potentia

reflete-se sobre ação e não-ação. governo e trabalho. antiguidade e modernidade. discurso. política. rebelião. o escopo visível se limita ao livro de hannah arendt, que não é nada limitador. expande tanto que foi feita uma varredura pelos capítulos, a fim de amadurecer a questão. era inevitável. influências externas invisíveis são da ordem da ação política local (leia-se: rio de janeiro), coletivos de arte-ativismo, atritos internos e externos, porto maravilha, expropriações contemporâneas. por isso, dispersão. os discursos se complementam.

Não devemos procurar esconder a ironia implícita na demora para a confecção de um artigo sobre a ação (o tema se auto-impõe, neste processo). Posto que análise aqui proposta parte de um capítulo do crucial livro de Hannah Arendt intitulado A Condição Humana, ocupemo-nos de definir o que Arendt entende por ação, primeiro:

Agir, em seu sentido mais geral, significa tomar iniciativa, iniciar (como indica a palavra grega archein, “começar”, “conduzir” e, finalmente, “governar”), imprimir movimento a alguma coisa (que é o significado original do termo latino agere). (ARENDT, 2011, p. 221)

E prossegue, ao expor a origem de cada palavra em pormenores, mais adiante:

Como exemplo do que está em jogo nesse particular, podemos lembrar que o grego e o latim, ao contrário das línguas modernas, possuem duas palavras totalmente diferentes, mas correlatas, para designar o verbo “agir”. Aos dois verbos gregos archein (“começar”, “liderar” e, finalmente, “governar”) e prattein (“atravessar”, “realizar” e “acabar”) correspondem aos dois verbos latinos agere (“pôr em movimento”, “liderar”) e gerere (cujo significado original é “conduzir”). Aqui, é como se toda ação estivesse dividida em duas partes: o começo, feito por uma só pessoa, e a realização, à qual muitos se associam para “conduzir”, “acabar”, levar a cabo o empreendimento. Não só as palavras se correlacionam de modo análogo, como a história do seu emprego é também muito semelhante. Em ambos os casos, a palavra que originalmente designava apenas a segunda parte da ação, ou seja, sua realização – prattein e gerere –, passou a ser o termo aceito para designar a ação em geral, enquanto a palavra que designava o começo da ação adquiriu um significado especial, pelo menos na linguagem política. Archein passou a significar, principalmente, “governar” e “liderar”, quando empregada de maneira específica, e agere passou a significar “liderar”, mais do que “pôr em movimento”. (ibid., p. 236-7)

Para Arendt, a ação corresponde à condição humana por excelência, “a única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria” (ibid., p. 8). É somente por meio da ação que a vida humana pode se expressar em toda a sua pluralidade, isto é, através da atividade política, que se dá entre cidadãos iguais perante a lei.

O grande antagonismo que se coloca, diante desse fato, é que onde há autoridade, não pode haver ação. Nos regimes políticos implementados desde a antiguidade, desde a monarquia até a democracia liberal, não raro se verifica esse esvaziamento da política: o poder de agir, nesse caso, é outorgado ao governante ou ao pequeno grupo que governa. Contudo, o que podemos verificar, é a consolidação de toda uma tradição da filosofia política, remontando desde Platão e Aristóteles até Rawls, que se debruça sobre a legitimidade do poder, ou seja, quem merece governar. Desse modo, invariavelmente, a capacidade de cada cidadão de agir é excluída da política, assim como são esvaziadas as iniciativas de discussão sobre as decisões tomadas.

A fim de esclarecer o que é esse agir, lidaremos com o conceito de pólis. Ao contrário do que muitos acreditam, a pólis não é a cidade grega em si, em cuja ágora se configura o espaço de discussão e ação política. A pólis são os cidadãos, não importando o espaço real onde eles estejam. Como diz Arendt, “a pólis não era atenas, e sim os atenienses” (ibid. p. 243).

