lugar

1. se existe alto e baixo, direito e esquerdo, frente e verso, existe um lugar. 2. se onde havia uma coisa e existe agora uma outra, existe um lugar. 3. se há um corpo, há um lugar. 4. se cada corpo está situado em um lugar próprio, existe um lugar.

[sim, aristóteles. recorrer às bases, mesmo que as sobrescreva depois.]

artefato. povo construído. lugar errante.

de imensidão só lhe restam as botas, de tantas viagens por aí que gastas as lembranças fico, paro com o intuito de me recompor.

imaginar um terreno que não seja matéria de composição mas desastre, atraso, atalhos mesmos que furtivos só guardo em memória. as técnicas de sobrevivência variam tanto. o lido com os lugares, o tratamento, o embate cotidiano e as danças.

é de madeira o chão, telhado inclinado, construído com as próprias mãos. prever o mínimo de interferência no ambiente, de verdade. floresta quando penetra a casa e transforma ela mesma em um labiríntico desafio que traz conforto, diverte. põe para secar ao sol o que sobrou de antemão, enche de água o que se quer cultivar. observa.

para os estoicos, o problema do lugar está ligado ao problema do movimento. um lugar é concebido pela transição dos corpos que por ele passam. tal como em aristóteles.

( )

delimitações. um lugar é um intervalo? uma posição.

territorialistas dirão, este é o meu lugar. distinção por entraves, catracas, limites desenvolvidos arbitrariamente, gerando a noção de propriedade. lugar tem dono?

diria a terra. um pedaço de terra, um lugar. matéria pura, compreendida em consonância com o que há em volta. música. estrutura, movimentos sistêmicos que cumprem rotas em variação, caminhos, danos, elevação. cíclicas voltagens, antes mesmo de construir.

do limite surge o referencial. talvez, de um terreno preciso. para ele são traçadas rotas, mapas, são criados mitos, memórias. formam-se famílias, redes e articulações organizadas por sistemas de parentesco, continuidades. talvez então isso: ao invés de cercas, noções de assimilação em grupo. contiguidades, modos de fazer e habitar.

um dia, emitem um protocolo, pisam em qualquer noção de hábito, mesmo cuidados. alheios são aqueles, os que não decidem os rumos do lugar. montantes outorgam demolição do terreno, inventam de substituir as construções. dizem: “é a modernidade!”. despropositadas ferraduras, racham o chão.

os sem medo, enfrentam. “é por uma noção de pertencimento, pelo direito que chutam a pontapés. e onde construir, então?” umas vidas. uns sossegos. uns hábitos, que elétricos, flutuam. atravessam paredes, rompem territórios, emanando flores por onde passam.

// publicado originalmente no vocabulário político para processos estéticos em 2014.

trans

TRANS-

conceber um SAIR do LUGAR implica sob certo sentido em uma superação. como ir além da experiência anterior; um ponto que impulsionado por MOVIMENTO gera uma outra situação.

transcender um momento disforme, pouco funcional, mambembe. desfazer uma certa dormência, reentender todos os processos. misturar a disposição dos intelectos.

uma bússola revirada, e revigorada.

em viagens recentes fiz questão de carregar uma bússola, companheira tão amiga quanto a lanterna e uma mochila gordinha, um pouco alta. apetrechos úteis, talvez neste caso ainda mais úteis enquanto ideias de viagem, desejos de nomadismo. vontades de incorporar um personagem explorador: expedito azuis, aquele que age, despachado viajante. procura caronas, aprende a voar. povoa de cores e florestas uma paisagem, ela mesma enquanto imagem de sossego e desafios, abrigo, localizada mais DENTRO do que FORA, para falar de coordenadas. desejos, como as praças e os lugares, se confundem. nada é só um mesmo, coisa afável e distinguível das demais.

ir além implica em transitar. na contramão dos engarrafamentos*, caminho sem pressa, atravesso pontes e escalo prédios. se trata de superar expectativas, por adquirir rumos truncados, incertos demais para especular. nada mais que um treino, até que saiba não existir em espera nem planejamentos complexos, mas sim em processo, corrente, que flui e escorre das calçadas, só anda a pé.

de uma precisão de rejuntes: extrair a simplicidade das coisas. descomplexificar, como um processo químico. para tal, é necessário desprogramar, repensar todos os sistemas e métodos vigentes. desordenar. haverá necessidades de; e se fizer de outro modo; se é verdade que preciso tanto; o solo mesmo não se refaz? composição. assimilar as cores do local, a partir dele construir e só. em volta, são tantas as coisas que estimulam a perda sem rumo, o caminho mesmo do cristal, do arranha-céu com tv de plasma e correrias.

transição. transitivo transitar dos entes mistérios, minérios, ritmos próprios constituintes da tábula rasa da monotonia. monotipia, rumos em vão: tantas técnicas e só vejo uma cor. ruído de voltagens, confunde nossos cérebros.

x

trans é um radical queer. que se situa para além dos sistemas, da compreensão costumeira dos entrecoisas. costura bordados e ri do próprio desatino, desconversa, nunca se saberá ao certo onde vai. pode assumir caracteres absurdos, atravessar a amazônia, se transformar.

transtornos são possíveis, aspectos sinceros que vêm à flor da pele, se perdem. água e animais, super gêmeos ativar, sempre outra coisa que não a esperada. x, que não tem gênero nem classe, assume formas variadas de acordo com a situação. estratégia faz parte de sua estrutura desestruturante – preparada para transcender as maiores crises, entrar em transe, alucinar.

*processos lúdicos que implicam em engarrafar carros e pessoas, como consequência de um equívoco histórico. são intensos, memoráveis e até mesmo hilariantes, tão presentes no cotidiano de cidades populosas. paradoxalmente, quando se procura saber a respeito do estado dos engarrafamentos locais, fala-se em informações sobre o TRÂNSITO.

