ponte

uma cidade que começa com uma ponte
ligando lugar nenhum a lugar nenhum:
um monumento ao espaço.

ponte venerada por ser matéria; veneração ao concreto.

escavadeiras como veículo “que torna o sonho possível”. é como se a decisão de um fosse de muitos, mas não.

vilarejo pacato com síndrome de auto-depreciação, alumínio.

terras férteis e de bom grado, mas não, escrutínio, quero ser grande, quero ser maior, quero ser super que é para não ter medo, coisificar, tornar planas as montanhas, construir teleféricos inertes, casas sobrepostas – que chique, os arranha-céus!

para onde foram os novelos, os sem medo que tomavam banho de rio até mais tarde, todas as coisas nulas (porque desprovidas de unidade material). valor!

são tão etéreos quanto nossas noites bebum, sentimento construído porque vontade, publicitárias vontades, aspecto vão de um supremo que não acontece.

bebemos pois a vida é curta e viver é ter força de trabalho incessante, até ver o pôr-do-sol no fim do dia; trabalhar mais, morrer do coração mas não deixar o serviço feito em cima da mesa. o lucro, meu caro, o lucro não é teu, ele é sempre de outrem, outra pessoa, aquela mesma que não dá valor pro teu ônibus ou para as tuas horas livres porque, bem, elxs têm o seu táxi, a sua boa comida, seu apartamento caríssimo em bairro nobre e toda a pompa. eles querem o serviço feito. e de boa vontade, porque tem tanta gente querendo lá fora..

aí você lembra da ponte, sim, a ponte! e não da árvore dócil da sua infância, que caiu num vendaval, dia de chuva furiosa, e tombou no chão.

a ponte é a matéria terrestre, legítima imperatriz do asfalto.. ops, se tornou. você nem lembra mais qual a origem ou o fim do processo, você não tem astúcia, foi se perdendo aos poucos, nos anos que se passaram e foram convertendo, sem que você sentisse, sua sensibilidade em automatismo, docilizando teu corpo e teu cérebro sem que percebesse, até que fosse só isso, corpo e cérebro, mais corpo que cérebro talvez, matéria pura, alheia de si, sem fluxo, sem devaneio.

porque o sangue correndo nas veias era também o teu chão, teu sentimento e pulsão em natureza mais que cíclica, veloz, modulável, rítmica. a pulsão que te fazia ou faria andar foi transformada em valor útil de mercado, tempo, vendido aos outros por um pouco de sossego, expectativa, comida, camisa e filhos, sem que pudesse notar o que acontecia.

teu sangue, meu caro, vale mais que a ponte. teu sossego é um devaneio à beira do rio. antes de virar canal, poluição, ponte.

postulados de trânsito: afonso pena, no meio do trajeto

chego sobre rodas, ponho os pés na praça

pontos a favor em uma cidade última. parar de repetir monumentos.

o que fazer com as histórias das gentes todas que habitam, como seguem seu ritmo diário, interrompido por fachadas de obras, tristezas, demolições, ruas sem sentido, gente sem ruas, gente sem mala para carregar por aí.

aceitar mudanças. o que é possível de fazer para que justiças se efetivem nós faremos, mas é fato que há tanto e tão que é feito sem consentimento (das gentes que habitam) e que, ainda de tudo, desejam que fiquem contentes.

criam mídia brinquedinho, todo tipo de propaganda, que olhos um pouco mais sérios (e nem precisa ser muito) já tiram de campo. só que o campo insiste, é poderoso e tem lugar. convive-se. como é que convive.

adaptação e derivas noturnas pelo bairro trocado, que por vezes encontram medo, noutras simplesmente nada, ventinho. muito grato fica meu verão com seu ventinho, tijuca.

um método de conhecimento: primeiro, tem que andar de ônibus. a pé, de ônibus, de trem, de metrô, de carro, de moto, de bicicleta. desses, os principais são os pés, para mapear os arredores mais próximos, conhecer a padaria, a loja de material de construção. o segundo muito útil é bicicleta, para poder ir a porções mais largas do lugar e por exemplo descobrir uma pracinha charmosa, um supermercado maior, até o lugar onde tem mato e escola de artes. conversar com as pessoas – eu não sou daqui – e se apresenta.