A rigor, a pólis não é cidade-Estado em sua localização física; é a organização das pessoas tal como ela resulta do agir e falar em conjunto, e o seu verdadeiro espaço situa-se entre as pessoas que vivem juntas com tal propósito, não importa onde estejam. “Onde quer que vás, serás uma pólis”. (p. 248)

Está claro que há diferenças bastante notáveis entre cada regime político. A democracia, “governo de muitos”, acaba por se tornar governo de ninguém – e, mesmo que haja sistema de votos, diferentes instâncias do poder político divididas burocraticamente, ou um parlamento, no caso de alguns países nórdicos, a faculdade de tomar decisões e de agir compete, em última instância, ao(s) governante(s). No caso da tirania, que a autora disseca em outras publicações mais a fundo, os indivíduos encontram-se tão isolados entre si quanto o governante de todos os outros. Neste caso, não há de fato qualquer espaço para a ação.

Esse esvaziamento do espaço da ação através da fuga da ação para o governo ocorre por uma operação que substitui a ação pela fabricação. Para melhor compreender o assunto, recuaremos a uma questão bem estrutural: para que, afinal, existe o governo? Por que a crença dominante ainda defende que precisamos dele? Ora, se considerarmos toda a imprevisibilidade das ações dos indivíduos, e portanto a iminência de perigo que elas podem representar – por inconsequência, ou simplesmente reflexos da condição plural que compartilhamos, da diferença – criam-se leis, que estabelecem postulados éticos do que é ou não aceito na esfera do comum, e um governo, que administra essas leis e promete garantir segurança aos membros de uma comunidade.

O advento do contrato social – não esqueçamos as contribuições de John Locke e seus próximos no que se refere ao estabelecimento da ordem tal como ela se apresenta nos dias de hoje – parte justamente daí, da necessidade de se gerar ordem, como alternativa a estarmos sujeitos à fragilidade dos assuntos humanos. Pois “a solidez e a quietude da ordem” (ibid., p. 277) são ideais almejados desde os tempos de Platão. Na prática, consistem em nada mais que “uma série de tentativas de encontrar fundamentos teóricos e meios práticos de uma completa fuga da política” (ibid.).

E nem devemos superestimar a existência das leis per se, pois, como destaca Arendt,

o legislador era como o construtor dos muros da cidade, alguém cuja obra devia ser executada e terminada antes que a atividade política pudesse começar. Consequentemente, era tratado como qualquer outro artesão ou arquiteto, e podia ser trazido de fora e contratado sem que precisasse ser cidadão (…). Para os gregos, as leis, como os muros ao redor da cidade, não eram um resultado da ação, mas um produto da fabricação. (p. 243)

Ou seja, o legislador, na grécia antiga, era meramente um profissional contratado para prestar um serviço. Como bom homo faber, ele produz uma obra, que possui utilidade técnica para um povo, que irá operacionalizá-la (ou menor, submeter-se a ela – pois quem é responsável por coordenar é o governo). Essa é uma boa imagem para ilustrar a questão que se coloca de modo mais amplo: o que chamamos de “fuga da ação para o governo” ou “a substituição da ação pela fabricação” é precisamente essa operacionalização da função, no caso “legislar”, que é esvaziada de sentido por parte daquele que a executa. Essa transformação da ação em uma modalidade de fabricação implica que pensemos de acordo com as categorias de meios e fins, posto que estas se atêm à perspectiva da instrumentalidade.

Platão, no diálogo O Político, esclarece do que se trata: revisitando os termos gregos archein e prattein, ambos ligados ao conceito de ação, Platão instaura um abismo entre ambos. Lembremos que o termo archein corresponde a “começar”, enquanto que prattein, a “realizar”, e eram vistos, até então, como intimamente conectados. Na prática, isso significa que aquele que “começa”, ou que tem a ideia, não mais é responsável por sua execução. De modo a “garantir que o iniciador permanecesse como senhor absoluto daquilo que começou” (ibid., p. 277), sem que outros intervissem ativamente em sua execução, a solução encontrada foi a utilização de outros na execução de ordens, esvaziando seu papel de agentes. Àquele que iniciou a ação, ou que teve a ideia, caberia portanto governar esses outros, sem precisar em absoluto agir.