// publicado originalmente no vocabulário político para processos estéticos em 2014.

sair

Inez saiu dizendo que ia comprar um pavio
pro lampião
Pode me esperar Mané
Que eu já volto já
Acendi o fogão, botei a água pra esquentar
E fui pro portão
Só pra ver Inez chegar
Anoiteceu e ela não voltou
Fui pra rua feito louco
Pra saber o que aconteceu
Procurei na Central
Procurei no Hospital e no xadrez
Andei a cidade inteira
E não encontrei Inez
Voltei pra casa triste demais
O que Inez me fez não se faz
E no chão bem perto do fogão
Encontrei um papel
Escrito assim:
– Pode apagar o fogo Mané que eu não volto mais

(adoniran barbosa, apaga o fogo mané, 1974)

 

baratinada, atordoada pelas constantes mudanças e transformações. ao mesmo tempo entusiasta, enxame de possibilidades geradas pelo tempo que abre uma nova camada de espaço/lugar, novos planos, desandos, perambulâncias e afazeres locais.

sair é intimamente ligado a lugar, sair como espécie de fuga premeditada, sair como vontade de sair do lugar (“mexe essa bunda da cadeira”), sair como solução aparentemente fácil (esvair-se da presença, não lidar com); sair é ir, é partir(-se em pedaços? pulverizar), algo referente a circunstância, uma necessidade, um meio.

sair como uma intenção de lugar. realocar o corpo ou um estado, o sujeito, para refazer sua potência, para entender-se de novo, para alhear (imensa necessidade de alheamento, tantas vezes se faz)

sair implica em movimento: mover-se pelas próprias pernas. tomar iniciativa de, encontrar ou procurar um rumo, pôr-se a caminho

(duros empenhos em sair do lugar)

lidar com a hipótese de fuga é de algum modo mais fácil que lidar com a ação. que precisa de tempo para compreensão, implica em processamento (de dados, de mudanças, de estados de corpo e cansaço). zerar as possibilidades é um fetiche que, diante de algo duro, se refaz constantemente.

– e se eu, simplesmente, saísse daqui?

sair como ação impensada, tomada de posição, absurda ação mesma que não se define, como se simplesmente sair se faz

(e então, estado presente que atormenta, algo a que se quer abandonar)

pontapé para o infinito, atadura. semmãos, semmedo, mmordedura. coragem, aquilo de que tanto falam os clássicos romanescos sem era, que se sobrepõem a uma realidade turva, demasiado complexa para nossos contos de fada caninos. anacronismos de infância, maus adestramentos. depois de um tempo, os embalsama todos e transforma em leituras de maniqueísmos diversos, notícias sem profusão nem densidade, as quais só se lê às partes. reitera discursos ou cria coisa alguma, mas segue algum rumo estrito que supostamente se concretiza. ou não, engole a rebelião e bate ponto no escritório, todos os dias, eis o método que seu pai lhe ensinou.

fuga estaria adoecida pela vontade de escapar, impulso dormente que não tem lugar? abstrata palavra sair, enquanto que fuga apresenta forte oposição (como fugir de – ou fuga, substantivo, algo que acontece ou se sucedeu). a fuga antecede a memória, esvazia-se em ato: simplesmente ir, fugir da coisa, sair do sistema, remodelar ou implodir tudo em fato

(esvair-se do sistema é algo absolutamente sedutor e iminente; difícil concretizar)

da vontade de sair e do semmedo da história, da fuga que tem por desejo existir, há em tudo uma propensão a um fora, um desejo de alhear disso que aqui está

(como um estado de coisas que se altera por uma ação, por mais que esta se faça em abandono)

o truncado está aí, pois se sistema nada faria para tornar fáceis as medidas, codificáveis os modos:

– e quiçá existe um fora?

ou o fora ele mesmo já está dentro? faz parte de um comum que a tudo se esquiva e penetra?

entranhas nervuras e atravessamentos, outrora solfejos, coisas que não têm lugar

permeios e sucessões esquivas irá, irá, encontrar um morcego em um lugar sem hora, sem memória, fora de linha e calado de números, talvez,

liberdade turva só acontece quando não se vê, quando alegre mentira costura sossegos onde quer que se vá.

sair, contudo, ainda é um meio que se faz.

nem que seja para alterar lugares, contaminar uns com os outros, colher um a um. e não deixar lugar.

(identitárias vontades explodiram no ar)

// publicado originalmente no vocabulário político para processos estéticos em 2014.

potentia

reflete-se sobre ação e não-ação. governo e trabalho. antiguidade e modernidade. discurso. política. rebelião. o escopo visível se limita ao livro de hannah arendt, que não é nada limitador. expande tanto que foi feita uma varredura pelos capítulos, a fim de amadurecer a questão. era inevitável. influências externas invisíveis são da ordem da ação política local (leia-se: rio de janeiro), coletivos de arte-ativismo, atritos internos e externos, porto maravilha, expropriações contemporâneas. por isso, dispersão. os discursos se complementam.

Não devemos procurar esconder a ironia implícita na demora para a confecção de um artigo sobre a ação (o tema se auto-impõe, neste processo). Posto que análise aqui proposta parte de um capítulo do crucial livro de Hannah Arendt intitulado A Condição Humana, ocupemo-nos de definir o que Arendt entende por ação, primeiro:

Agir, em seu sentido mais geral, significa tomar iniciativa, iniciar (como indica a palavra grega archein, “começar”, “conduzir” e, finalmente, “governar”), imprimir movimento a alguma coisa (que é o significado original do termo latino agere). (ARENDT, 2011, p. 221)

E prossegue, ao expor a origem de cada palavra em pormenores, mais adiante:

Como exemplo do que está em jogo nesse particular, podemos lembrar que o grego e o latim, ao contrário das línguas modernas, possuem duas palavras totalmente diferentes, mas correlatas, para designar o verbo “agir”. Aos dois verbos gregos archein (“começar”, “liderar” e, finalmente, “governar”) e prattein (“atravessar”, “realizar” e “acabar”) correspondem aos dois verbos latinos agere (“pôr em movimento”, “liderar”) e gerere (cujo significado original é “conduzir”). Aqui, é como se toda ação estivesse dividida em duas partes: o começo, feito por uma só pessoa, e a realização, à qual muitos se associam para “conduzir”, “acabar”, levar a cabo o empreendimento. Não só as palavras se correlacionam de modo análogo, como a história do seu emprego é também muito semelhante. Em ambos os casos, a palavra que originalmente designava apenas a segunda parte da ação, ou seja, sua realização – prattein e gerere –, passou a ser o termo aceito para designar a ação em geral, enquanto a palavra que designava o começo da ação adquiriu um significado especial, pelo menos na linguagem política. Archein passou a significar, principalmente, “governar” e “liderar”, quando empregada de maneira específica, e agere passou a significar “liderar”, mais do que “pôr em movimento”. (ibid., p. 236-7)

Para Arendt, a ação corresponde à condição humana por excelência, “a única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria” (ibid., p. 8). É somente por meio da ação que a vida humana pode se expressar em toda a sua pluralidade, isto é, através da atividade política, que se dá entre cidadãos iguais perante a lei.

