intrépida trupe: entre voos e desafios, aos 25

entrevista com beth martins, da intrépida trupe, publicada no overmundo, pouco depois do festival tangolomango. rio de janeiro, 2011

Em novembro desse ano aconteceu o Tangolomango – festival da diversidade cultural, nas cidades Rio de Janeiro e Buenos Aires. Comemorando 10 anos de atividades, o Tangolomango resolveu inovar em 2011, dando início a um ciclo de eventos que ocorrerão simultaneamente em uma capital brasileira e outra da América Latina, alternando as cidades onde acontecem a cada ano.

Tangolomango é muito mais do que o espetáculo de um só dia, que acontece (ou aconteceu), no caso do Rio de Janeiro, no Circo Voador. É um espaço de intensas trocas entre grupos de dança, circo e música, que se propõem a trabalhar juntos durante as datas que antecedem imediatamente o festival, para criar uma grande e diversificada apresentação.

Nesse contexto, o Overmundo já soma vários anos de parceria, seja na cobertura do evento, seja na feitura do catálogo e entrevistas, como nesse ano, agregando redes pelo Facebook e fazendo as entrevistas lá mesmo.

Durante a correria louca que foi produzir esse material, possibilitando trocas muito prazerosas e conhecendo grupos brilhantes que iriam participar, a única entrevista “analógica” que acabei fazendo foi com a Beth Martins, da Intrépida Trupe. A proximidade ajudou: o escritório do Overmundo fica a poucos passos da Fundição Progresso, espaço no qual a Intrépida ensaia já fazem nem sei quantos anos.

Eu era pequena quando comecei a acompanhar a Trupe, nos idos tempos em que morava em Niterói, e, mais tarde, ainda na escola primária, fui encontrar no Rio de Janeiro uma aula de acrobacia entre as atividades extracurriculares da escola! Tenho saudades do trapézio até hoje, me recordo de alguns movimentos, como o salto leão (acrobacia de solo), e na época eu era doida pra misturar isso com ginástica olímpica. Mas não sabia fazer parada de mão.

Por isso tudo, fiquei muito feliz de poder fazer essa entrevista pessoalmente. Nem deu tempo de falar para a Beth da relação afetiva que eu guardava com o grupo, em memórias, e sempre acompanhando os espetáculos que eles vêm fazendo, incansáveis. Sonhos de Einstein, relativamente recente, trata do sonho antigo que tem o ser humano de voar, e por isso pode parecer comum, mas é muito belo. Hoje, acho que me desperta mais interesse o uso de cordas, escadas e outros apetrechos que estão em algum lugar entre o alpinismo, o circo e, vagamente, aqueles brinquedos de subir de criança. E em muitas práticas. A infância está sempre ali em algum lugar – e eu digo aquela que ninguém devia nunca abandonar. De querer subir em coisas e dar piruetas, dançar.

Como foi feita em voz, registrada com gravador (digital), transcrevi a entrevista e editei procurando manter ao máximo a fidelidade aos modos de fala. Não é a primeira vez que faço um trabalho de transcrição, mas nesse pude ter a liberdade de manter todas as reticências que compõem uma fala, quando o pensamento procura uma resposta e ela vem em diversas frentes, semifalas que aos poucos vão constituindo uma linha de raciocínio. Às vezes ela se perde, ou se lemos pensando no falar – e sou muito grata a Guimarães Rosa por registrar com tamanha minúcia os hábitos e criações de fala de grupos específicos, pessoas – acabamos por entender o todo, e essas buscas feitas pelo pensamento. É construção.

Peço que não relevem o delay com que chega esse material na íntegra ao Overmundo. Um resumo bem resumido das ideias está no site do Tangolomango, junto aos textos que produzimos para os outros grupos. As entrevistas eram preferencialmente feitas pelo Facebook como uma forma experimental de promover a interação entre os entrevistados, e quem mais quisesse aparecer e participar.

Exclusiva, portanto, e não menos reflexiva, da entrevista na Fundição resultaram essas poucas palavras que troquei com a Beth Martins nos minutos antes do ensaio da equipe jovem da Intrépida. A maior parte das apresentações que ela cita já são passado, ainda que recente, como o próprio Tangolomango. Sobre como foi o festival, aqui no Rio de Janeiro e em Buenos Aires, vocês podem ler no site do Tangolomango – ou buscando diretamente pela tag ‘2011’. As outras palavras, sobre a trajetória da Intrépida Trupe, que comemora 25 anos em 2011, suas diversas atividades, modos de fazer, práticas, países latino-americanos, circo novo e circo tradicional, estão abaixo. Leiam com carinho e empolgação!