O homo faber é, assim, aquele que trabalha com as mãos, hábil, “o fazedor de instrumentos e produtor de coisas” – o homem por excelência da era moderna. A diferença primordial entre “o trabalho de nosso corpo” e “a obra de nossas mãos” consiste no fato de que as atividades nas quais se faz uso do corpo para a execução de tarefas básicas, diretamente ligadas à manutenção da vida humana (atividades agrícolas, domésticas etc.), são consideradas menores. A figura do animal laborans, o trabalhador, remonta aos escravos da antiguidade (embora não se possa assumir que a escravidão esteja, hoje, extinta, infelizmente), cuja função primeira era aliviar seus senhores de cuidar da própria subsistência, para assim poderem se dedicar à vida política (cidadãos eram homens com propriedades e que não trabalhavam).

Uma definição possível para compreender essas diferenciações se encontra em Marx:

Ao contrário da produtividade da obra, que acrescenta novos objetos ao artifício humano, a produtividade da força de trabalho só incidentalmente produz objetos e preocupa-se fundamentalmente com os meios de sua própria reprodução; além disso, como a sua força não se extingue quando sua reprodução já está assegurada, ela pode ser utilizada para a reprodução de mais de um processo vital, mas nunca “produz” outra coisa senão “vida”. (ibid., p. 109)

Mesmo assim, do ponto de vista puramente social, profundamente contemplado por Marx, todo trabalho é “produtivo”, mesmo as atividades que não deixam vestigios, o que automaticamente invalida a distinção anterior. Fortalecendo a confusão, Arendt destaca:

À primeira vista, é surpreendente que a era moderna – tendo invertido todas as tradições, tanto a posição tradicional da ação e da contemplação como a tradicional hierarquia dentro da vita activa, com sua glorificação do trabalho como fonte de todos os valores e sua elevação do animal laborans à posição tradicionalmente ocupada pelo animal rationale – não tenha engendrado uma única teoria que distinguisse claramente entre o animal laborans e o homo faber, entre o “trabalho do nosso corpo e a obra de nossas mãos”. Ao invés disso, encontramos primeiro a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo, e, um pouco mais tarde, a diferenciação entre obra qualificada e não qualificada, e, finalmente, sobrepondo-se a ambas, por ser aparentemente de significação mais fundamental, a divisão de todas as atividades em trabalho manual e intelectual. (ibid., p. 105)

Seja como for, pela própria experiência moderna e o que a sucede, torna-se evidente que a exploração do “trabalho manual” (ou do corpo, misturando as antigas distinções) por parte de governos, governantes, donos, senhores, diretores, coordenadores, chefes – em suma, aqueles que detêm as faculdades intelectuais do processo produtivo, a ideia e o controle sobre os meios de produção, ou do dinheiro – configura o mote principal da sociedade em que vivemos. Marx acreditava que chegaríamos a certo ponto em que o excedente de produção gerado por uma crescente força de trabalho em constante produção faria alcançar um ponto em que o homem se libertaria da necessidade do trabalho, aos poucos. Porém, o que tem se verificado, em um sistema que se reinventa e se revigora a cada vez que os mercados quebram, é um crescente acúmulo de riquezas por parte de uns, graças à força de trabalho de outros que, reduzidos às necessidades básicas da vida, são forçados à condição de trabalhadores de modo a prover sua subsistência. Ainda que a história nos mostre os casos mais emblemáticos de rebeliões e movimentos de trabalhadores, isso implica também, por conseguinte, na maioria das vezes, em um esvaziamento da possiblidade de agir dessas pessoas – que constituem a maioria da sociedade.