O grande antagonismo que se coloca, diante desse fato, é que onde há autoridade, não pode haver ação. Nos regimes políticos implementados desde a antiguidade, desde a monarquia até a democracia liberal, não raro se verifica esse esvaziamento da política: o poder de agir, nesse caso, é outorgado ao governante ou ao pequeno grupo que governa. Contudo, o que podemos verificar, é a consolidação de toda uma tradição da filosofia política, remontando desde Platão e Aristóteles até Rawls, que se debruça sobre a legitimidade do poder, ou seja, quem merece governar. Desse modo, invariavelmente, a capacidade de cada cidadão de agir é excluída da política, assim como são esvaziadas as iniciativas de discussão sobre as decisões tomadas.

A fim de esclarecer o que é esse agir, lidaremos com o conceito de pólis. Ao contrário do que muitos acreditam, a pólis não é a cidade grega em si, em cuja ágora se configura o espaço de discussão e ação política. A pólis são os cidadãos, não importando o espaço real onde eles estejam. Como diz Arendt, “a pólis não era atenas, e sim os atenienses” (ibid. p. 243).

A rigor, a pólis não é cidade-Estado em sua localização física; é a organização das pessoas tal como ela resulta do agir e falar em conjunto, e o seu verdadeiro espaço situa-se entre as pessoas que vivem juntas com tal propósito, não importa onde estejam. “Onde quer que vás, serás uma pólis”. (p. 248)

Está claro que há diferenças bastante notáveis entre cada regime político. A democracia, “governo de muitos”, acaba por se tornar governo de ninguém – e, mesmo que haja sistema de votos, diferentes instâncias do poder político divididas burocraticamente, ou um parlamento, no caso de alguns países nórdicos, a faculdade de tomar decisões e de agir compete, em última instância, ao(s) governante(s). No caso da tirania, que a autora disseca em outras publicações mais a fundo, os indivíduos encontram-se tão isolados entre si quanto o governante de todos os outros. Neste caso, não há de fato qualquer espaço para a ação.

Esse esvaziamento do espaço da ação através da fuga da ação para o governo ocorre por uma operação que substitui a ação pela fabricação. Para melhor compreender o assunto, recuaremos a uma questão bem estrutural: para que, afinal, existe o governo? Por que a crença dominante ainda defende que precisamos dele? Ora, se considerarmos toda a imprevisibilidade das ações dos indivíduos, e portanto a iminência de perigo que elas podem representar – por inconsequência, ou simplesmente reflexos da condição plural que compartilhamos, da diferença – criam-se leis, que estabelecem postulados éticos do que é ou não aceito na esfera do comum, e um governo, que administra essas leis e promete garantir segurança aos membros de uma comunidade.

O advento do contrato social – não esqueçamos as contribuições de John Locke e seus próximos no que se refere ao estabelecimento da ordem tal como ela se apresenta nos dias de hoje – parte justamente daí, da necessidade de se gerar ordem, como alternativa a estarmos sujeitos à fragilidade dos assuntos humanos. Pois “a solidez e a quietude da ordem” (ibid., p. 277) são ideais almejados desde os tempos de Platão. Na prática, consistem em nada mais que “uma série de tentativas de encontrar fundamentos teóricos e meios práticos de uma completa fuga da política” (ibid.).

E nem devemos superestimar a existência das leis per se, pois, como destaca Arendt,

o legislador era como o construtor dos muros da cidade, alguém cuja obra devia ser executada e terminada antes que a atividade política pudesse começar. Consequentemente, era tratado como qualquer outro artesão ou arquiteto, e podia ser trazido de fora e contratado sem que precisasse ser cidadão (…). Para os gregos, as leis, como os muros ao redor da cidade, não eram um resultado da ação, mas um produto da fabricação. (p. 243)

Ou seja, o legislador, na grécia antiga, era meramente um profissional contratado para prestar um serviço. Como bom homo faber, ele produz uma obra, que possui utilidade técnica para um povo, que irá operacionalizá-la (ou menor, submeter-se a ela – pois quem é responsável por coordenar é o governo). Essa é uma boa imagem para ilustrar a questão que se coloca de modo mais amplo: o que chamamos de “fuga da ação para o governo” ou “a substituição da ação pela fabricação” é precisamente essa operacionalização da função, no caso “legislar”, que é esvaziada de sentido por parte daquele que a executa. Essa transformação da ação em uma modalidade de fabricação implica que pensemos de acordo com as categorias de meios e fins, posto que estas se atêm à perspectiva da instrumentalidade.

Platão, no diálogo O Político, esclarece do que se trata: revisitando os termos gregos archein e prattein, ambos ligados ao conceito de ação, Platão instaura um abismo entre ambos. Lembremos que o termo archein corresponde a “começar”, enquanto que prattein, a “realizar”, e eram vistos, até então, como intimamente conectados. Na prática, isso significa que aquele que “começa”, ou que tem a ideia, não mais é responsável por sua execução. De modo a “garantir que o iniciador permanecesse como senhor absoluto daquilo que começou” (ibid., p. 277), sem que outros intervissem ativamente em sua execução, a solução encontrada foi a utilização de outros na execução de ordens, esvaziando seu papel de agentes. Àquele que iniciou a ação, ou que teve a ideia, caberia portanto governar esses outros, sem precisar em absoluto agir.

O homo faber é, assim, aquele que trabalha com as mãos, hábil, “o fazedor de instrumentos e produtor de coisas” – o homem por excelência da era moderna. A diferença primordial entre “o trabalho de nosso corpo” e “a obra de nossas mãos” consiste no fato de que as atividades nas quais se faz uso do corpo para a execução de tarefas básicas, diretamente ligadas à manutenção da vida humana (atividades agrícolas, domésticas etc.), são consideradas menores. A figura do animal laborans, o trabalhador, remonta aos escravos da antiguidade (embora não se possa assumir que a escravidão esteja, hoje, extinta, infelizmente), cuja função primeira era aliviar seus senhores de cuidar da própria subsistência, para assim poderem se dedicar à vida política (cidadãos eram homens com propriedades e que não trabalhavam).

