quais são as suas expectativas em relação ao Tangolomango? O que você já tinha ouvido falar antes e o que espera dessa troca?

Bom, eu ouvia sempre esse nome Tangolomango, que era um encontro de grupos, mas nunca tinha participado. E aí, com o contato que o Tangolomango fez com a gente esse ano, uma das coisas que eu me animei é que a pessoa que vai dirigir [Ernesto Piccolo, diretor artístico] é uma pessoa com quem eu já trabalhei muitas vezes e de quem gosto muito. Então, foi um pouco em função desse lado afetivo… Porque é uma proposta de 3 dias de imersão, e para os jovens com quem estou trabalhando acho super importante esse contato.

Na Intrépida, há 15 anos a gente faz um trabalho de formação. E um dos fatos que fez com que a Intrépida Trupe sobrevivesse por 25 anos é que a gente sempre foi muito aberto. Eu não digo que tem uma Intrépida – são muitas intrépidas que foram Intrépida nesses 25 anos. E há 15 anos a gente forma gente. Tem muitos no nosso elenco que chegaram com uma base de dança, de teatro, e adquiriram coisas de circo com a gente. Ou que toda a formação de dança, teatro e circo foi feita aqui no nosso espaço. Então, tudo o que é possibilidade de intercâmbio, de troca, sempre nos atraiu muito. Trabalhamos com essas três linguagens. E, pelo que eu entendi, o Tangolomango também abraça as linguagens cênicas de uma forma mais aberta. Assim, a minha expectativa é que seja um ótimo encontro, uma ótima troca, e que a gente possa aprender coisas, ensinar coisas, e descobrir coisas novas nesse encontro. Acho super legal.

O fato de existir agora um foco nesse intercâmbio latino-americano considero muito interessante. Porque nós temos uma riqueza cultural muito grande na América do Sul, na América Central, e a gente desconhece. Muitas vezes as nossas referências são europeias e norte-americanas. Portanto, eu dou um voto de louvor e admiro uma iniciativa que priorize essa troca entre países tão próximos e tão ricos culturalmente.

O que você poderia falar desses 25 anos da Intrépida? Existem atividades comemorativas? Você já disse que foram muitas Intrépidas ao longo desse tempo…

É, foram muitas Intrépidas e eu tenho o privilégio de estar desde a fundação. Desse modo, eu sou de certa forma uma guardiã, uma dinossaura dentro dessa história.

Vinte e cinco anos na vida de um grupo são muitos anos na vida de uma pessoa. É muito intenso, são muitas trocas. A dinâmica de grupo é muito rica, então são muitos anos. O Eugênio Barba fala isso, que 20 anos na vida de um grupo são 60 na vida de uma pessoa. Então, a gente já está com 70, quase 80 anos. E eu me sinto privilegiada porque tive a oportunidade de criar essa história junto com vários artistas, que continuam aí no mercado. Artistas maravilhosos, como o Gringo Cardia, Dani Lima, Alberto Magalhães dos Brothers, a Debinha Colker (Deborah Colker), que trabalhou com a gente coreografando, no começo…

E eu sei muito da história, além de vir trabalhando também nessa área de formação fortemente junto com a Vanda [Jacques]… Nós duas fomos as únicas a permanecer durante todos esses anos. É uma alegria podermos chegar nessa idade e comemorar… E estar com um elenco jovem.

Quando começamos a trabalhar com esse grupo, em 2009, eles tinham 15, 16 anos… entre 16 e 20 e poucos anos, hoje eles estão com 18 a 25. Começamos montando repertório dos anos 80 que havíamos criado, coisas lindas e que esse público de agora conhece pouco. E acabamos fazendo um espetáculo com eles que fez muito sucesso, chamado Preciosa Idade. Porque é uma idade preciosa esse momento de virada da adolescência para a vida adulta. Agora estamos muito felizes, por estarmos lidando com um processo de criação em um trabalho totalmente novo.

Em fins de novembro e começo de dezembro, faremos no Arpoador três finais de semana na Praça Garota de Ipanema, com remontagem de repertório. São outros números que eles ainda não experimentaram no corpo, outros que já experimentaram. Além disso, continuamos trabalhando nos ensaios o novo trabalho, também em comemoração dos 25 anos, que deve estrear ano que vem [2012], em abril ou maio. Talvez aqui no nosso palco, talvez no Teatro Carlos Gomes. São alegrias.

