asfalto dança, revolvido e celeste

do que seremos capazes. quando estivermos em residência. quando estivermos juntos. quando soubermos desatar os laços e não nos deixar contaminar pelas ruas. pelo ruído que envolve.

encruzilhadas de encontros e um tanto de terra descascada, casa — muitos moraram aqui. nós estamos. um curto período de tempo, esses dias: vejo transição. pra mim transição, enfim transição, de polir arestas transição.

transitoriedade. estamos. rio de janeiro se impõe transitório, quando cutuca suas terras abaixo, tantas camadas. seria não só o pó que entra pelas janelas ou o ruído alto de máquinas, às vezes acontece, como o samba. mas ele perdura. a serra elétrica é tão sabão quanto as suas meias, você não questiona elas. você não questiona a serra elétrica e se pensar nem os helicópteros (aviões sentimos muito por essas bandas), nem a furadeira você considera. quem escolheu esse ruído? haveria máquinas silenciosas?

tenho preferido manivelas e pedais e reco-recos a qualquer custo para não ensurdecer qualquer vizinhança, seja da minha casa ou de quem for. e minha casa minha dívida, minha dúvida ou desejo ou de fato algo que não existe. não existem quase casas no sentido lar numa cidade como essa, em que se atravessa túneis subterrâneos e então todos viramos asfalto, aos poucos asfalto, que é para casar com toda a máfia das construtoras que nos assalta.

tomados de assalto, abrupto, e no entanto leva anos. o balneário da tevê dos sonhos de tantos brasileiros e brasileiras, nesta ordem subalterna que tem tantas categorias pouco gentis e pouco dignas porque sim ordenaram, na terra onde se fez escravos, então refúgio de uns brancos europeus que então trouxeram armas e ainda matam nativos, hoje

multidão, faremos e somos e construímos pontes entre as membranas que descolam e as camadas que vêm à superfície como fúria, furiosamente nos deixando atravessar por camadas que caem, pouco a pouco, todos os dias, furiosamente perfuradas por máquinas ruidosas que constroem túneis por onde passa todo tipo de concreto e rios que não são mais rios mas fétidos detritos disso que chamam saneamento básico, as pessoas.

as pessoas se juntam, as pessoas colaboram. as pessoas pensam rua. as pessoas nunca serão uníssono, multidão não é sobre isso. aprendi muito sobre dissenso e distensão e uns saberes práticos de autonomia (urbana) durante ocupações de tempos e tempos, que de tempos em tempos ocorrem, e cruzamos com elas. são terreno de mistura e utopias postas à mesa, ações e abraços e conjuntas confusões e desfiladeiros de acasos fortuitos, dentre outros movimentos

o que será todo esse concreto que nos envolve? serão os viadutos capazes de nos engolir? lembrarão os carros do que um dia foram, quando não havia motores? como era viver sem motores?

percorro ruínas com uma bicicleta.

relações com esforço, pernas. como meias, sabão: relações com esforço, braços. me yoga pela manhã, para assentar os músculos e não torturá-los demais. gradativamente. alcanço

subir montanhas era uma intenção perspicaz e há muito alimentada nisso que chamam rio — tantas matas — complexa de pôr em prática assim como desejada, talvez por excesso de desejo, talvez pela clássica fatalidade dos dias e das noites (e as divisões dos tempos e do trabalho, nosso empecilho mais clássico, assim como as noitadas)

florestas de noite ainda existem, mas não as adentramos na cidade (sobrevivência; prioridades)

voaria lá nos altos dos montes e pernas fortes, pernas dormentes, pernas crescentes assim como a lua que agora nos assiste lá do alto, construindo lares acasos outros muito mais afáveis que quaisquer uns feitos em concreto

são de matéria fluida os sonhos mais compridos e bonitos e velozes de saborear (é possível viver de matéria, maleável e componente fértil de outras casas, outras vozes, construção elementar de inventos e mundos, sim casas, habitações e cotidianos)

e cotidianos velozes, meu bem, sabemos, temos demais. mas se pensar outro tipo de velocidade, aquela dos sonhos, em que se está aqui e depois em outro lugar, assim seguido, assim sobreposto, tempo-colagem, curva

quis trabalhar com técnicas velhas de fotografia porque sim nostálgica, e também mercado de pulgas, o melhor das cidades, cheio das memórias dos nossos avós que não foram nossos, mas participaram de um sobremundo que nos atravessa, que salta desses lugares quase esquecidos e vem cá na nossa frente dizer que ainda existem (e em vivas cores, vivas vivas e pueris)

de viagens pro estrangeiro também se enche o mercado de pulgas, a praça xv, e assim muitos mickeys povoam um imaginário infantil colonizado, que só três décadas depois começa a se dar conta inteiramente do que terá afinal sido tudo aquilo, todos aqueles bichos que não existiam nessas terras, todos uns referenciais meio estranhos, coloridinhos, colonizadinhos, branquinhos e muito pouco críticos, afinal

(e de crítica seremos muitos, mas também respirar, respirar, que não seja esse pó que nos atravessa mas também a importância tão gigante de ser permeável, de não se afetar e assim criar ossos mais resistentes que possam sobreviver a tanta matéria revolvida dos solos, todos os passados remotos mais amendrontadores que sobem com tanta fúria à superfície e dançam

dançar, vamos

inesnin; casacomum

a cidade dos megaeventos: visibilidades

Essa cidade não te pertence mais. O prefeito mudou as regras, seu bairro ficou distante e há um plano multimilionário já em curso, que começa a mostrar suas garras e destruições. A lógica que vigora é a da substituição – do problema pela maquiagem, sustentada pela propaganda da prosperidade.