Uma definição possível para compreender essas diferenciações se encontra em Marx:

Ao contrário da produtividade da obra, que acrescenta novos objetos ao artifício humano, a produtividade da força de trabalho só incidentalmente produz objetos e preocupa-se fundamentalmente com os meios de sua própria reprodução; além disso, como a sua força não se extingue quando sua reprodução já está assegurada, ela pode ser utilizada para a reprodução de mais de um processo vital, mas nunca “produz” outra coisa senão “vida”. (ibid., p. 109)

Mesmo assim, do ponto de vista puramente social, profundamente contemplado por Marx, todo trabalho é “produtivo”, mesmo as atividades que não deixam vestigios, o que automaticamente invalida a distinção anterior. Fortalecendo a confusão, Arendt destaca:

À primeira vista, é surpreendente que a era moderna – tendo invertido todas as tradições, tanto a posição tradicional da ação e da contemplação como a tradicional hierarquia dentro da vita activa, com sua glorificação do trabalho como fonte de todos os valores e sua elevação do animal laborans à posição tradicionalmente ocupada pelo animal rationale – não tenha engendrado uma única teoria que distinguisse claramente entre o animal laborans e o homo faber, entre o “trabalho do nosso corpo e a obra de nossas mãos”. Ao invés disso, encontramos primeiro a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo, e, um pouco mais tarde, a diferenciação entre obra qualificada e não qualificada, e, finalmente, sobrepondo-se a ambas, por ser aparentemente de significação mais fundamental, a divisão de todas as atividades em trabalho manual e intelectual. (ibid., p. 105)

Seja como for, pela própria experiência moderna e o que a sucede, torna-se evidente que a exploração do “trabalho manual” (ou do corpo, misturando as antigas distinções) por parte de governos, governantes, donos, senhores, diretores, coordenadores, chefes – em suma, aqueles que detêm as faculdades intelectuais do processo produtivo, a ideia e o controle sobre os meios de produção, ou do dinheiro – configura o mote principal da sociedade em que vivemos. Marx acreditava que chegaríamos a certo ponto em que o excedente de produção gerado por uma crescente força de trabalho em constante produção faria alcançar um ponto em que o homem se libertaria da necessidade do trabalho, aos poucos. Porém, o que tem se verificado, em um sistema que se reinventa e se revigora a cada vez que os mercados quebram, é um crescente acúmulo de riquezas por parte de uns, graças à força de trabalho de outros que, reduzidos às necessidades básicas da vida, são forçados à condição de trabalhadores de modo a prover sua subsistência. Ainda que a história nos mostre os casos mais emblemáticos de rebeliões e movimentos de trabalhadores, isso implica também, por conseguinte, na maioria das vezes, em um esvaziamento da possiblidade de agir dessas pessoas – que constituem a maioria da sociedade.

Como esclarece Arendt no último capítulo do livro:

A expropriação, o despojamento de certos grupos de seu lugar no mundo e sua nua exposição às exigências da vida, criou tanto o original acúmulo de riqueza como a possibilidade de transformar essa riqueza em capital mediante o trabalho. Tudo isso junto constituiu as condições para o surgimento de uma economia capitalista. Desde o começo, séculos antes da revolução industrial, era evidente que esse desdobramento, iniciado pela expropriação e nutrido por ela, resultaria em um enorme aumento da produtividade humana. A nova classe trabalhadora, que literalmente vivia da mão à boca, estava não só diretamente sob a urgência constrangedora das necessidades da vida, mas, ao mesmo tempo, alienada de qualquer cuidado ou preocupação que não decorresse imediatamente do próprio processo vital. O que foi liberado nos estágios iniciais da primeira classe trabalhadora livre da história foi a energia [force] inerente à “força de trabalho” [labor power], isto é, à mera abundância natural do processo biológico que, como todas as forças naturais – da procriação tanto quanto da atividade do trabalho -, garante un generoso excedente muito além do necessário à reprodução de jovens para contrabalançar os velhos. O que distingue esses desdobramentos do início da era moderna de ocorrências similares do passado é que a expropriação e o acúmulo de riqueza não resultaram simplesmente em novas propriedades nem levaram a uma nova redistribuição de riqueza, mas realimentaram o processo para gerar novas expropriações, maior produtividade e mais apropriação.” (ibid., p. 317-8)

Em decorrência desse sistema nefasto, que é sobretudo dependente da energia do trabalho, os movimentos dos trabalhadores, inicialmente, carregavam um pathos que “tem sua origem em sua luta contra a sociedade como um todo” (ibid., p. 272). Isso é muito potente. Lembremos que um dos termos que deu origem ao que chamamos de “palavra”, atualmente, tem origem no latim, potentia (e dynamis, em grego arcaico). Pois bem. Hannah Arendt nos chama a atenção para o fato supreendente de não ter havido nenhuma rebelião séria de escravos tanto na era antiga quanto na moderna (guardando a diferença de que, na era moderna, os escravos reinvidicavam liberdade e justiça, enquanto que na antiguidade um valor como a liberdade não era entendido como direito universal humano). A partir do momento em que os homens começam a se entender como indivíduos, ao mesmo tempo únicos em sua existência e parte de um coletivo, conseguem diferenciar-se, e, imediatamente, passam a ser dotados de ação e poder de fala. Potentia. O termo nos remete imediatamente à ideia de poder, potência. Logo, ação. Discurso.

A ação só se dá em conjunto, quando os indivíduos se encontram em grupo. A antiga pólis, móvel, e sua função discursiva, emerge, ali, em remetimento. Alguém só se constitui como alguém a partir do olhar do outro, que funciona como espelho. Assim se inicia um diálogo. “Do começo ao fim, o principal objetivo da pólis era fazer do extraordinário uma ocorrência ordinária da vida cotidiana.” (p. 246). O agente se revela no ato, que nada mais é que uma imagem. Independente, apropriável, polifônica, intercambiável, que cria vida própria quando vinda a público.

postulados de trânsito: afonso pena, no meio do trajeto

chego sobre rodas, ponho os pés na praça

pontos a favor em uma cidade última. parar de repetir monumentos.

o que fazer com as histórias das gentes todas que habitam, como seguem seu ritmo diário, interrompido por fachadas de obras, tristezas, demolições, ruas sem sentido, gente sem ruas, gente sem mala para carregar por aí.

aceitar mudanças. o que é possível de fazer para que justiças se efetivem nós faremos, mas é fato que há tanto e tão que é feito sem consentimento (das gentes que habitam) e que, ainda de tudo, desejam que fiquem contentes.

criam mídia brinquedinho, todo tipo de propaganda, que olhos um pouco mais sérios (e nem precisa ser muito) já tiram de campo. só que o campo insiste, é poderoso e tem lugar. convive-se. como é que convive.

adaptação e derivas noturnas pelo bairro trocado, que por vezes encontram medo, noutras simplesmente nada, ventinho. muito grato fica meu verão com seu ventinho, tijuca.

um método de conhecimento: primeiro, tem que andar de ônibus. a pé, de ônibus, de trem, de metrô, de carro, de moto, de bicicleta. desses, os principais são os pés, para mapear os arredores mais próximos, conhecer a padaria, a loja de material de construção. o segundo muito útil é bicicleta, para poder ir a porções mais largas do lugar e por exemplo descobrir uma pracinha charmosa, um supermercado maior, até o lugar onde tem mato e escola de artes. conversar com as pessoas – eu não sou daqui – e se apresenta.