ENTREVISTA COM BETH MARTINS DA INTRÉPIDA TRUPE || TANGOLOMANGO 2011

concedida a Inês Nin, Overmundo, em 31/10/2011

Quais são as suas expectativas em relação ao Tangolomango? O que você já tinha ouvido falar antes e o que espera dessa troca?

Bom, eu ouvia sempre esse nome Tangolomango, que era um encontro de grupos, mas nunca tinha participado. E aí, com o contato que o Tangolomango fez com a gente esse ano, uma das coisas que eu me animei é que a pessoa que vai dirigir [Ernesto Piccolo, diretor artístico] é uma pessoa com quem eu já trabalhei muitas vezes e de quem gosto muito. Então, foi um pouco em função desse lado afetivo… Porque é uma proposta de 3 dias de imersão, e para os jovens com quem estou trabalhando acho super importante esse contato.

Na Intrépida, há 15 anos a gente faz um trabalho de formação. E um dos fatos que fez com que a Intrépida Trupe sobrevivesse por 25 anos é que a gente sempre foi muito aberto. Eu não digo que tem uma Intrépida – são muitas intrépidas que foram Intrépida nesses 25 anos. E há 15 anos a gente forma gente. Tem muitos no nosso elenco que chegaram com uma base de dança, de teatro, e adquiriram coisas de circo com a gente. Ou que toda a formação de dança, teatro e circo foi feita aqui no nosso espaço. Então, tudo o que é possibilidade de intercâmbio, de troca, sempre nos atraiu muito. Trabalhamos com essas três linguagens. E, pelo que eu entendi, o Tangolomango também abraça as linguagens cênicas de uma forma mais aberta. Assim, a minha expectativa é que seja um ótimo encontro, uma ótima troca, e que a gente possa aprender coisas, ensinar coisas, e descobrir coisas novas nesse encontro. Acho super legal.

O fato de existir agora um foco nesse intercâmbio latino-americano considero muito interessante. Porque nós temos uma riqueza cultural muito grande na América do Sul, na América Central, e a gente desconhece. Muitas vezes as nossas referências são europeias e norte-americanas. Portanto, eu dou um voto de louvor e admiro uma iniciativa que priorize essa troca entre países tão próximos e tão ricos culturalmente.

O que você poderia falar desses 25 anos da Intrépida? Existem atividades comemorativas? Você já disse que foram muitas Intrépidas ao longo desse tempo…

É, foram muitas Intrépidas e eu tenho o privilégio de estar desde a fundação. Desse modo, eu sou de certa forma uma guardiã, uma dinossaura dentro dessa história.

Vinte e cinco anos na vida de um grupo são muitos anos na vida de uma pessoa. É muito intenso, são muitas trocas. A dinâmica de grupo é muito rica, então são muitos anos. O Eugênio Barba fala isso, que 20 anos na vida de um grupo são 60 na vida de uma pessoa. Então, a gente já está com 70, quase 80 anos. E eu me sinto privilegiada porque tive a oportunidade de criar essa história junto com vários artistas, que continuam aí no mercado. Artistas maravilhosos, como o Gringo Cardia, Dani Lima, Alberto Magalhães dos Brothers, a Debinha Colker (Deborah Colker), que trabalhou com a gente coreografando, no começo…

E eu sei muito da história, além de vir trabalhando também nessa área de formação fortemente junto com a Vanda [Jacques]… Nós duas fomos as únicas a permanecer durante todos esses anos. É uma alegria podermos chegar nessa idade e comemorar… E estar com um elenco jovem.

Quando começamos a trabalhar com esse grupo, em 2009, eles tinham 15, 16 anos… entre 16 e 20 e poucos anos, hoje eles estão com 18 a 25. Começamos montando repertório dos anos 80 que havíamos criado, coisas lindas e que esse público de agora conhece pouco. E acabamos fazendo um espetáculo com eles que fez muito sucesso, chamado Preciosa Idade. Porque é uma idade preciosa esse momento de virada da adolescência para a vida adulta. Agora estamos muito felizes, por estarmos lidando com um processo de criação em um trabalho totalmente novo.

Em fins de novembro e começo de dezembro, faremos no Arpoador três finais de semana na Praça Garota de Ipanema, com remontagem de repertório. São outros números que eles ainda não experimentaram no corpo, outros que já experimentaram. Além disso, continuamos trabalhando nos ensaios o novo trabalho, também em comemoração dos 25 anos, que deve estrear ano que vem [2012], em abril ou maio. Talvez aqui no nosso palco, talvez no Teatro Carlos Gomes. São alegrias.

Temos também outro elenco, formado por pessoas mais velhas, que está na Europa, no festival Europalia, representando o Brasil na área de circo. Vamos fazer dois espetáculos em Bruxelas. Nos deixa muito alegres ter várias frentes em movimento como agora. Uma de formação, um elenco jovem, outro mais maduro. E, de forma menos intensa mas sempre presente, atuamos e continuamos a atuar em projetos sociais que incluem o circo. Fomos pioneiros nessa linguagem.