Temos também outro elenco, formado por pessoas mais velhas, que está na Europa, no festival Europalia, representando o Brasil na área de circo. Vamos fazer dois espetáculos em Bruxelas. Nos deixa muito alegres ter várias frentes em movimento como agora. Uma de formação, um elenco jovem, outro mais maduro. E, de forma menos intensa mas sempre presente, atuamos e continuamos a atuar em projetos sociais que incluem o circo. Fomos pioneiros nessa linguagem.

Começamos com a Intrépida tem uns… minha filha tem 18 anos, eu estava grávida dela… 19, 20 anos atrás a gente começou. O Betinho do Viva Rio chamou a gente para abordar crianças na rua, e isso gerou vários projetos que trabalham com jovens em situação de risco com o circo. Temos um vínculo com vários desses projetos, no nosso elenco tem alguns meninos que foram desses projetos, então estão trabalhando com a gente, também… Na parte técnica também… É uma alegria comemorar 25 anos e ver tantos frutos, o trabalho ampliado em várias frentes e ter uma perspectiva de futuro. No mínimo, mais 25 anos, espero. A galera jovem aí seguindo, continuando a escola, a formação.. é isso.

Você dirige o grupo desde o começo? Ou teve uma trajetória dentro dele?

Na Intrépida a gente sempre foi meio múltiplo. Então, quando começamos… E essa coisa também de ser um grupo que… Hoje você vê muitas companhias que fazem uma seleção do elenco, baseada nas técnicas de dança, nas técnicas de circo. No nosso caso, sempre tivemos várias áreas trabalhando juntas. Tinha um gordinho que não pulava nada, não se pendurava, mas era muito engraçado… era um palhaço, entendeu? E tinha um outro que desenhava muito bem e fazia mil coisas lindas, então era o cara que fazia os cartazes e figurinos. É um grupo que sempre respeitou a diferença como um ponto de riqueza. É por isso, acredito, que a linguagem do grupo sempre foi muito impactante, tanto no sentido visual quanto do humor, da irreverência. No lírico… no poético… Sempre tivemos isso da singularidade de cada um, da diversidade do elenco. Sempre fizemos de tudo um pouco.

No começo, a gente montava, costurava os trapézios, se dirigia, fazia trilha, bolava luz… Foi uma coisa que fomos fazendo, e isso é algo típico dos anos 80. A minha história é um pouco assim: eu dançava com a Graciela Figueroa, Coringa, que foi um grupo pioneiro de dança contemporânea aqui. Ela misturava acrobacia, tai chi, capoeira, dança clássica, neoclássica, moderna… E eu desde o começo tinha um olhar sobre as organizações espacial e coreográfica da coisa. Fui me especializando nos aéreos, uma vez que eu já dançava no chão. Me interessavam o trapézio, cordas… coreografia. E aos poucos fui assumindo a direção de um trabalho ou outro. Hoje, estou mais voltada para a formação, a direção e as coreografias do que estou em cena. Mas ainda faço as minhas brincadeiras pendurada de vez em quando. Ainda me sinto com esse gás de às vezes aparecer e fazer alguma coisa em cena.

E o que você conhece da América Latina? Provavelmente a Intrépida já deve ter se apresentado em outros países das América do Sul, por exemplo.

Olha, infelizmente nos apresentamos muito pouco. Considerando a América Central, a nossa primeira viagem foi para o México, exatamente no ano em que a gente nasceu. Era uma missão cultural do Circo Voador. Na época trabalhávamos muito no Circo, com efeitos. Tínhamos ido montar o Circo Voador no Maranhão, em São Luís. Nessa ocasião, o prefeito estava lá e falou: “Esse é o ano da Copa do Mundo, vamos montar a lona lá?”. Circo Voador tem que ter circo. A gente junta o pessoal da Escola de Circo, o pessoal de dança e vamos nessa. Nossa origem é um pouco essa viagem para o México. Tem releases nossos que dizem: “a Intrépida Trupe nasceu em 86 numa missão cultural ao México”. De alguma maneira, o grupo é meio mexicano, meio brasileiro.

