potentia

reflete-se sobre ação e não-ação. governo e trabalho. antiguidade e modernidade. discurso. política. rebelião. o escopo visível se limita ao livro de hannah arendt, que não é nada limitador. expande tanto que foi feita uma varredura pelos capítulos, a fim de amadurecer a questão. era inevitável. influências externas invisíveis são da ordem da ação política local (leia-se: rio de janeiro), coletivos de arte-ativismo, atritos internos e externos, porto maravilha, expropriações contemporâneas. por isso, dispersão. os discursos se complementam.

Não devemos procurar esconder a ironia implícita na demora para a confecção de um artigo sobre a ação (o tema se auto-impõe, neste processo). Posto que análise aqui proposta parte de um capítulo do crucial livro de Hannah Arendt intitulado A Condição Humana, ocupemo-nos de definir o que Arendt entende por ação, primeiro:

Agir, em seu sentido mais geral, significa tomar iniciativa, iniciar (como indica a palavra grega archein, “começar”, “conduzir” e, finalmente, “governar”), imprimir movimento a alguma coisa (que é o significado original do termo latino agere). (ARENDT, 2011, p. 221)

E prossegue, ao expor a origem de cada palavra em pormenores, mais adiante:

Como exemplo do que está em jogo nesse particular, podemos lembrar que o grego e o latim, ao contrário das línguas modernas, possuem duas palavras totalmente diferentes, mas correlatas, para designar o verbo “agir”. Aos dois verbos gregos archein (“começar”, “liderar” e, finalmente, “governar”) e prattein (“atravessar”, “realizar” e “acabar”) correspondem aos dois verbos latinos agere (“pôr em movimento”, “liderar”) e gerere (cujo significado original é “conduzir”). Aqui, é como se toda ação estivesse dividida em duas partes: o começo, feito por uma só pessoa, e a realização, à qual muitos se associam para “conduzir”, “acabar”, levar a cabo o empreendimento. Não só as palavras se correlacionam de modo análogo, como a história do seu emprego é também muito semelhante. Em ambos os casos, a palavra que originalmente designava apenas a segunda parte da ação, ou seja, sua realização – prattein e gerere –, passou a ser o termo aceito para designar a ação em geral, enquanto a palavra que designava o começo da ação adquiriu um significado especial, pelo menos na linguagem política. Archein passou a significar, principalmente, “governar” e “liderar”, quando empregada de maneira específica, e agere passou a significar “liderar”, mais do que “pôr em movimento”. (ibid., p. 236-7)

Para Arendt, a ação corresponde à condição humana por excelência, “a única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria” (ibid., p. 8). É somente por meio da ação que a vida humana pode se expressar em toda a sua pluralidade, isto é, através da atividade política, que se dá entre cidadãos iguais perante a lei.

O grande antagonismo que se coloca, diante desse fato, é que onde há autoridade, não pode haver ação. Nos regimes políticos implementados desde a antiguidade, desde a monarquia até a democracia liberal, não raro se verifica esse esvaziamento da política: o poder de agir, nesse caso, é outorgado ao governante ou ao pequeno grupo que governa. Contudo, o que podemos verificar, é a consolidação de toda uma tradição da filosofia política, remontando desde Platão e Aristóteles até Rawls, que se debruça sobre a legitimidade do poder, ou seja, quem merece governar. Desse modo, invariavelmente, a capacidade de cada cidadão de agir é excluída da política, assim como são esvaziadas as iniciativas de discussão sobre as decisões tomadas.

A fim de esclarecer o que é esse agir, lidaremos com o conceito de pólis. Ao contrário do que muitos acreditam, a pólis não é a cidade grega em si, em cuja ágora se configura o espaço de discussão e ação política. A pólis são os cidadãos, não importando o espaço real onde eles estejam. Como diz Arendt, “a pólis não era atenas, e sim os atenienses” (ibid. p. 243).

A rigor, a pólis não é cidade-Estado em sua localização física; é a organização das pessoas tal como ela resulta do agir e falar em conjunto, e o seu verdadeiro espaço situa-se entre as pessoas que vivem juntas com tal propósito, não importa onde estejam. “Onde quer que vás, serás uma pólis”. (p. 248)

Está claro que há diferenças bastante notáveis entre cada regime político. A democracia, “governo de muitos”, acaba por se tornar governo de ninguém – e, mesmo que haja sistema de votos, diferentes instâncias do poder político divididas burocraticamente, ou um parlamento, no caso de alguns países nórdicos, a faculdade de tomar decisões e de agir compete, em última instância, ao(s) governante(s). No caso da tirania, que a autora disseca em outras publicações mais a fundo, os indivíduos encontram-se tão isolados entre si quanto o governante de todos os outros. Neste caso, não há de fato qualquer espaço para a ação.