Começamos com a Intrépida tem uns… minha filha tem 18 anos, eu estava grávida dela… 19, 20 anos atrás a gente começou. O Betinho do Viva Rio chamou a gente para abordar crianças na rua, e isso gerou vários projetos que trabalham com jovens em situação de risco com o circo. Temos um vínculo com vários desses projetos, no nosso elenco tem alguns meninos que foram desses projetos, então estão trabalhando com a gente, também… Na parte técnica também… É uma alegria comemorar 25 anos e ver tantos frutos, o trabalho ampliado em várias frentes e ter uma perspectiva de futuro. No mínimo, mais 25 anos, espero. A galera jovem aí seguindo, continuando a escola, a formação.. é isso.

Você dirige o grupo desde o começo? Ou teve uma trajetória dentro dele?

Na Intrépida a gente sempre foi meio múltiplo. Então, quando começamos… E essa coisa também de ser um grupo que… Hoje você vê muitas companhias que fazem uma seleção do elenco, baseada nas técnicas de dança, nas técnicas de circo. No nosso caso, sempre tivemos várias áreas trabalhando juntas. Tinha um gordinho que não pulava nada, não se pendurava, mas era muito engraçado… era um palhaço, entendeu? E tinha um outro que desenhava muito bem e fazia mil coisas lindas, então era o cara que fazia os cartazes e figurinos. É um grupo que sempre respeitou a diferença como um ponto de riqueza. É por isso, acredito, que a linguagem do grupo sempre foi muito impactante, tanto no sentido visual quanto do humor, da irreverência. No lírico… no poético… Sempre tivemos isso da singularidade de cada um, da diversidade do elenco. Sempre fizemos de tudo um pouco.

No começo, a gente montava, costurava os trapézios, se dirigia, fazia trilha, bolava luz… Foi uma coisa que fomos fazendo, e isso é algo típico dos anos 80. A minha história é um pouco assim: eu dançava com a Graciela Figueroa, Coringa, que foi um grupo pioneiro de dança contemporânea aqui. Ela misturava acrobacia, tai chi, capoeira, dança clássica, neoclássica, moderna… E eu desde o começo tinha um olhar sobre as organizações espacial e coreográfica da coisa. Fui me especializando nos aéreos, uma vez que eu já dançava no chão. Me interessavam o trapézio, cordas… coreografia. E aos poucos fui assumindo a direção de um trabalho ou outro. Hoje, estou mais voltada para a formação, a direção e as coreografias do que estou em cena. Mas ainda faço as minhas brincadeiras pendurada de vez em quando. Ainda me sinto com esse gás de às vezes aparecer e fazer alguma coisa em cena.

E o que você conhece da América Latina? Provavelmente a Intrépida já deve ter se apresentado em outros países das América do Sul, por exemplo.

Olha, infelizmente nos apresentamos muito pouco. Considerando a América Central, a nossa primeira viagem foi para o México, exatamente no ano em que a gente nasceu. Era uma missão cultural do Circo Voador. Na época trabalhávamos muito no Circo, com efeitos. Tínhamos ido montar o Circo Voador no Maranhão, em São Luís. Nessa ocasião, o prefeito estava lá e falou: “Esse é o ano da Copa do Mundo, vamos montar a lona lá?”. Circo Voador tem que ter circo. A gente junta o pessoal da Escola de Circo, o pessoal de dança e vamos nessa. Nossa origem é um pouco essa viagem para o México. Tem releases nossos que dizem: “a Intrépida Trupe nasceu em 86 numa missão cultural ao México”. De alguma maneira, o grupo é meio mexicano, meio brasileiro.

Fomos à Colômbia, num festival em Manizales, e fizemos uma apresentação uma vez num evento na Argentina. Eu adoraria que a gente circulasse mais, que pudéssemos fazer uma troca, um intercâmbio mais rico. Tanto com o Uruguai, Argentina, Paraguai, Peru, Bolívia, Chile… Sei lá, Guatemala, são países belíssimos com essa cultura rica. E o mundo a gente já fez bastante. Portugal, França, Alemanha, EUA… são os lugares que a gente mais foi. Mais a França: nos apresentamos no festival de circo de Demain algumas vezes, participamos dos festivais que tem em Nanterre também… Na Alemanha, fomos em um festival convidados a fazer uma temporada num théâtre de variété, com gente do mundo inteiro, que é uma noite… Tipo um Canecão, em que as pessoas vão comer e beber e há várias atrações. E Portugal, que a gente já…

Agora fomos para a Bélgica participar do Europalia, festival no qual o país homenageado era o Brasil. Escolheram a Intrépida para representar essa linha do circo novo lá. Mas, hoje em dia, as viagens internacionais estão mais… No começo, no final dos anos 80 e começo dos anos 90, viajávamos com mais frequência. Agora, talvez devido à crise financeira mundial, com elenco grande, equipamento… Venho tentando fazer alguns trabalhos focados nas pessoas e na técnica, até para poder viabilizar essa troca, que geralmente é muito rica.