O clima de euforia com a perspectiva da vinda de pelo menos dois megaeventos à cidade do Rio de Janeiro – a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016 – tem motivado uma enorme especulação imobiliária, expulsando gradativamente os moradores da cidade para bairros cada vez mais distantes. Numa cidade já conhecida por suas alarmantes diferenças sociais, cujos pontos turísticos mais conhecidos se localizam na área entre a Zona Sul e o Centro, mesma região que concentra comunidades lá presentes há décadas, um projeto de revitalização deveria ter como prioridade o fornecimento de estrutura necessária para os moradores que nela vivem. Isso seria o mínimo. Os planos das parcerias público-privadas firmadas para tal revitalização do terreno, que trazem como seu maior expoente o projeto do Porto Maravilha – a revitalização da Zona Portuária do Rio de Janeiro – têm explicitamente como objetivo aumentar as atrações turísticas na cidade que já se encarrega de acumular todos os clichês brasileiros vendidos lá fora, tratando seus moradores como meros empecilhos para tal empreendimento. Para adivinhar quais os beneficiados, é só pensar nos empresários abastados de nomes mais conhecidos, que viabilizam os empreendimentos mediante a cessão de terras e facilidades pelo governo.

Remoções, desalojamentos, casas que amanhecem marcadas para serem removidas do dia para a noite tal como a marca nazista – mas é a Secretaria Municipal de Habitação! – são os mais alarmantes e evidentes efeitos colaterais previstos por essas reformas. Outras cidades do mundo passaram por processos semelhantes de reestruturação e obras de caráter permanente para abrigar as Olimpíadas, gerando impactos para a população. Mas o que sempre se esquece de levar em conta quando são exportados modelos bonitos e bem apresentados do exterior é o contexto local. Quais ganhos essas obras irão trazer para os moradores da Zona Portuária, por décadas abandonada e esperando receber atenção do Estado? Quando essa enfim chega, é para abrigar os novos usuários (mais que habitantes) da área, obviamente mais abastados financeiramente e muitas vezes visitantes de passagem, expulsando os antigos.

Se engana quem acredita que as remoções que vêm ocorrendo pela cidade se concentram nas ditas “áreas de risco” – ou uma casa fincada no topo do Morro da Providência há aproximadamente cem anos estava em área de risco, e só notaram agora? Não seria mais coerente reconhecer que as ameaças de remoção se direcionam a habitações indesejadas, por estarem na rota traçada pelo projeto de revitalização sem nenhuma participação da população? Cabe dizer ainda que, ao que os fatores indicam, aqueles que não forem expulsos por processos mais explícitos como esses, poderão o ser futuramente pela especulação imobiliária trazida com a euforia pela trasformações na cidade, que traz consigo a valorização do terreno.

Ao caminhar pela Av. Rodrigues Alves no último domingo, partindo da Praça Mauá em direção à rodoviária, o cenário era alegórico de tão discrepante: de um lado, em dois armazéns do Cais do Porto na altura do Pier Mauá acontecia a Art Rio – a primeira edição da feira internacional de arte do Rio de Janeiro, com seus estandes lotados entre turistas e possíveis compradores, alguns sentados em confortáveis sofás sorvendo espumante. Não é a primeira vez que um evento desse tipo acontece no local, por certo. Mas, em tempos em que a ocupação da antiga fábrica de chocolates Bhering por artistas que usam o espaço como seus ateliês é utilizada como parte da campanha do Porto Maravilha como pioneira na revitalização da área, a ocorrência da feira é simbólica, marcando talvez uma posição que certamente não todos os artistas ali presentes gostariam de ocupar.

A Av. Rodrigues Alves tem a visão do céu cortada pelo viaduto da Perimetral, que agora se tornará uma via subterrânea – reforma ainda ancorada prioritariamente no transporte rodoviário, praga da nossa modernidade local. Do outro lado dela, visitamos a ocupação Flor do Asfalto. Diferente da Bhering, eles se autodenominam um squat, no sentido do movimento global de ocupação de prédios abandonados, e são um grupo com uma agenda criativamente ativa nos campos cultural e político. O terreno, outrora da União, é parte das terras cedidas para as obras de revitalização da região. Os incomodantes que se mudem, é a posição do Estado. Não tem conversa.

Escrevo esse texto motivada pelos estudos iniciais feitos por algumas pessoas que têm se movido para tornar esses fatos conhecidos pela população. As mudanças pelas quais está passando a cidade afetam à grande maioria dos que aqui vivem, não são fatos isolados e muito menos distantes. Mesmo que o fossem, processos como esse têm efeitos profundos e demandam a participação dos que nela estão envolvidos: demandam diálogo, e não só festividades e campanhas publicitárias. Quem procura apartamento para alugar ou comprar sabe bem o que se passa, ou quem simplesmente é capaz de observar a alucinante quantidade de obras e as alterações em seu entorno.

O Laboratório de Cartografias Insurgentes, organizado pelo coletivo IP:// (Interface Pública), junto com vários outros coletivos, se encontra no momento em fase de “pré-lab”, com o evento maior agendado para o próximo final de semana, no Morro da Conceição. A proposta é dialogar com a população local e todos os interessados, expondo e problematizando essas mudanças, para discutir juntos alternativas, táticas, modos de fazer e significar, por meio de oficinas diversas. Fica o chamado.