Como esclarece Arendt no último capítulo do livro:

A expropriação, o despojamento de certos grupos de seu lugar no mundo e sua nua exposição às exigências da vida, criou tanto o original acúmulo de riqueza como a possibilidade de transformar essa riqueza em capital mediante o trabalho. Tudo isso junto constituiu as condições para o surgimento de uma economia capitalista. Desde o começo, séculos antes da revolução industrial, era evidente que esse desdobramento, iniciado pela expropriação e nutrido por ela, resultaria em um enorme aumento da produtividade humana. A nova classe trabalhadora, que literalmente vivia da mão à boca, estava não só diretamente sob a urgência constrangedora das necessidades da vida, mas, ao mesmo tempo, alienada de qualquer cuidado ou preocupação que não decorresse imediatamente do próprio processo vital. O que foi liberado nos estágios iniciais da primeira classe trabalhadora livre da história foi a energia [force] inerente à “força de trabalho” [labor power], isto é, à mera abundância natural do processo biológico que, como todas as forças naturais – da procriação tanto quanto da atividade do trabalho -, garante un generoso excedente muito além do necessário à reprodução de jovens para contrabalançar os velhos. O que distingue esses desdobramentos do início da era moderna de ocorrências similares do passado é que a expropriação e o acúmulo de riqueza não resultaram simplesmente em novas propriedades nem levaram a uma nova redistribuição de riqueza, mas realimentaram o processo para gerar novas expropriações, maior produtividade e mais apropriação.” (ibid., p. 317-8)

Em decorrência desse sistema nefasto, que é sobretudo dependente da energia do trabalho, os movimentos dos trabalhadores, inicialmente, carregavam um pathos que “tem sua origem em sua luta contra a sociedade como um todo” (ibid., p. 272). Isso é muito potente. Lembremos que um dos termos que deu origem ao que chamamos de “palavra”, atualmente, tem origem no latim, potentia (e dynamis, em grego arcaico). Pois bem. Hannah Arendt nos chama a atenção para o fato supreendente de não ter havido nenhuma rebelião séria de escravos tanto na era antiga quanto na moderna (guardando a diferença de que, na era moderna, os escravos reinvidicavam liberdade e justiça, enquanto que na antiguidade um valor como a liberdade não era entendido como direito universal humano). A partir do momento em que os homens começam a se entender como indivíduos, ao mesmo tempo únicos em sua existência e parte de um coletivo, conseguem diferenciar-se, e, imediatamente, passam a ser dotados de ação e poder de fala. Potentia. O termo nos remete imediatamente à ideia de poder, potência. Logo, ação. Discurso.

A ação só se dá em conjunto, quando os indivíduos se encontram em grupo. A antiga pólis, móvel, e sua função discursiva, emerge, ali, em remetimento. Alguém só se constitui como alguém a partir do olhar do outro, que funciona como espelho. Assim se inicia um diálogo. “Do começo ao fim, o principal objetivo da pólis era fazer do extraordinário uma ocorrência ordinária da vida cotidiana.” (p. 246). O agente se revela no ato, que nada mais é que uma imagem. Independente, apropriável, polifônica, intercambiável, que cria vida própria quando vinda a público.

intrépida trupe: entre voos e desafios, aos 25

entrevista com beth martins, da intrépida trupe, publicada no overmundo, pouco depois do festival tangolomango. rio de janeiro, 2011

Em novembro desse ano aconteceu o Tangolomango – festival da diversidade cultural, nas cidades Rio de Janeiro e Buenos Aires. Comemorando 10 anos de atividades, o Tangolomango resolveu inovar em 2011, dando início a um ciclo de eventos que ocorrerão simultaneamente em uma capital brasileira e outra da América Latina, alternando as cidades onde acontecem a cada ano.

Tangolomango é muito mais do que o espetáculo de um só dia, que acontece (ou aconteceu), no caso do Rio de Janeiro, no Circo Voador. É um espaço de intensas trocas entre grupos de dança, circo e música, que se propõem a trabalhar juntos durante as datas que antecedem imediatamente o festival, para criar uma grande e diversificada apresentação.

Nesse contexto, o Overmundo já soma vários anos de parceria, seja na cobertura do evento, seja na feitura do catálogo e entrevistas, como nesse ano, agregando redes pelo Facebook e fazendo as entrevistas lá mesmo.

Durante a correria louca que foi produzir esse material, possibilitando trocas muito prazerosas e conhecendo grupos brilhantes que iriam participar, a única entrevista “analógica” que acabei fazendo foi com a Beth Martins, da Intrépida Trupe. A proximidade ajudou: o escritório do Overmundo fica a poucos passos da Fundição Progresso, espaço no qual a Intrépida ensaia já fazem nem sei quantos anos.