andar de ônibus é importante (se contraposto a meios como carro ou metrô, fique claro, porque de fato os monstrengos engolem a cidade! eles são a cidade, aí é que está) porque deles se vê o trajeto, o meio do caminho entre um lugar e outro. entende por que é que é longe, por onde tem que passar, as ruas sujas ou pretas, o sambódromo. é louco que haja uma cidade com tantos viadutos e contusões, mas há! e muitas, com muito mais. esgoto e terras sujas temos de monte. como é que pode entender o asfalto que se instala nas terras férteis e perfumadas da serra, eu não sei. lá só é bonito porque a estrada é de terra, passa pouco carro, as árvores ainda estão em pé. os vizinhos se visitam e dão carona tranquilamente. e mesmo assim a cidade cresce, quer crescer, copiar nossos industrialismos importados, não vejo motivo.

o que é curioso do ônibus é que ali se encontram dois ambientes contrapostos – interior e exterior – e um vê ao outro. um ambiente (dentro) é quase tão público quanto o de fora. tudo bem, mas assim é o metrô, que com sua alta voltagem passa batido das leis de trânsito. é um corredor. só que no metrô não há um fora. é primo distante do avião. a sensação de trânsito – de percurso, vivência do caminho, distância – quase se anula nesse dentro/fora que não transparece.

a bicicleta é o meio máximo de euforia que um cidadão pode chegar, sem gastar um tostão. viajante que se arrisca a meio-mistério, tem turbinas próprias: um mecanismo simples e seu próprio corpo. atravessa montanhas se for persistente. a vida urbana tem seus afagos, e um dos mais subestimados é o potencial do ciclista. carros são da ordem do não fazer esforço, de monstros-máquinas, de posse. até mesmo de segurança, porque isola. há carros que não fazem nenhum sentido de serem tão grandes, soltar tanta fumaça. sem vento no rosto, sem mexer as pernas. não raro ignoram o ciclista como se ele não pudesse estar ali. quanto a isso, suponho que deveríamos difundir melhor algumas ideias básicas de convivência: na rua cabe eu e cabe você. a 1,5m de distância, para não haja feridos.

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dois meses sem bicicleta, com medo do asfalto e do túnel que tem goteiras. irritação contínua com homens que, por puro hábito, só pensam em perpetuar a espécie. você desce da bicicleta e pede informação, te olham de cima a baixo. princesa. deseducação obtusa, delegação. insulto. queria ter um caralho bem grande para bater na cabeça desses homens todos. mas sim, sei, o processo é outro.

daí que peguei a bicicleta e fui conhecer a praça afonso pena, de perto. antes, só via no trajeto da janela do ônibus. me parecia simpática. decisão, uma regra: pegar a bicicleta, ir até em casa. parar no caminho, pisar na praça. tentativa de entender o percurso, aprender o nome das ruas, somar com mais um rosto entre os passantes.

escolho uma loja (a cidade nada mais é que um conglomerado de lojas, e ônibus). pizzaria, tem cara de popular, vende fatia. ponto. muito mais barata que qualquer uma das que tem perto de casa. no interior, só vejo velhinhos (uns 3 ou 4) que me estranham a presença, mais uma família com crianças e os funcionários do local (todos homens). assistem televisão. a pizza é boa, marguerita, servida na mesa, com catchup. compro água no bar do lado cujo balconista me diz: todos os caminhos aqui te levam à rua que você procura. que loucura de fácil, não pode ser.

a cidade dos megaeventos: visibilidades

Essa cidade não te pertence mais. O prefeito mudou as regras, seu bairro ficou distante e há um plano multimilionário já em curso, que começa a mostrar suas garras e destruições. A lógica que vigora é a da substituição – do problema pela maquiagem, sustentada pela propaganda da prosperidade.

O clima de euforia com a perspectiva da vinda de pelo menos dois megaeventos à cidade do Rio de Janeiro – a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016 – tem motivado uma enorme especulação imobiliária, expulsando gradativamente os moradores da cidade para bairros cada vez mais distantes. Numa cidade já conhecida por suas alarmantes diferenças sociais, cujos pontos turísticos mais conhecidos se localizam na área entre a Zona Sul e o Centro, mesma região que concentra comunidades lá presentes há décadas, um projeto de revitalização deveria ter como prioridade o fornecimento de estrutura necessária para os moradores que nela vivem. Isso seria o mínimo. Os planos das parcerias público-privadas firmadas para tal revitalização do terreno, que trazem como seu maior expoente o projeto do Porto Maravilha – a revitalização da Zona Portuária do Rio de Janeiro – têm explicitamente como objetivo aumentar as atrações turísticas na cidade que já se encarrega de acumular todos os clichês brasileiros vendidos lá fora, tratando seus moradores como meros empecilhos para tal empreendimento. Para adivinhar quais os beneficiados, é só pensar nos empresários abastados de nomes mais conhecidos, que viabilizam os empreendimentos mediante a cessão de terras e facilidades pelo governo.

Remoções, desalojamentos, casas que amanhecem marcadas para serem removidas do dia para a noite tal como a marca nazista – mas é a Secretaria Municipal de Habitação! – são os mais alarmantes e evidentes efeitos colaterais previstos por essas reformas. Outras cidades do mundo passaram por processos semelhantes de reestruturação e obras de caráter permanente para abrigar as Olimpíadas, gerando impactos para a população. Mas o que sempre se esquece de levar em conta quando são exportados modelos bonitos e bem apresentados do exterior é o contexto local. Quais ganhos essas obras irão trazer para os moradores da Zona Portuária, por décadas abandonada e esperando receber atenção do Estado? Quando essa enfim chega, é para abrigar os novos usuários (mais que habitantes) da área, obviamente mais abastados financeiramente e muitas vezes visitantes de passagem, expulsando os antigos.

Se engana quem acredita que as remoções que vêm ocorrendo pela cidade se concentram nas ditas “áreas de risco” – ou uma casa fincada no topo do Morro da Providência há aproximadamente cem anos estava em área de risco, e só notaram agora? Não seria mais coerente reconhecer que as ameaças de remoção se direcionam a habitações indesejadas, por estarem na rota traçada pelo projeto de revitalização sem nenhuma participação da população? Cabe dizer ainda que, ao que os fatores indicam, aqueles que não forem expulsos por processos mais explícitos como esses, poderão o ser futuramente pela especulação imobiliária trazida com a euforia pela trasformações na cidade, que traz consigo a valorização do terreno.