andar de ônibus é importante (se contraposto a meios como carro ou metrô, fique claro, porque de fato os monstrengos engolem a cidade! eles são a cidade, aí é que está) porque deles se vê o trajeto, o meio do caminho entre um lugar e outro. entende por que é que é longe, por onde tem que passar, as ruas sujas ou pretas, o sambódromo. é louco que haja uma cidade com tantos viadutos e contusões, mas há! e muitas, com muito mais. esgoto e terras sujas temos de monte. como é que pode entender o asfalto que se instala nas terras férteis e perfumadas da serra, eu não sei. lá só é bonito porque a estrada é de terra, passa pouco carro, as árvores ainda estão em pé. os vizinhos se visitam e dão carona tranquilamente. e mesmo assim a cidade cresce, quer crescer, copiar nossos industrialismos importados, não vejo motivo.

o que é curioso do ônibus é que ali se encontram dois ambientes contrapostos – interior e exterior – e um vê ao outro. um ambiente (dentro) é quase tão público quanto o de fora. tudo bem, mas assim é o metrô, que com sua alta voltagem passa batido das leis de trânsito. é um corredor. só que no metrô não há um fora. é primo distante do avião. a sensação de trânsito – de percurso, vivência do caminho, distância – quase se anula nesse dentro/fora que não transparece.

a bicicleta é o meio máximo de euforia que um cidadão pode chegar, sem gastar um tostão. viajante que se arrisca a meio-mistério, tem turbinas próprias: um mecanismo simples e seu próprio corpo. atravessa montanhas se for persistente. a vida urbana tem seus afagos, e um dos mais subestimados é o potencial do ciclista. carros são da ordem do não fazer esforço, de monstros-máquinas, de posse. até mesmo de segurança, porque isola. há carros que não fazem nenhum sentido de serem tão grandes, soltar tanta fumaça. sem vento no rosto, sem mexer as pernas. não raro ignoram o ciclista como se ele não pudesse estar ali. quanto a isso, suponho que deveríamos difundir melhor algumas ideias básicas de convivência: na rua cabe eu e cabe você. a 1,5m de distância, para não haja feridos.

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dois meses sem bicicleta, com medo do asfalto e do túnel que tem goteiras. irritação contínua com homens que, por puro hábito, só pensam em perpetuar a espécie. você desce da bicicleta e pede informação, te olham de cima a baixo. princesa. deseducação obtusa, delegação. insulto. queria ter um caralho bem grande para bater na cabeça desses homens todos. mas sim, sei, o processo é outro.

daí que peguei a bicicleta e fui conhecer a praça afonso pena, de perto. antes, só via no trajeto da janela do ônibus. me parecia simpática. decisão, uma regra: pegar a bicicleta, ir até em casa. parar no caminho, pisar na praça. tentativa de entender o percurso, aprender o nome das ruas, somar com mais um rosto entre os passantes.

escolho uma loja (a cidade nada mais é que um conglomerado de lojas, e ônibus). pizzaria, tem cara de popular, vende fatia. ponto. muito mais barata que qualquer uma das que tem perto de casa. no interior, só vejo velhinhos (uns 3 ou 4) que me estranham a presença, mais uma família com crianças e os funcionários do local (todos homens). assistem televisão. a pizza é boa, marguerita, servida na mesa, com catchup. compro água no bar do lado cujo balconista me diz: todos os caminhos aqui te levam à rua que você procura. que loucura de fácil, não pode ser.

a cidade dos megaeventos: visibilidades

Essa cidade não te pertence mais. O prefeito mudou as regras, seu bairro ficou distante e há um plano multimilionário já em curso, que começa a mostrar suas garras e destruições. A lógica que vigora é a da substituição – do problema pela maquiagem, sustentada pela propaganda da prosperidade.

O clima de euforia com a perspectiva da vinda de pelo menos dois megaeventos à cidade do Rio de Janeiro – a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016 – tem motivado uma enorme especulação imobiliária, expulsando gradativamente os moradores da cidade para bairros cada vez mais distantes. Numa cidade já conhecida por suas alarmantes diferenças sociais, cujos pontos turísticos mais conhecidos se localizam na área entre a Zona Sul e o Centro, mesma região que concentra comunidades lá presentes há décadas, um projeto de revitalização deveria ter como prioridade o fornecimento de estrutura necessária para os moradores que nela vivem. Isso seria o mínimo. Os planos das parcerias público-privadas firmadas para tal revitalização do terreno, que trazem como seu maior expoente o projeto do Porto Maravilha – a revitalização da Zona Portuária do Rio de Janeiro – têm explicitamente como objetivo aumentar as atrações turísticas na cidade que já se encarrega de acumular todos os clichês brasileiros vendidos lá fora, tratando seus moradores como meros empecilhos para tal empreendimento. Para adivinhar quais os beneficiados, é só pensar nos empresários abastados de nomes mais conhecidos, que viabilizam os empreendimentos mediante a cessão de terras e facilidades pelo governo.