Quantas pessoas tem agora na Intrépida? Você falou que tem mais de um grupo.

O elenco que foi para a Bélgica é composto de umas 8 pessoas, e nesse elenco jovem somos 13. Fora a [equipe] técnica, claro. O outro [que foi para a Bélgica] tem umas 5, 6 pessoas na técnica, porque se trata de um espetáculo que necessita de subir e descer coisas. Senão fica difícil viabilizar. Mas, a gente dá um jeitinho, né? Gostamos de viajar e estamos abertos para os intercâmbios possíveis, dentro do que as pessoas podem oferecer, dentro das datas… Se estiver ao nosso alcance, sempre temos uma abertura para trocar.

Há também esse outro intercâmbio. Ano passado, por exemplo, eu viajei por várias capitais do Brasil dando aula, a Vandinha também, de técnicas de segurança. A Vandinha [Jacques] é diretora técnica e pedagógica, mas tem o Claudio Baltar, que também é diretor técnico e dirigiu os Sonhos de Einstein, e eu, que vou mais para o lado de direção artística, de coreografias, e imagens, cena. Mas eu trabalho junto com o elenco, né? de imaginar coisas e realizar na cena.

Não faz muito tempo, fui convidada pela Funarte para dar aula para pessoas de circo tradicional. Pequenos e médios circos. Porque eles têm uma coisa de muita carência, no sentido de luz, figurino. Com o tempo, vão ficando na periferia da periferia, muito pobres. Às vezes, nos pequenos e médios circos, os filhos não querem mais seguir a carreira de circo porque ela é muito árdua. Então, a Funarte fez um programa de oficinas para eles, de maquiagem, luz, expressão corporal, consciência corporal.

O corpo do circense tradicional sofre muito. Muitas vezes eles não têm noção de determinadas formas de se aquecer que são mais doces para o corpo, de compensar esforços repetitivos… E eu acho que o circo novo tem um.. Eu tenho um amor muito grande pelo circo tradicional, porque o que me fez me apaixonar pelo circo quando eu era pequena foi… Eu morava no interior de Mato Grosso, e era importante o momento em que o circo chegava na pequena cidade. No que eu puder ajudar o circo tradicional e homenageá-lo, o que tiver ao meu alcance, eu farei. Para mim, o circo tocou meu coração de uma forma que mudou a minha vida. Eu estou há 25 anos nessa história e, assim… Eu quis voar, acabei voando e ajudando um monte de gente a voar.

É, o circo com intercâmbio de linguagens, meio espetáculo teatral…

Que é mais viável, né? Acho que ele pode estar mais em todo lugar. Não depende daquela mega estrutura, lona… Isso tudo é um dia-a-dia muito árduo.

Mas também não tem uma estrutura tão itinerante como tem essa ideia da lona…

É, a gente podendo itinerar é sempre bom, porque está na essência do circo esse lado nômade. Você poder trocar com as culturas que vai conhecendo no caminho. Por isso eu acho que é muito bacana o Tangolomango. Sinto que existe essa filosofia da troca, que de alguma forma é o nomadismo. Você está num lugar mas as coisas estão sendo trocadas e passando, como quando você viaja.

cosplay no brasil: os concursos, a mídia e os fãs

pesquisa realizada para o projeto open business II, coordenado pelo instituto overmundo

Imagine do que agrupamentos de fãs são capazes. A ideia começa como uma reunião de gente que pesquisa objetos do seu interesse e busca compartilhá-los com mais pessoas, formando, assim, aos poucos, um grupo. O grupo se desdobra em vários, espalhados por outras áreas. Nas reuniões se desenvolvem outras práticas, a tecnologia que torna disponível o acesso e as trocas muda e o contexto também, ao longo do tempo. As pessoas começam a levar cada vez mais a sério seus hábitos de fã – hobbies, por assim dizer, ainda que possam demandar muita dedicação e custar não pouco dinheiro.

Em questão de anos, as pequenas reuniões se tornam grandes eventos por todo o país, mantêm estreitas relações com outras localidades, aparecem na mídia e motivam cada vez mais pessoas a praticarem os mesmos hobbies. Os fãs se profissionalizam, carregam o conhecimento para suas áreas e formam organizações, comercializam produtos relacionados, produzem mais eventos. Eles são parte, são público e mídia, palco e plateia. É um show, como na televisão, mas também há competições, viagens e muito, muito trabalho. E tudo, no fim, é pela diversão.