Ao caminhar pela Av. Rodrigues Alves no último domingo, partindo da Praça Mauá em direção à rodoviária, o cenário era alegórico de tão discrepante: de um lado, em dois armazéns do Cais do Porto na altura do Pier Mauá acontecia a Art Rio – a primeira edição da feira internacional de arte do Rio de Janeiro, com seus estandes lotados entre turistas e possíveis compradores, alguns sentados em confortáveis sofás sorvendo espumante. Não é a primeira vez que um evento desse tipo acontece no local, por certo. Mas, em tempos em que a ocupação da antiga fábrica de chocolates Bhering por artistas que usam o espaço como seus ateliês é utilizada como parte da campanha do Porto Maravilha como pioneira na revitalização da área, a ocorrência da feira é simbólica, marcando talvez uma posição que certamente não todos os artistas ali presentes gostariam de ocupar.

A Av. Rodrigues Alves tem a visão do céu cortada pelo viaduto da Perimetral, que agora se tornará uma via subterrânea – reforma ainda ancorada prioritariamente no transporte rodoviário, praga da nossa modernidade local. Do outro lado dela, visitamos a ocupação Flor do Asfalto. Diferente da Bhering, eles se autodenominam um squat, no sentido do movimento global de ocupação de prédios abandonados, e são um grupo com uma agenda criativamente ativa nos campos cultural e político. O terreno, outrora da União, é parte das terras cedidas para as obras de revitalização da região. Os incomodantes que se mudem, é a posição do Estado. Não tem conversa.

Escrevo esse texto motivada pelos estudos iniciais feitos por algumas pessoas que têm se movido para tornar esses fatos conhecidos pela população. As mudanças pelas quais está passando a cidade afetam à grande maioria dos que aqui vivem, não são fatos isolados e muito menos distantes. Mesmo que o fossem, processos como esse têm efeitos profundos e demandam a participação dos que nela estão envolvidos: demandam diálogo, e não só festividades e campanhas publicitárias. Quem procura apartamento para alugar ou comprar sabe bem o que se passa, ou quem simplesmente é capaz de observar a alucinante quantidade de obras e as alterações em seu entorno.

O Laboratório de Cartografias Insurgentes, organizado pelo coletivo IP:// (Interface Pública), junto com vários outros coletivos, se encontra no momento em fase de “pré-lab”, com o evento maior agendado para o próximo final de semana, no Morro da Conceição. A proposta é dialogar com a população local e todos os interessados, expondo e problematizando essas mudanças, para discutir juntos alternativas, táticas, modos de fazer e significar, por meio de oficinas diversas. Fica o chamado.

contracultura e a música popular brasileira entre os anos 60 e 70

por inês nin, dezembro de 2007

 

Mandei fazer de puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na avenida central
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer

Panis et Circenses
(Caetano Veloso e Gilberto Gil,
interpretada por Os Mutantes)

 

Não, não é uma estrada, é uma viagem
Tão, tão viva quanto a morte
Não tem sul nem norte
Nem passagem

Ferro Na Boneca
(Paulinho de Boca de Cantor e Morais Moreira,
interpretada pelos Novos Baianos)

Introdução e breve histórico

O lançamento da bomba atômica pelos EUA nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, em 6 de Agosto de 1945, deu início a um período histórico conhecido como Guerra Fria, gerando conseqüências extremas para qualquer lado que se procurasse. Na verdade, a partir de então, qualquer dissidência entre ideias se tornava rivalidade mortal, e quaisquer ideais em que se acreditasse se tornariam imediatamente ameaças ao seu oposto, ou mesmo seriam considerados conspirações. Isto, é claro, caso não seguissem estritamente as regras da ordem dominante.

À esfera mundial foi imposta uma divisão rigorosa entre dois pólos – os que eram e os que não eram; os fascistas e os socialistas; os dominantes e os que deveriam ser dominados. Tudo isto motivado pela ameaça de uma guerra nuclear, uma vez que era fato conhecido que pelo menos cinco países haviam produzido bombas atômicas, e os outros procuravam investir em pesquisas nucleares, configurando desta forma uma corrida armamentista.

Ken Goffman e Dan Joy, no recém-publicado no Brasil Contracultura Através dos Tempos – do Mito de Prometeu à Cultura Digital, dizem que “no dia seguinte à ‘bomba’ o discurso intelectual e a mitologia popular se concentraram na aniquilação em massa. O niilismo era inevitável.” (GOFFMAN, Ken e JOY, Dan, 2007, p. 250).

No livro, eles consideram como contraculturais mesmo personagens míticos arcaicos, como Abraão e Prometeu, por se encaixarem em uma determinada maneira de pensar que, contrária às ordens então vigentes, pode torná-los atores sociais participantes da construção de contraculturas. Entretanto, é somente a partir da segunda metade do século XX, era de extremos, velocidade e “fusão entre tempo e distância” (GOFFMAN, Ken e JOY, Dan, 2007, p. 251) que se estabelecem as contraculturas tais como as procuramos (re)conhecer hoje.

Retornando à perspectiva histórica que começamos a situar, em se tratando dos aspectos locais, no Brasil não foi diferente: o país estava inserido no contexto do mundo polarizado, ainda que não como um dos agentes centrais da cena. Desde o momento pós-bomba atômica e início da Guerra Fria, durante o primeiro governo Vargas (1930 – 1945), o Brasil se aproximou das idéias anti-comunistas dos EUA e seus aliados. Posteriormente, Eurico Gaspar Dutra em seu governo (1946 – 1951) rompe relações diplomáticas com a URSS. Depois disso, Getúlio Vargas reassume o poder, desta vez por voto popular e “nos braços do povo” e dá continuidade à sua política populista. Em seguida, depois do suicídio de Vargas, Juscelino Kubitschek se torna presidente (1956 a 1961), tendo como sucessores Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961 – 1964), cujas idéias (“Plano Trienal”), não podendo ser levadas adiante, abrem espaço para as reivindicações de uma esquerda cada vez mais radical e, conseqüentemente, para uma direita radical que deseja se impor. A situação tem seu apogeu na ocorrência do golpe militar de 1964, que destitui os cidadãos brasileiros da liberdade de voto e de outras liberdades que viriam a ser cerceadas, censuradas e aniquiladas nos anos que viriam pela frente.

A música popular brasileira engajada

A MPB como a conhecemos hoje surge nos anos 60. Identificada prioritariamente com a bossa nova, a qual, se colocando em oposição à popular jovem guarda, agregava elementos do jazz norte-americano (em especial o bebop e o cool jazz), do samba e de outros ritmos como a valsa, o baião e mesmo o bolero.