Fomos à Colômbia, num festival em Manizales, e fizemos uma apresentação uma vez num evento na Argentina. Eu adoraria que a gente circulasse mais, que pudéssemos fazer uma troca, um intercâmbio mais rico. Tanto com o Uruguai, Argentina, Paraguai, Peru, Bolívia, Chile… Sei lá, Guatemala, são países belíssimos com essa cultura rica. E o mundo a gente já fez bastante. Portugal, França, Alemanha, EUA… são os lugares que a gente mais foi. Mais a França: nos apresentamos no festival de circo de Demain algumas vezes, participamos dos festivais que tem em Nanterre também… Na Alemanha, fomos em um festival convidados a fazer uma temporada num théâtre de variété, com gente do mundo inteiro, que é uma noite… Tipo um Canecão, em que as pessoas vão comer e beber e há várias atrações. E Portugal, que a gente já…

Agora fomos para a Bélgica participar do Europalia, festival no qual o país homenageado era o Brasil. Escolheram a Intrépida para representar essa linha do circo novo lá. Mas, hoje em dia, as viagens internacionais estão mais… No começo, no final dos anos 80 e começo dos anos 90, viajávamos com mais frequência. Agora, talvez devido à crise financeira mundial, com elenco grande, equipamento… Venho tentando fazer alguns trabalhos focados nas pessoas e na técnica, até para poder viabilizar essa troca, que geralmente é muito rica.

Quantas pessoas tem agora na Intrépida? Você falou que tem mais de um grupo.

O elenco que foi para a Bélgica é composto de umas 8 pessoas, e nesse elenco jovem somos 13. Fora a [equipe] técnica, claro. O outro [que foi para a Bélgica] tem umas 5, 6 pessoas na técnica, porque se trata de um espetáculo que necessita de subir e descer coisas. Senão fica difícil viabilizar. Mas, a gente dá um jeitinho, né? Gostamos de viajar e estamos abertos para os intercâmbios possíveis, dentro do que as pessoas podem oferecer, dentro das datas… Se estiver ao nosso alcance, sempre temos uma abertura para trocar.

Há também esse outro intercâmbio. Ano passado, por exemplo, eu viajei por várias capitais do Brasil dando aula, a Vandinha também, de técnicas de segurança. A Vandinha [Jacques] é diretora técnica e pedagógica, mas tem o Claudio Baltar, que também é diretor técnico e dirigiu os Sonhos de Einstein, e eu, que vou mais para o lado de direção artística, de coreografias, e imagens, cena. Mas eu trabalho junto com o elenco, né? de imaginar coisas e realizar na cena.

Não faz muito tempo, fui convidada pela Funarte para dar aula para pessoas de circo tradicional. Pequenos e médios circos. Porque eles têm uma coisa de muita carência, no sentido de luz, figurino. Com o tempo, vão ficando na periferia da periferia, muito pobres. Às vezes, nos pequenos e médios circos, os filhos não querem mais seguir a carreira de circo porque ela é muito árdua. Então, a Funarte fez um programa de oficinas para eles, de maquiagem, luz, expressão corporal, consciência corporal.

O corpo do circense tradicional sofre muito. Muitas vezes eles não têm noção de determinadas formas de se aquecer que são mais doces para o corpo, de compensar esforços repetitivos… E eu acho que o circo novo tem um.. Eu tenho um amor muito grande pelo circo tradicional, porque o que me fez me apaixonar pelo circo quando eu era pequena foi… Eu morava no interior de Mato Grosso, e era importante o momento em que o circo chegava na pequena cidade. No que eu puder ajudar o circo tradicional e homenageá-lo, o que tiver ao meu alcance, eu farei. Para mim, o circo tocou meu coração de uma forma que mudou a minha vida. Eu estou há 25 anos nessa história e, assim… Eu quis voar, acabei voando e ajudando um monte de gente a voar.

É, o circo com intercâmbio de linguagens, meio espetáculo teatral…

Que é mais viável, né? Acho que ele pode estar mais em todo lugar. Não depende daquela mega estrutura, lona… Isso tudo é um dia-a-dia muito árduo.

Mas também não tem uma estrutura tão itinerante como tem essa ideia da lona…

É, a gente podendo itinerar é sempre bom, porque está na essência do circo esse lado nômade. Você poder trocar com as culturas que vai conhecendo no caminho. Por isso eu acho que é muito bacana o Tangolomango. Sinto que existe essa filosofia da troca, que de alguma forma é o nomadismo. Você está num lugar mas as coisas estão sendo trocadas e passando, como quando você viaja.