Eu era pequena quando comecei a acompanhar a Trupe, nos idos tempos em que morava em Niterói, e, mais tarde, ainda na escola primária, fui encontrar no Rio de Janeiro uma aula de acrobacia entre as atividades extracurriculares da escola! Tenho saudades do trapézio até hoje, me recordo de alguns movimentos, como o salto leão (acrobacia de solo), e na época eu era doida pra misturar isso com ginástica olímpica. Mas não sabia fazer parada de mão.

Por isso tudo, fiquei muito feliz de poder fazer essa entrevista pessoalmente. Nem deu tempo de falar para a Beth da relação afetiva que eu guardava com o grupo, em memórias, e sempre acompanhando os espetáculos que eles vêm fazendo, incansáveis. Sonhos de Einstein, relativamente recente, trata do sonho antigo que tem o ser humano de voar, e por isso pode parecer comum, mas é muito belo. Hoje, acho que me desperta mais interesse o uso de cordas, escadas e outros apetrechos que estão em algum lugar entre o alpinismo, o circo e, vagamente, aqueles brinquedos de subir de criança. E em muitas práticas. A infância está sempre ali em algum lugar – e eu digo aquela que ninguém devia nunca abandonar. De querer subir em coisas e dar piruetas, dançar.

Como foi feita em voz, registrada com gravador (digital), transcrevi a entrevista e editei procurando manter ao máximo a fidelidade aos modos de fala. Não é a primeira vez que faço um trabalho de transcrição, mas nesse pude ter a liberdade de manter todas as reticências que compõem uma fala, quando o pensamento procura uma resposta e ela vem em diversas frentes, semifalas que aos poucos vão constituindo uma linha de raciocínio. Às vezes ela se perde, ou se lemos pensando no falar – e sou muito grata a Guimarães Rosa por registrar com tamanha minúcia os hábitos e criações de fala de grupos específicos, pessoas – acabamos por entender o todo, e essas buscas feitas pelo pensamento. É construção.

Peço que não relevem o delay com que chega esse material na íntegra ao Overmundo. Um resumo bem resumido das ideias está no site do Tangolomango, junto aos textos que produzimos para os outros grupos. As entrevistas eram preferencialmente feitas pelo Facebook como uma forma experimental de promover a interação entre os entrevistados, e quem mais quisesse aparecer e participar.

Exclusiva, portanto, e não menos reflexiva, da entrevista na Fundição resultaram essas poucas palavras que troquei com a Beth Martins nos minutos antes do ensaio da equipe jovem da Intrépida. A maior parte das apresentações que ela cita já são passado, ainda que recente, como o próprio Tangolomango. Sobre como foi o festival, aqui no Rio de Janeiro e em Buenos Aires, vocês podem ler no site do Tangolomango – ou buscando diretamente pela tag ‘2011’. As outras palavras, sobre a trajetória da Intrépida Trupe, que comemora 25 anos em 2011, suas diversas atividades, modos de fazer, práticas, países latino-americanos, circo novo e circo tradicional, estão abaixo. Leiam com carinho e empolgação!

ENTREVISTA COM BETH MARTINS DA INTRÉPIDA TRUPE || TANGOLOMANGO 2011

concedida a Inês Nin, Overmundo, em 31/10/2011

Quais são as suas expectativas em relação ao Tangolomango? O que você já tinha ouvido falar antes e o que espera dessa troca?

Bom, eu ouvia sempre esse nome Tangolomango, que era um encontro de grupos, mas nunca tinha participado. E aí, com o contato que o Tangolomango fez com a gente esse ano, uma das coisas que eu me animei é que a pessoa que vai dirigir [Ernesto Piccolo, diretor artístico] é uma pessoa com quem eu já trabalhei muitas vezes e de quem gosto muito. Então, foi um pouco em função desse lado afetivo… Porque é uma proposta de 3 dias de imersão, e para os jovens com quem estou trabalhando acho super importante esse contato.