Artistas como João Gilberto, Vinícius de Moraes e Tom Jobim, bossanovistas, encontraram aceitação e sucesso em especial perante à crítica e ao público considerado mais exigente; não necessariamente aquele popular, mas um mais sofisticado e que podia ver no minimalismo no qual as canções se estruturavam uma beleza, uma estética simples que combinava muito bem com as areias de Ipanema, no Rio de Janeiro, ou mesmo com a desaceleração das praias do litoral baiano.

À bossa nova seguiram diversas críticas acerca de suas temáticas, que falavam de flores, sorrisos, amores e moças bonitas, temas que poderiam ser considerados alienantes para uma parcela dos críticos e da população. De fato, o resultado ameno das canções bossanovistas, que mais combinavam com fins-de-tarde de sol regados a caipirinha e um violão desplugado, não mais se conectavam com o momento histórico e político no qual o Brasil entrou a partir de meados dos anos 60, com o golpe militar de 64 e o momento de guerra fria que explodia em movimentos pacifistas marcados por atitudes extremas em diversos países do mundo. Teve início, então, uma certa crise no conceito de MPB em seu sentido estrito e clássico, mas foi uma crise criativa, representada especialmente pela tropicália.

Os tropicalistas faziam parte de um movimento de vanguarda que ultrapassava os limites da música, compreendendo também as artes plásticas (Hélio Oiticica, em especial), o teatro e o cinema (sendo influenciado mutuamente pelo cinema novo de Glauber Rocha). Como maiores expoentes no campo da música podemos citar Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes, que agregavam em suas composições influências da Antropofagia de Oswald de Andrade, de vanguardas artísticas como a Pop Art e o Concretismo e da música mundial, como o rock’n’roll dos Beatles e dos Rolling Stones.

As canções tropicalistas são marcadamente políticas, em sentindo amplo, fazendo o uso de linguagem subjetiva e diversas metáforas para falar de alienação (Panis et Circensis), sofrimento (Mamãe, coragem) e de outros temas, sempre de forma irreverente e extremamente criativa.

No início dos anos 70, durante a fase mais dura do regime militar (pós-AI-5), os mais conhecidos artistas ativos brasileiros – dentre eles músicos como Caetano Veloso, Chico Buarque e Geraldo Vandré – se encontravam exilados fora do país, em cidades como Londres ou Paris. O início do governo Médici significou, de um lado, repressões mais violentas àqueles que se opusessem ao regime de qualquer forma considerada suspeita, e de outro, uma política voltada em direção à conquista do apoio da classe média, através de políticas de estímulo ao consumo e propagandas acerca do crescimento econômico do país.

De acordo com Marcos Napolitano (NAPOLITANO, 2001, pp. 83 – 84),

Para o jovem com mentalidade crítica que vivia no início dos anos 1970 restavam três opções: a resistência democrática em pequenas ações no seu cotidiano; a clandestinidade da guerrilha ou o chamado desbunde e a busca por uma vida ‘fora’ da sociedade estabelecida. (…) As comunidades hippies protagonizavam uma nova forma, não comercial, de viver a cultura, baseada na prática do artesanato, na diluição das fronteiras entre vida e arte e na busca de novos valores morais e na busca de um novo comportamento sexual, com base no chamado ‘sexo livre’.

Inserido nesse contexto de tão poucas possibilidades, momento de extremos e severidade da parte do governo, e acima de tudo de ausência de expectativas, se destaca o grupo Novos Baianos, representante da cultura do desbunde que marca este momento histórico. As características híbridas constituintes da canção brasileira (NAPOLITANO, 2003) presentes de forma bem explícita nas canções tropicalistas, se verificam também nas composições dos Novos Baianos, como influência (muito forte, no início).

O grupo, formado por Luiz Dias Galvão, Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor, Baby Consuelo e, durante algum tempo, o bailarino Gato Félix, vivia em uma casa situada na Zona Oeste do Rio de Janeiro que funcionava como uma comunidade hippie. O som do grupo agrega, além das influências tropicalistas, ritmos como o frevo e o rock, e, a partir do disco Acabou Chorare, que conta com a parceria de João Gilberto, também elementos da bossa nova.

O contexto político, neste momento, já não compreendia mais espaço para alguma manifestação de esperança, ainda que irreverente, como havia na tropicália. As canções deste momento já passam para um patamar além da crítica política explícita ou não, para temas que vão do nonsense puro e simples (Ferro Na Boneca, do disco homônimo), como um divertimento, a temas pessoais (Baby Consuelo) ou referentes à cultura brasileira (Brasil Pandeiro, de Acabou Chorare).

O hedonismo e a negação à sociedade tal como ela estava estruturada, com todos os seus problemas e complexidades, é expresso tanto nas letras quanto no modo de vida dos membros do grupo (e de outras comunidades hippies da época). E este estilo de vida se comunica diretamente com a temática abordada em filmes como Hair, de Milos Forman (1979), ou Bem-vindos (Tillsammans), de Lukas Moodysson (2000).

A contracultura hippie dos anos 60 e 70

De acordo com o dicionário britânico Oxford, contracultura se define por:

counterculture. noun [c, u]. a way of life and set of ideas that are opposed to those accepted by most of society; a group of people who share such a way of life and such ideas: the anti-military counterculture of the 1960s.

Essa definição nos ajuda a situar o contexto com o qual dialoga o filme Hair, de Milos Forman (1979). Originalmente uma peça de teatro, que começou off-Broadway e terminou por fazer tanto sucesso na própria Broadway que foi levado ao cinema, o musical retrata de forma bem-humorada o encontro de um grupo de amigos hippies durante os anos 60 com um futuro voluntário da guerra do Vietnã. O espaço é Nova York, Estados Unidos.

Apesar do universo alegre e multicolorido que era a contracultura hippie e pacifista dos anos 60 (identificada com a hoje emblemática expressão peace & love e o movimento flower power), que ganha um tom reforçado por se tratar de um musical (logo, danças coreografadas repentinas e músicas hilárias que fazem parte da história), a película tem um desfecho trágico, contado da forma mais direta mas também delicada, através de imagens permeadas por uma música que é, então, triste e melódica.

O final não poderia ser diferente quando se fala de um momento histórico tão tenso e polarizado como era aquele, representado de um lado pelo rapaz que vem de Oklahoma, típico estado de interior de forte influência religiosa e moralista dos EUA, e se alista para a guerra, acreditando que com isso cumpre um dever para com o seu país; e de outro aquele bando de hippies, de roupas estampadas e alegres – quando as usam –, que vivem não se sabe exatamente como, preenchendo seus dias com drogas para expansão da mente, amor livre e demais formas de liberdade (da forma como a entendiam).