“A sensação de você subir ao palco e interpretar é algo indescritível. É como se o mundo se fechasse um instante naquele momento em que você vive o anime/mangá que interpreta. Você aprende, mesmo que não confeccione, muitos detalhes de roupas, acaba tendo conhecimento dos estilos, precisa estudar o personagem, sua história, suas atitudes e sua emoção, principalmente na cena em que irá interpretar. E, na hora da apresentação, é inevitável você ter aquela sensação de que realmente está vivendo aquele momento como ele.” (Michele Rommel, ou Mi Kurosaki, quando perguntada sobre qual é o papel que o cosplay desempenha na sua vida).

Onde mais se vê um show em que o público é a grande atração? Começa pelas sessões de fotos na entrada, da qual participam todos aqueles que estiverem devidamente caracterizados. Depois, muitos desses sobem ao palco, seja participando da competição principal, seja em uma menor organizada ali, na hora. A plateia vota através de placas com sinal verde ou vermelho nessa primeira, e jurados que atuam no ramo (ou simplesmente na mídia) decidem os vencedores da competição principal. Era esse o formato geral, ao menos no Cosplay In Rio Show, ocorrido em um domingo ensolarado no Teatro Odylo Costa Filho, na UERJ, em 20 de fevereiro desse ano.

Intercalado por shows de bandas como a Negrayscow, de JRock; Anime Daiko, além de curtas entrevistas com dubladores de diversos personagens de desenhos animados (japoneses ou não), o concurso era o ápice da celebração. O formato de evento, no entanto, variou ao longo dos anos. Pedro Carvalho, 23 anos, há 10 organiza eventos de cultura pop japonesa no Rio de Janeiro. Já foram cineclubes caseiros, festas de diversos formatos, Anime Center, Rio Anime Club. No Cosplay In Rio Show, participaram duplas com cosplays já vencedores noutros anos em competições pelo Brasil, selecionadas a dedo para comporem esse rol dos melhores dos melhores que se apresentou no palco do teatro. Ainda assim, havia competição e prêmios.

A competição era também etapa regional do WCS Brasil, braço brasileiro do World Cosplay Summit, um dos principais concursos do gênero no mundo, e o mais forte no Japão. Patrocinado pela TV Aichi, japonesa, e pela Editora JBC, o concurso WCS é realizado no Brasil através de seletivas regionais, totalizando, no último ano, 10 estados brasileiros participantes. Eventos que já existem são credenciados e se tornam parceiros, passando a ter que cumprir uma série de regras, estabelecidas com base no campeonado mundial no Japão.

O sucesso de produtos de cultura pop japonesa entre os brasileiros não é de hoje, mas a popularidade dos mangás teve um boom nos anos 2000. Juntamente a eles, novos animes de sucesso começaram a ser transmitidos pela TV. Os games japoneses, presentes no mercado desde o começo da história dos jogos eletrônicos, completam o tripé dos inspiradores dos personagens incorporados pelos fãs quando fazem cosplay. Não à toa, é esse o mesmo tripé que sustenta o hobby no âmbito comercial.

Ainda que muitas empresas locais possam não fazer ideia do que é cosplay, e aquelas ligadas ao ramo de animes/mangás/games possam não ter se dado conta do tamanho potencial de divulgação de suas marcas que ele apresenta, esse é um caminho processual, que vai sendo aberto. E bastante rapidamente, se considerarmos o público dos eventos, que só aumenta, em grande parte devido ao gigantesco engajamento dos fãs. Aliás, sem eles, nada ocorreria.

Concursos e eventos

Os eventos começaram como cineclubes caseiros para ver os animes que não chegavam ao Brasil. Ou melhor: era possível comprar alguns somente no bairro japonês da Liberdade, em São Paulo, ou importar fitas VHS do exterior. Em fins dos anos 90 e começo dos 2000, a banda larga no Brasil ainda não era tão difundida, e somente com o crescimento da popularidade dos animes, por um lado, e com o barateamento das tecnologias, de outro, é que foram se tornando possíveis outras alternativas de acesso. Hoje, há muito mais animes passando na televisão, ainda que prioritariamente em canais por assinatura; o YouTube e os próprios sites de algumas TVs disponibilizam os episódios veiculados em streaming gratuito quase que no horário em que são veiculados na TV, e mesmo os DVDs oficiais estão infinitamente mais acessíveis e baratos.

Pedro Naine, antigo frequentador desses eventos, conta que em 1999 o que acontecia no Rio de Janeiro era concentrado mais em estandes de venda de mangás, brinquedos, CDs e artigos de papelaria relacionados aos personagens, e havia poucas pessoas fazendo cosplay. Isso, é claro, além das exibições de animes inéditos para os brasileiros, mas “hoje todo mundo baixa e vê o que quiser”.