Na Intrépida, há 15 anos a gente faz um trabalho de formação. E um dos fatos que fez com que a Intrépida Trupe sobrevivesse por 25 anos é que a gente sempre foi muito aberto. Eu não digo que tem uma Intrépida – são muitas intrépidas que foram Intrépida nesses 25 anos. E há 15 anos a gente forma gente. Tem muitos no nosso elenco que chegaram com uma base de dança, de teatro, e adquiriram coisas de circo com a gente. Ou que toda a formação de dança, teatro e circo foi feita aqui no nosso espaço. Então, tudo o que é possibilidade de intercâmbio, de troca, sempre nos atraiu muito. Trabalhamos com essas três linguagens. E, pelo que eu entendi, o Tangolomango também abraça as linguagens cênicas de uma forma mais aberta. Assim, a minha expectativa é que seja um ótimo encontro, uma ótima troca, e que a gente possa aprender coisas, ensinar coisas, e descobrir coisas novas nesse encontro. Acho super legal.

O fato de existir agora um foco nesse intercâmbio latino-americano considero muito interessante. Porque nós temos uma riqueza cultural muito grande na América do Sul, na América Central, e a gente desconhece. Muitas vezes as nossas referências são europeias e norte-americanas. Portanto, eu dou um voto de louvor e admiro uma iniciativa que priorize essa troca entre países tão próximos e tão ricos culturalmente.

O que você poderia falar desses 25 anos da Intrépida? Existem atividades comemorativas? Você já disse que foram muitas Intrépidas ao longo desse tempo…

É, foram muitas Intrépidas e eu tenho o privilégio de estar desde a fundação. Desse modo, eu sou de certa forma uma guardiã, uma dinossaura dentro dessa história.

Vinte e cinco anos na vida de um grupo são muitos anos na vida de uma pessoa. É muito intenso, são muitas trocas. A dinâmica de grupo é muito rica, então são muitos anos. O Eugênio Barba fala isso, que 20 anos na vida de um grupo são 60 na vida de uma pessoa. Então, a gente já está com 70, quase 80 anos. E eu me sinto privilegiada porque tive a oportunidade de criar essa história junto com vários artistas, que continuam aí no mercado. Artistas maravilhosos, como o Gringo Cardia, Dani Lima, Alberto Magalhães dos Brothers, a Debinha Colker (Deborah Colker), que trabalhou com a gente coreografando, no começo…

E eu sei muito da história, além de vir trabalhando também nessa área de formação fortemente junto com a Vanda [Jacques]… Nós duas fomos as únicas a permanecer durante todos esses anos. É uma alegria podermos chegar nessa idade e comemorar… E estar com um elenco jovem.

Quando começamos a trabalhar com esse grupo, em 2009, eles tinham 15, 16 anos… entre 16 e 20 e poucos anos, hoje eles estão com 18 a 25. Começamos montando repertório dos anos 80 que havíamos criado, coisas lindas e que esse público de agora conhece pouco. E acabamos fazendo um espetáculo com eles que fez muito sucesso, chamado Preciosa Idade. Porque é uma idade preciosa esse momento de virada da adolescência para a vida adulta. Agora estamos muito felizes, por estarmos lidando com um processo de criação em um trabalho totalmente novo.

Em fins de novembro e começo de dezembro, faremos no Arpoador três finais de semana na Praça Garota de Ipanema, com remontagem de repertório. São outros números que eles ainda não experimentaram no corpo, outros que já experimentaram. Além disso, continuamos trabalhando nos ensaios o novo trabalho, também em comemoração dos 25 anos, que deve estrear ano que vem [2012], em abril ou maio. Talvez aqui no nosso palco, talvez no Teatro Carlos Gomes. São alegrias.

Temos também outro elenco, formado por pessoas mais velhas, que está na Europa, no festival Europalia, representando o Brasil na área de circo. Vamos fazer dois espetáculos em Bruxelas. Nos deixa muito alegres ter várias frentes em movimento como agora. Uma de formação, um elenco jovem, outro mais maduro. E, de forma menos intensa mas sempre presente, atuamos e continuamos a atuar em projetos sociais que incluem o circo. Fomos pioneiros nessa linguagem.