Existe, ainda, um terceiro personagem (encarando assim o grupo como um, pelo lugar que ocupa), que é a moça de família rica e tradicional que se interessa pelo futuro militar, aproveitando ainda para demonstrar uma espécie de dicotomia entre a sua vida pública de colunável certinha e os reais interesses da moça.

Hoje um clássico, Hair é um perfeito exemplo desta contracultura que se localiza temporalmente, identificada com os anos 60 e aquele determinado momento histórico que se vivia nos EUA, no Brasil e no mundo. Os Novos Baianos e as práticas relacionadas ao desbunde, no Brasil, se identificam genericamente com os mesmos ideais e atividades que o grupo de personagens do filme; aqui, ao invés da guerra do Vietnã, vivia-se sob o regime militar.

Em Bem-Vindos a situação é um pouco diferente: apresentando uma postura crítica e bem-humorada acerca dos valores e costumes hippies e convencionais dos anos 70, eles, quando postos em confronto, acabam por encontrar, incrivelmente, um denominador comum entre ambas as partes. O filme se passa em 1975 na comunidade hippie Together, na qual seus membros atravessam mudanças em suas vidas a partir da chegada da irmã de um dos moradores, que vem de um casamento tradicional. Logo passam a fazer parte da vida dela atitudes feministas e “livres”, enquanto que seus filhos têm que encarar uma nova forma de lidar com o conceito de família, seus hábitos e costumes.

Tanto em Hair, em Bem-vindos ou no caso dos Novos Baianos, encontramos representada, seja em ficção ou realidade, o que foi a contracultura hippie de finais dos anos 60 e início dos anos 70. A partir de então, o estilo de vida ligado ao amor livre, a não violência e os respectivos protestos e manifestações entrou em declínio, o hedonismo mais que nunca imperava, pois os ideais com bases sessentistas não mais faziam sentido.

Conceitos de contracultura e a perspectiva temporal

A contracultura também pode ser encarada como um conceito genérico que possui determinadas características, identificadas em variados períodos da história. A respeito disso, Ken Goffman e Dan Joy dizem que

as contraculturas são movimentos de vanguarda transgressivos. O apego contracultural à mudança e à experimentação inevitavelmente leva à ampliação dos limites da estética e das visões aceitas.

Os autores colocam ainda que, de modo geral, as contraculturas se caracterizam pelas “rupturas radicais em arte, ciência, espiritualidade, filosofia e estilo de vida; diversidade; comunicação verdadeira e aberta (…); perseguição pela cultura hegemônica de subculturas contemporâneas e exílio ou fuga.”

Para Stewart Home, autor de Assalto à Cultura, os movimentos contraculturalistas (ou samizdat, como ele escolhe chamar), em conjunto, compõem uma tradição dissidente. O livro possui um enfoque maior nas vanguardas das artes plásticas, ainda que também fale do movimento punk, mais conhecido por sua expressão musical. Assim como o punk, outros não raro extrapolam seus limites e influenciam a música produzida no mesmo espaço e tempo dos quais participam, ou mesmo em outros espaços. Home acrescenta que

enquanto os movimentos sobre os quais estou escrevendo situam-se em oposição ao capitalismo consumista, eles também emergiram de sociedades baseadas em tal modo de organização, e assim não escapam inteiramente da lógica de mercado. (…) No entanto, (…) (eles) nem sempre falham em romper com a ideologia da sociedade reinante.

As características de ruptura, rebeldia, subversão e criação de novas formas de vida e de arte seriam, afinal, os principais pontos em comum entre os movimentos hippies dos anos 60 e 70, o flower power e o desbunde, a tropicália e os Novos Baianos, dentre todos os outros, inclusive o punk que viria em seguida. Todos eles se unem dentro do que seria essa tradição dissidente; possuem um olhar diferente sobre a realidade, a iniciativa de criar a sua própria e a de combater quaisquer formas de cerceamento à liberdade empreendidas em seu momento histórico.

Os movimentos contraculturalistas, que encontram na música uma das suas principais formas de expressão, podem ser considerados os novos ares necessários a respirar por uma sociedade sufocada em regras, dogmas e circulos viciosos, o que invariavelmente acaba por acontecer. Pois as inovações, embora não raro rejeitadas em princípio, logo tentem a ser assimiladas pela lógica da mesma (a de mercado, no caso do sistema capitalista) e então novas formas de subversão e movimentos de ruptura irão surgir. E as sociedades precisam deles para que possam se renovar.

O filme Edukators (Die Fetten Jahre sind vorbei), de Hans Weingartner (2004), fala desse assunto muito bem. Em formato de ficção e situado no momento contemporâneo, ele retrata um grupo de jovens alemães que acredita em ideais anárquicos e se envolve em ações encaradas pelo Estado como ilegais, mas que pretendem fazer os outros (no caso, milionários) refletirem sobre a sua situação perante à sociedade. Também fazem uso de drogas ilícitas, se divertem e acabam por formar um triângulo amoroso.

Jovens, cheios de ideias e esperanças, acabam por se encontrar confrontados com um homem de meia-idade, então milionário, que também na juventude participou de movimentos contraculturalistas em fins dos anos 60. Agora ele é um senhor conformado, complacente com a lei, reacionário, que passa suas noites solitárias contando seus milhões em sua mansão, enquanto degusta um whisky importado.

Invariavelmente notamos que os principais agentes de movimentos contraculturalistas são jovens que assumem para si um papel transformador, aceitando correr riscos para que possam catalizar novas formas de vida. Ainda que suas transgressões, uma vez assimiladas, assumam cores mais brandas ou mesmo cheguem a perder o sentido quando deslocadas de seu contexto, os registros de seus atos possibilitam o acesso a algo do que um dia foram, podendo influenciar gerações vindouras e sedentas por mudanças.

Referências

NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira – utopia e massificação (1950-1980). Contexto, 2001.

NAPOLITANO, Marcos. A Canção engajada nos anos 60. In: CAMBRAIA NAVES, S. & DUARTE, Paulo Sérgio (orgs.) Do Samba-canção à Tropicália. RJ: Relume Dumará, 2003.

GOFFMAN, Ken e JOY, Dan. Contracultura Através dos Tempos – do Mito de Prometeu à Cultura Digital. Ediouro, 2007.

OXFORD Advanced Learners Dictionary, International Student’s Edition. Oxford University Press, 2001.

HOME, STEWART. Assalto à Cultura – utopia subversão guerrilha na (anti) arte do século XX. Conrad, 2005.