Quando não existiam todas essas facilidades ao alcance, havia fãs se dedicando a produzir scanlations e fansubs para episódios de animes, e tornando-os disponíveis gratuitamente na internet. Outros vendiam fitas VHS a preço de custo pelo correio para aqueles que ainda não tinham banda larga. Isso desde fins dos anos 90 e começo dos 2000, juntamente à crescente popularização dos cineclubes, que aconteciam mensalmente no Rio de Janeiro e se espalhavam por outras localidades em São Paulo.

Contando com uma estrutura bem maior e mais “oficializada” atualmente, os eventos se transformaram, moveram o foco dos cineclubes para as performances, seguindo uma própria demanda do contexto em volta. Uma pesquisa feita em dezembro de 2009 pela Fundação Japão aponta 175 eventos ao todo. O menor público registrado é de 2.000 pessoas, e a estimativa de público total, considerando todos os eventos computados de todas as regiões do Brasil, é de 17.500 pessoas em um só evento, com a maioria dos participantes (75%) com idades entre 10 e 22 anos.

Há casos extremos que merecem destaque, como o Anime Friends, em São Paulo, que reúne em média 150 mil pessoas durante os 10 dias de realização da feira. Entretanto, os estados com a mais expressiva quantidade de eventos e público não estão só no eixo Rio-São Paulo; Goiás, Distrito Federal, Pernambuco, Minas Gerais e Ceará também concentram uma grande quantidade de eventos.

No quesito formato, antes de existir o WCS as regras para as apresentações de cosplayers (nome dado àqueles que praticam cosplay) não eram muito definidas. Muitas vezes, tanto as performances quanto as próprias fantasias poderiam ser bem menos elaboradas. As tais regras teriam sido responsáveis por organizar em torno de padrões comuns as apresentações de cosplayers por todo o país, equiparando-os aos do resto do mundo. Desse modo, a necessidade de cosplays confeccionados pelos próprios cosplayers (e não comprados), o tempo de cada apresentação, a opção por duplas, o tamanho dos cenários e figurinos, o veto ao uso de efeitos especiais perigosos ou que sujem muito o espaço, a dublagem de cenas, o uso de músicas em um CD levado pelos participantes e a imposição de que os personagens representados sejam de animes/mangás/games de origem japonesa (e que ambos da dupla sejam necessariamente do mesmo), são algumas das ações regulamentadas. Embora possam parecer, porventura, restrições em excesso, Edi Carlos, coodenador do WCS Brasil e supervisor da área digital da Editora JBC, argumenta que “as limitações são boas porque fazem com que as pessoas busquem soluções”.

Um fato concreto é que as exigências serviram para fomentar um empenho admirável dos cosplayers, em busca da perfeição nos resultados. Esforço recompensado. O Brasil, no ranking dos concursos de cosplay, se encontra entre os melhores do mundo: só no WCS, o país venceu logo no primeiro ano em que competiu, em 2006, e dois anos depois, em 2008. Em 2010, quem levou pra casa o troféu do mundial foi a Itália. Até hoje, foi só em 2009 que o Japão finalmente conquistou o prêmio, o que demonstra uma vitória tanto da diversidade de interpretações de seu universo a nível internacional, quanto da qualidade e apreço a essas performances.

Tal profissionalismo se reflete, por exemplo, na perfeição das fantasias elaboradas por Gabriel “Hyoga” Niemietz, 29 anos, campeão do WCS mundial em 2008 junto a Jéssica Campos, ou no trabalho dos irmãos Maurício e Mônica Somenzari, que deram o primeiro prêmio no WCS ao Brasil em 2006 e são novamente os selecionados para o concurso em 2011. Para se ter uma ideia da quantidade de energia e empenho dedicados, a dupla vencedora do Cosplay In Rio Show, Paulo Roberto Lacerda e Mara Suely, de Fortaleza, conta ter ficado em torno de seis meses ensaiando até encontrar o tom certo para a apresentação. As fantasias também não são baratas, muitas vezes, sem contar o trabalho na confecção e a atenção aos mínimos detalhes.

Propriedade intelectual

As regras do WCS têm como base os padrões japoneses de cosplay, particularmente afeitos à fidelidade aos personagens. Variações muito gritantes, ainda que propositais, podem fazer muito sucesso em alguns lugares – como é o caso de cosplayers famosas na Itália, que chegam a criar seus próprios personagens – mas resultariam em uma desclassificação no concurso. Uma regra no WCS 2011 chama a atenção: trata-se da primeira restrição evidente no que se refere a direitos autorais da qual se fala publicamente. Mangás e animes muito populares, como Naruto, Bleach e Dragonball Z não podem ser usados como temas de cosplays no concurso, nem em referências vagas, devido a um bloqueio estabelecido pela responsável por sua publicação no Japão. A Editora Shueisha entende que a TV Aichi, associada a outra editora, a JBC, não tem permissão para veicular as imagens ou qualquer referência ligada aos seus personagens. É um embate de grandes empresas de mídia, sobretudo, que acaba se refletindo num bloqueio que atinge os próprios fãs.