Começamos com a Intrépida tem uns… minha filha tem 18 anos, eu estava grávida dela… 19, 20 anos atrás a gente começou. O Betinho do Viva Rio chamou a gente para abordar crianças na rua, e isso gerou vários projetos que trabalham com jovens em situação de risco com o circo. Temos um vínculo com vários desses projetos, no nosso elenco tem alguns meninos que foram desses projetos, então estão trabalhando com a gente, também… Na parte técnica também… É uma alegria comemorar 25 anos e ver tantos frutos, o trabalho ampliado em várias frentes e ter uma perspectiva de futuro. No mínimo, mais 25 anos, espero. A galera jovem aí seguindo, continuando a escola, a formação.. é isso.

Você dirige o grupo desde o começo? Ou teve uma trajetória dentro dele?

Na Intrépida a gente sempre foi meio múltiplo. Então, quando começamos… E essa coisa também de ser um grupo que… Hoje você vê muitas companhias que fazem uma seleção do elenco, baseada nas técnicas de dança, nas técnicas de circo. No nosso caso, sempre tivemos várias áreas trabalhando juntas. Tinha um gordinho que não pulava nada, não se pendurava, mas era muito engraçado… era um palhaço, entendeu? E tinha um outro que desenhava muito bem e fazia mil coisas lindas, então era o cara que fazia os cartazes e figurinos. É um grupo que sempre respeitou a diferença como um ponto de riqueza. É por isso, acredito, que a linguagem do grupo sempre foi muito impactante, tanto no sentido visual quanto do humor, da irreverência. No lírico… no poético… Sempre tivemos isso da singularidade de cada um, da diversidade do elenco. Sempre fizemos de tudo um pouco.

No começo, a gente montava, costurava os trapézios, se dirigia, fazia trilha, bolava luz… Foi uma coisa que fomos fazendo, e isso é algo típico dos anos 80. A minha história é um pouco assim: eu dançava com a Graciela Figueroa, Coringa, que foi um grupo pioneiro de dança contemporânea aqui. Ela misturava acrobacia, tai chi, capoeira, dança clássica, neoclássica, moderna… E eu desde o começo tinha um olhar sobre as organizações espacial e coreográfica da coisa. Fui me especializando nos aéreos, uma vez que eu já dançava no chão. Me interessavam o trapézio, cordas… coreografia. E aos poucos fui assumindo a direção de um trabalho ou outro. Hoje, estou mais voltada para a formação, a direção e as coreografias do que estou em cena. Mas ainda faço as minhas brincadeiras pendurada de vez em quando. Ainda me sinto com esse gás de às vezes aparecer e fazer alguma coisa em cena.

E o que você conhece da América Latina? Provavelmente a Intrépida já deve ter se apresentado em outros países das América do Sul, por exemplo.

Olha, infelizmente nos apresentamos muito pouco. Considerando a América Central, a nossa primeira viagem foi para o México, exatamente no ano em que a gente nasceu. Era uma missão cultural do Circo Voador. Na época trabalhávamos muito no Circo, com efeitos. Tínhamos ido montar o Circo Voador no Maranhão, em São Luís. Nessa ocasião, o prefeito estava lá e falou: “Esse é o ano da Copa do Mundo, vamos montar a lona lá?”. Circo Voador tem que ter circo. A gente junta o pessoal da Escola de Circo, o pessoal de dança e vamos nessa. Nossa origem é um pouco essa viagem para o México. Tem releases nossos que dizem: “a Intrépida Trupe nasceu em 86 numa missão cultural ao México”. De alguma maneira, o grupo é meio mexicano, meio brasileiro.