Esse esvaziamento do espaço da ação através da fuga da ação para o governo ocorre por uma operação que substitui a ação pela fabricação. Para melhor compreender o assunto, recuaremos a uma questão bem estrutural: para que, afinal, existe o governo? Por que a crença dominante ainda defende que precisamos dele? Ora, se considerarmos toda a imprevisibilidade das ações dos indivíduos, e portanto a iminência de perigo que elas podem representar – por inconsequência, ou simplesmente reflexos da condição plural que compartilhamos, da diferença – criam-se leis, que estabelecem postulados éticos do que é ou não aceito na esfera do comum, e um governo, que administra essas leis e promete garantir segurança aos membros de uma comunidade.

O advento do contrato social – não esqueçamos as contribuições de John Locke e seus próximos no que se refere ao estabelecimento da ordem tal como ela se apresenta nos dias de hoje – parte justamente daí, da necessidade de se gerar ordem, como alternativa a estarmos sujeitos à fragilidade dos assuntos humanos. Pois “a solidez e a quietude da ordem” (ibid., p. 277) são ideais almejados desde os tempos de Platão. Na prática, consistem em nada mais que “uma série de tentativas de encontrar fundamentos teóricos e meios práticos de uma completa fuga da política” (ibid.).

E nem devemos superestimar a existência das leis per se, pois, como destaca Arendt,

o legislador era como o construtor dos muros da cidade, alguém cuja obra devia ser executada e terminada antes que a atividade política pudesse começar. Consequentemente, era tratado como qualquer outro artesão ou arquiteto, e podia ser trazido de fora e contratado sem que precisasse ser cidadão (…). Para os gregos, as leis, como os muros ao redor da cidade, não eram um resultado da ação, mas um produto da fabricação. (p. 243)

Ou seja, o legislador, na grécia antiga, era meramente um profissional contratado para prestar um serviço. Como bom homo faber, ele produz uma obra, que possui utilidade técnica para um povo, que irá operacionalizá-la (ou menor, submeter-se a ela – pois quem é responsável por coordenar é o governo). Essa é uma boa imagem para ilustrar a questão que se coloca de modo mais amplo: o que chamamos de “fuga da ação para o governo” ou “a substituição da ação pela fabricação” é precisamente essa operacionalização da função, no caso “legislar”, que é esvaziada de sentido por parte daquele que a executa. Essa transformação da ação em uma modalidade de fabricação implica que pensemos de acordo com as categorias de meios e fins, posto que estas se atêm à perspectiva da instrumentalidade.

Platão, no diálogo O Político, esclarece do que se trata: revisitando os termos gregos archein e prattein, ambos ligados ao conceito de ação, Platão instaura um abismo entre ambos. Lembremos que o termo archein corresponde a “começar”, enquanto que prattein, a “realizar”, e eram vistos, até então, como intimamente conectados. Na prática, isso significa que aquele que “começa”, ou que tem a ideia, não mais é responsável por sua execução. De modo a “garantir que o iniciador permanecesse como senhor absoluto daquilo que começou” (ibid., p. 277), sem que outros intervissem ativamente em sua execução, a solução encontrada foi a utilização de outros na execução de ordens, esvaziando seu papel de agentes. Àquele que iniciou a ação, ou que teve a ideia, caberia portanto governar esses outros, sem precisar em absoluto agir.

O homo faber é, assim, aquele que trabalha com as mãos, hábil, “o fazedor de instrumentos e produtor de coisas” – o homem por excelência da era moderna. A diferença primordial entre “o trabalho de nosso corpo” e “a obra de nossas mãos” consiste no fato de que as atividades nas quais se faz uso do corpo para a execução de tarefas básicas, diretamente ligadas à manutenção da vida humana (atividades agrícolas, domésticas etc.), são consideradas menores. A figura do animal laborans, o trabalhador, remonta aos escravos da antiguidade (embora não se possa assumir que a escravidão esteja, hoje, extinta, infelizmente), cuja função primeira era aliviar seus senhores de cuidar da própria subsistência, para assim poderem se dedicar à vida política (cidadãos eram homens com propriedades e que não trabalhavam).

Uma definição possível para compreender essas diferenciações se encontra em Marx:

Ao contrário da produtividade da obra, que acrescenta novos objetos ao artifício humano, a produtividade da força de trabalho só incidentalmente produz objetos e preocupa-se fundamentalmente com os meios de sua própria reprodução; além disso, como a sua força não se extingue quando sua reprodução já está assegurada, ela pode ser utilizada para a reprodução de mais de um processo vital, mas nunca “produz” outra coisa senão “vida”. (ibid., p. 109)

Mesmo assim, do ponto de vista puramente social, profundamente contemplado por Marx, todo trabalho é “produtivo”, mesmo as atividades que não deixam vestigios, o que automaticamente invalida a distinção anterior. Fortalecendo a confusão, Arendt destaca:

À primeira vista, é surpreendente que a era moderna – tendo invertido todas as tradições, tanto a posição tradicional da ação e da contemplação como a tradicional hierarquia dentro da vita activa, com sua glorificação do trabalho como fonte de todos os valores e sua elevação do animal laborans à posição tradicionalmente ocupada pelo animal rationale – não tenha engendrado uma única teoria que distinguisse claramente entre o animal laborans e o homo faber, entre o “trabalho do nosso corpo e a obra de nossas mãos”. Ao invés disso, encontramos primeiro a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo, e, um pouco mais tarde, a diferenciação entre obra qualificada e não qualificada, e, finalmente, sobrepondo-se a ambas, por ser aparentemente de significação mais fundamental, a divisão de todas as atividades em trabalho manual e intelectual. (ibid., p. 105)

Seja como for, pela própria experiência moderna e o que a sucede, torna-se evidente que a exploração do “trabalho manual” (ou do corpo, misturando as antigas distinções) por parte de governos, governantes, donos, senhores, diretores, coordenadores, chefes – em suma, aqueles que detêm as faculdades intelectuais do processo produtivo, a ideia e o controle sobre os meios de produção, ou do dinheiro – configura o mote principal da sociedade em que vivemos. Marx acreditava que chegaríamos a certo ponto em que o excedente de produção gerado por uma crescente força de trabalho em constante produção faria alcançar um ponto em que o homem se libertaria da necessidade do trabalho, aos poucos. Porém, o que tem se verificado, em um sistema que se reinventa e se revigora a cada vez que os mercados quebram, é um crescente acúmulo de riquezas por parte de uns, graças à força de trabalho de outros que, reduzidos às necessidades básicas da vida, são forçados à condição de trabalhadores de modo a prover sua subsistência. Ainda que a história nos mostre os casos mais emblemáticos de rebeliões e movimentos de trabalhadores, isso implica também, por conseguinte, na maioria das vezes, em um esvaziamento da possiblidade de agir dessas pessoas – que constituem a maioria da sociedade.

Como esclarece Arendt no último capítulo do livro:

A expropriação, o despojamento de certos grupos de seu lugar no mundo e sua nua exposição às exigências da vida, criou tanto o original acúmulo de riqueza como a possibilidade de transformar essa riqueza em capital mediante o trabalho. Tudo isso junto constituiu as condições para o surgimento de uma economia capitalista. Desde o começo, séculos antes da revolução industrial, era evidente que esse desdobramento, iniciado pela expropriação e nutrido por ela, resultaria em um enorme aumento da produtividade humana. A nova classe trabalhadora, que literalmente vivia da mão à boca, estava não só diretamente sob a urgência constrangedora das necessidades da vida, mas, ao mesmo tempo, alienada de qualquer cuidado ou preocupação que não decorresse imediatamente do próprio processo vital. O que foi liberado nos estágios iniciais da primeira classe trabalhadora livre da história foi a energia [force] inerente à “força de trabalho” [labor power], isto é, à mera abundância natural do processo biológico que, como todas as forças naturais – da procriação tanto quanto da atividade do trabalho -, garante un generoso excedente muito além do necessário à reprodução de jovens para contrabalançar os velhos. O que distingue esses desdobramentos do início da era moderna de ocorrências similares do passado é que a expropriação e o acúmulo de riqueza não resultaram simplesmente em novas propriedades nem levaram a uma nova redistribuição de riqueza, mas realimentaram o processo para gerar novas expropriações, maior produtividade e mais apropriação.” (ibid., p. 317-8)

Em decorrência desse sistema nefasto, que é sobretudo dependente da energia do trabalho, os movimentos dos trabalhadores, inicialmente, carregavam um pathos que “tem sua origem em sua luta contra a sociedade como um todo” (ibid., p. 272). Isso é muito potente. Lembremos que um dos termos que deu origem ao que chamamos de “palavra”, atualmente, tem origem no latim, potentia (e dynamis, em grego arcaico). Pois bem. Hannah Arendt nos chama a atenção para o fato supreendente de não ter havido nenhuma rebelião séria de escravos tanto na era antiga quanto na moderna (guardando a diferença de que, na era moderna, os escravos reinvidicavam liberdade e justiça, enquanto que na antiguidade um valor como a liberdade não era entendido como direito universal humano). A partir do momento em que os homens começam a se entender como indivíduos, ao mesmo tempo únicos em sua existência e parte de um coletivo, conseguem diferenciar-se, e, imediatamente, passam a ser dotados de ação e poder de fala. Potentia. O termo nos remete imediatamente à ideia de poder, potência. Logo, ação. Discurso.

A ação só se dá em conjunto, quando os indivíduos se encontram em grupo. A antiga pólis, móvel, e sua função discursiva, emerge, ali, em remetimento. Alguém só se constitui como alguém a partir do olhar do outro, que funciona como espelho. Assim se inicia um diálogo. “Do começo ao fim, o principal objetivo da pólis era fazer do extraordinário uma ocorrência ordinária da vida cotidiana.” (p. 246). O agente se revela no ato, que nada mais é que uma imagem. Independente, apropriável, polifônica, intercambiável, que cria vida própria quando vinda a público.