Edi Carlos conta que não se sabe de outro bloqueio como esse. Ainda que o cosplay seja por princípio um assunto delicado, “pois estamos lidando com a propriedade intelectual de outra pessoa”, as únicas restrições feitas publicamente até então diziam respeito à música: muitas vezes as apresentações de cosplay não podiam usar as canções ou as falas originais dos animes, pois isso caracterizaria violação aos direitos autorais. É por isso que os cosplayers devem dublar as apresentações eles mesmos e levar os CDs que irão usar. As falas não podem ser feitas ao vivo, como numa apresentação teatral comum, por considerarem isso um risco de dar errado e não funcionar, ou para os cosplayers terem menos uma coisa com que se preocupar.

Quando questionei sobre assuntos ligados à internet e à propriedade intelectual, ouvi opiniões divergentes: a controvérsia e uma postura por vezes reticente não é surpresa, diante de um mercado em expansão inserido em um contexto repleto de mudanças a todo momento.

“Nos últimos anos a questão da propriedade intelectual transformou-se numa verdadeira corrida disputada entre a legislação e a tecnologia. Conforme a evolução tecnológica aumenta as possibilidades de acesso e a facilidade de se distribuir e copiar conteúdo, a legislação sofre alterações para tentar adaptar-se aos novos tempos”, pondera Wellington França, representante do site Cosplay Brasil. “Essa corrida às vezes torna-se um embate quando os meios de proteção intelectual se tornam antítese das formas atuais de divulgação e distribuição. A própria restrição ao direto de cópia parece estar obsoleta diante da realidade em que vivemos, a era da internet. Se considerarmos que o conhecimento humano, transmitido de geração em geração é a base de nossa sociedade, podemos deduzir que a cópia é um mecanismo essencial para a nossa existência, educação e evolução. A cópia no âmbito da internet pode levar a resultados significativos. Restringir o acesso e distribuição não me parece o melhor caminho para se incentivar a produção cultural e intelectual.”

Edi Carlos, individualmente, segue um caminho parecido quando perguntado sobre suas opiniões pessoais a esse respeito: “Mas eu falo por mim. Não é essa a postura da editora (JBC)”, ressalta. Já Pedro Carvalho é extremamente cauteloso na hora de responder questões relativas à difusão de conteúdo e propriedade intelectual, e condena veementemente práticas como a pirataria. Contudo, Carvalho reconhece que a questão é complexa, cheia de controvérsias e terrenos nebulosos.

Essa cautela ao falar do assunto pirataria reflete a procura pela profissionalização do setor e a busca pela desassociação do cosplay a práticas ilegais, como aconteceu na primeira metade dos anos 2000. Aproveitando a lacuna deixada pela distribuição oficial no Brasil de muitos animes, uma empresa prensava DVDs tal como os oficiais, com legendas de fãs, e vendia essas mídias contendo blocos de 4 episódios a 9 reais em média cada. Os lucros conseguidos com essa prática não são conhecidos, mas a popularidade dos DVDs era enorme, sobretudo entre aqueles que não tinham recursos para baixar os episódios gratuitamente da internet, ou que simplesmente preferiam comprá-los.

O acesso a produtos oficiais, no entanto, é cada vez maior, pois hoje já existe um mercado formal bem maior no Brasil. “O cosplay é uma subcultura do mundo do entretenimento. Portanto, todo o comércio voltado a este hobby sempre será atrelado às mídias que a originam, como filmes, games e livros”, afirma Wellington França. Pedro Carvalho cita a Editora Panini, que estaria entrando no mercado de cultura pop japonesa só recentemente, mas com estratégias bastante agressivas: refletindo uma tendência atual nas práticas relativas à propriedade intelectual, tem se tornado cada vez mais comum que, quando uma editora compra os direitos de reprodução de um mangá, acabe comprando logo os direitos do anime, do game, da confecção de bonecos e camisetas, em suma, de todos os subprodutos possíveis de ser comercializados de uma marca.