Fomos à Colômbia, num festival em Manizales, e fizemos uma apresentação uma vez num evento na Argentina. Eu adoraria que a gente circulasse mais, que pudéssemos fazer uma troca, um intercâmbio mais rico. Tanto com o Uruguai, Argentina, Paraguai, Peru, Bolívia, Chile… Sei lá, Guatemala, são países belíssimos com essa cultura rica. E o mundo a gente já fez bastante. Portugal, França, Alemanha, EUA… são os lugares que a gente mais foi. Mais a França: nos apresentamos no festival de circo de Demain algumas vezes, participamos dos festivais que tem em Nanterre também… Na Alemanha, fomos em um festival convidados a fazer uma temporada num théâtre de variété, com gente do mundo inteiro, que é uma noite… Tipo um Canecão, em que as pessoas vão comer e beber e há várias atrações. E Portugal, que a gente já…

Agora fomos para a Bélgica participar do Europalia, festival no qual o país homenageado era o Brasil. Escolheram a Intrépida para representar essa linha do circo novo lá. Mas, hoje em dia, as viagens internacionais estão mais… No começo, no final dos anos 80 e começo dos anos 90, viajávamos com mais frequência. Agora, talvez devido à crise financeira mundial, com elenco grande, equipamento… Venho tentando fazer alguns trabalhos focados nas pessoas e na técnica, até para poder viabilizar essa troca, que geralmente é muito rica.

Quantas pessoas tem agora na Intrépida? Você falou que tem mais de um grupo.

O elenco que foi para a Bélgica é composto de umas 8 pessoas, e nesse elenco jovem somos 13. Fora a [equipe] técnica, claro. O outro [que foi para a Bélgica] tem umas 5, 6 pessoas na técnica, porque se trata de um espetáculo que necessita de subir e descer coisas. Senão fica difícil viabilizar. Mas, a gente dá um jeitinho, né? Gostamos de viajar e estamos abertos para os intercâmbios possíveis, dentro do que as pessoas podem oferecer, dentro das datas… Se estiver ao nosso alcance, sempre temos uma abertura para trocar.

Há também esse outro intercâmbio. Ano passado, por exemplo, eu viajei por várias capitais do Brasil dando aula, a Vandinha também, de técnicas de segurança. A Vandinha [Jacques] é diretora técnica e pedagógica, mas tem o Claudio Baltar, que também é diretor técnico e dirigiu os Sonhos de Einstein, e eu, que vou mais para o lado de direção artística, de coreografias, e imagens, cena. Mas eu trabalho junto com o elenco, né? de imaginar coisas e realizar na cena.

Não faz muito tempo, fui convidada pela Funarte para dar aula para pessoas de circo tradicional. Pequenos e médios circos. Porque eles têm uma coisa de muita carência, no sentido de luz, figurino. Com o tempo, vão ficando na periferia da periferia, muito pobres. Às vezes, nos pequenos e médios circos, os filhos não querem mais seguir a carreira de circo porque ela é muito árdua. Então, a Funarte fez um programa de oficinas para eles, de maquiagem, luz, expressão corporal, consciência corporal.

O corpo do circense tradicional sofre muito. Muitas vezes eles não têm noção de determinadas formas de se aquecer que são mais doces para o corpo, de compensar esforços repetitivos… E eu acho que o circo novo tem um.. Eu tenho um amor muito grande pelo circo tradicional, porque o que me fez me apaixonar pelo circo quando eu era pequena foi… Eu morava no interior de Mato Grosso, e era importante o momento em que o circo chegava na pequena cidade. No que eu puder ajudar o circo tradicional e homenageá-lo, o que tiver ao meu alcance, eu farei. Para mim, o circo tocou meu coração de uma forma que mudou a minha vida. Eu estou há 25 anos nessa história e, assim… Eu quis voar, acabei voando e ajudando um monte de gente a voar.

É, o circo com intercâmbio de linguagens, meio espetáculo teatral…

Que é mais viável, né? Acho que ele pode estar mais em todo lugar. Não depende daquela mega estrutura, lona… Isso tudo é um dia-a-dia muito árduo.

Mas também não tem uma estrutura tão itinerante como tem essa ideia da lona…

É, a gente podendo itinerar é sempre bom, porque está na essência do circo esse lado nômade. Você poder trocar com as culturas que vai conhecendo no caminho. Por isso eu acho que é muito bacana o Tangolomango. Sinto que existe essa filosofia da troca, que de alguma forma é o nomadismo. Você está num lugar mas as coisas estão sendo trocadas e passando, como quando você viaja.