Sustentabilidade e formalização

A questão do patrocínio é, até hoje, algo não completamente resolvido nos empreendimentos do setor no Brasil. Edi Carlos, da Editora JBC, afirma que o renomado WCS Brasil mal se paga, e que é mais um investimento da editora que outra coisa, até o momento. “O mundo do cosplay é mais um meio de ações de marketing que um mercado efetivo”, diz, enfatizando o potencial de divulgação da cultura pop japonesa que o cosplay vem desempenhando pelo mundo. Esse é um terreno que começa a ser explorado, e, no Brasil, há ainda muito a se trilhar para que as empresas reconheçam esse potencial e invistam maciçamente em eventos do ramo. A formalização é algo que certamente contribui para que os organizadores ganhem confiança e credibilidade frente aos investidores.

Pedro Carvalho, ao perceber a demanda pela formalização, criou o Instituto Japão Pop BR, dedicado à divulgação da cultura pop japonesa no Brasil. A ideia, segundo ele, é “mostrar para o Japão o quanto a gente tem de público”, de maneira a incentivar os investimentos no Brasil e, através dessa representatividade, facilitar a obtenção de patrocínio, além de “trabalhar em parceria através de redes com organizações regionais, permitindo alavancar toda a cadeia produtiva desse novo universo jovem no Brasil e na América do Sul”.

Internet, mídias e redes

Sobre o papel da internet na popularidade da cultura pop japonesa, Wellington França narra em mais detalhes: “Se o cosplay alcançou grande popularidade no Brasil e no mundo nos últimos 10 anos, podemos dizer que isso se deve principalmente à internet. Em meados da década de 90, a principal forma de interação entre os fãs de quadrinhos, ficção científica, games ou de cultura pop de uma forma geral era através dos fã-clubes, que tinham um alcance e visibilidade limitados. O acesso à produção artística e cultural por esses fãs também era limitado e difícil. E isso era refletido nos eventos voltados a este público, restritos e pouco conhecidos. Com o surgimento da internet, diversas gerações de fãs tiveram a oportunidade de se integrar como nunca antes, organizando-se em fóruns, grupos de discussão e listas de e-mail, e trocando informações e conteúdo em uma escala realmente espantosa. Fãs que começavam a praticar o cosplay no Brasil puderam conhecer a dimensão desse hobby pelo mundo, importando ideias e conceitos de outros países, em especial Estados Unidos e Japão. Quando apareceram as redes sociais, pudemos presenciar a segunda etapa dessa revolução no mundo do cosplay: o YouTube popularizou ainda mais o hobby fora dos ambientes das convenções, permitindo que qualquer cosplayer se tornasse um produtor de conteúdo. Orkut, Facebook e Twitter contribuíram na organização de grupos de cosplay, no surgimento de comunidades regionais, além de expandir ainda mais as opções de interação e troca de informações entre cosplayers.”

Existem diversos sites dedicados ao cosplay no Brasil, alguns ligados a eventos regionais, outros com perfil agregador e de difusão de conteúdo num sentido mais geral – como o próprio Cosplay Brasil, pioneiro, ou o do WCS; sites com tutoriais e venda de acessórios etc. O Cosplayers.net se propõe a ser uma comunidade virtual específica para esse público, mas está nos seus primeiros passos. De acordo com Pedro Carvalho, o uso das redes sociais como se apresenta hoje contribui também para fragmentar muito um público que procura se unir em torno de um mesmo foco de interesse. “Ainda sinto a necessidade de uma rede social direcionada ao público, com ferramentas que permitam a troca de experiências entre cosplayers, mini-aulas, ou simplesmente canais de comunicação setorizados como games, sinopses de animações, vídeo aulas. Falta um point único (como era o Orkut) para essa galera…”

Futuro

As ambições de todos os organizadores com quem conversei parecem ser se equiparar com o mercado formal internacional, sempre tendo como norte o Japão – e às vezes os EUA. A maioria dos eventos se concentra, hoje, principalmente na realização dos concursos de cosplay. Há uma demanda por uma expansão nas ações de marketing para games, o que em grande parte tem a ver com o fato de as empresas de jogos eletrônicos terem “se ligado” mais rapidamente no grande potencial de divulgação que o cosplay apresenta para o ramo.

O recém-criado Cosplay In Rio Show, organizado por Pedro Carvalho no Rio de Janeiro e já com patrocínio de uma grande empresa telefônica através de leis de incentivo estaduais, começa a trilhar um caminho um pouco diferente. Ao invés de se concentrar no concurso, que ainda está presente, a ideia é fazer um grande show de apresentações, no qual há ainda a ativa participação do público, mas num formato que se assemelha muito mais a um programa de televisão que a um evento de fãs. Isso não é à toa: Carvalho pensa em produzir um programa de TV com variedades ligadas ao universo pop japonês, mais ou menos como é a TV Aichi, só que no Brasil. E, afinal, talvez essa seja também uma mentalidade que faz sentido tendo em vista os padrões nacionais: uma espécie de adaptação cultural e antropofágica de modelos e referências de outro país. E que sejam plurais essas versões, cada vez mais.