Remoções, desalojamentos, casas que amanhecem marcadas para serem removidas do dia para a noite tal como a marca nazista – mas é a Secretaria Municipal de Habitação! – são os mais alarmantes e evidentes efeitos colaterais previstos por essas reformas. Outras cidades do mundo passaram por processos semelhantes de reestruturação e obras de caráter permanente para abrigar as Olimpíadas, gerando impactos para a população. Mas o que sempre se esquece de levar em conta quando são exportados modelos bonitos e bem apresentados do exterior é o contexto local. Quais ganhos essas obras irão trazer para os moradores da Zona Portuária, por décadas abandonada e esperando receber atenção do Estado? Quando essa enfim chega, é para abrigar os novos usuários (mais que habitantes) da área, obviamente mais abastados financeiramente e muitas vezes visitantes de passagem, expulsando os antigos.

Se engana quem acredita que as remoções que vêm ocorrendo pela cidade se concentram nas ditas “áreas de risco” – ou uma casa fincada no topo do Morro da Providência há aproximadamente cem anos estava em área de risco, e só notaram agora? Não seria mais coerente reconhecer que as ameaças de remoção se direcionam a habitações indesejadas, por estarem na rota traçada pelo projeto de revitalização sem nenhuma participação da população? Cabe dizer ainda que, ao que os fatores indicam, aqueles que não forem expulsos por processos mais explícitos como esses, poderão o ser futuramente pela especulação imobiliária trazida com a euforia pela trasformações na cidade, que traz consigo a valorização do terreno.

Ao caminhar pela Av. Rodrigues Alves no último domingo, partindo da Praça Mauá em direção à rodoviária, o cenário era alegórico de tão discrepante: de um lado, em dois armazéns do Cais do Porto na altura do Pier Mauá acontecia a Art Rio – a primeira edição da feira internacional de arte do Rio de Janeiro, com seus estandes lotados entre turistas e possíveis compradores, alguns sentados em confortáveis sofás sorvendo espumante. Não é a primeira vez que um evento desse tipo acontece no local, por certo. Mas, em tempos em que a ocupação da antiga fábrica de chocolates Bhering por artistas que usam o espaço como seus ateliês é utilizada como parte da campanha do Porto Maravilha como pioneira na revitalização da área, a ocorrência da feira é simbólica, marcando talvez uma posição que certamente não todos os artistas ali presentes gostariam de ocupar.

A Av. Rodrigues Alves tem a visão do céu cortada pelo viaduto da Perimetral, que agora se tornará uma via subterrânea – reforma ainda ancorada prioritariamente no transporte rodoviário, praga da nossa modernidade local. Do outro lado dela, visitamos a ocupação Flor do Asfalto. Diferente da Bhering, eles se autodenominam um squat, no sentido do movimento global de ocupação de prédios abandonados, e são um grupo com uma agenda criativamente ativa nos campos cultural e político. O terreno, outrora da União, é parte das terras cedidas para as obras de revitalização da região. Os incomodantes que se mudem, é a posição do Estado. Não tem conversa.

Escrevo esse texto motivada pelos estudos iniciais feitos por algumas pessoas que têm se movido para tornar esses fatos conhecidos pela população. As mudanças pelas quais está passando a cidade afetam à grande maioria dos que aqui vivem, não são fatos isolados e muito menos distantes. Mesmo que o fossem, processos como esse têm efeitos profundos e demandam a participação dos que nela estão envolvidos: demandam diálogo, e não só festividades e campanhas publicitárias. Quem procura apartamento para alugar ou comprar sabe bem o que se passa, ou quem simplesmente é capaz de observar a alucinante quantidade de obras e as alterações em seu entorno.

O Laboratório de Cartografias Insurgentes, organizado pelo coletivo IP:// (Interface Pública), junto com vários outros coletivos, se encontra no momento em fase de “pré-lab”, com o evento maior agendado para o próximo final de semana, no Morro da Conceição. A proposta é dialogar com a população local e todos os interessados, expondo e problematizando essas mudanças, para discutir juntos alternativas, táticas, modos de fazer e significar, por meio de oficinas diversas. Fica o chamado.

a gentil e a rua

testemunho de rua do rio, publicado no overmundo no calor das festividades que abriam 2011

Um pré-carnaval manifesto, alegria de rua e exposição de artes. Dois movimentos foram necessários até que eu chegasse às incríveis aberturas da galeria A Gentil Carioca, no Centro do Rio. O primeiro diz respeito a conhecer o circuito e as festas de artes, sempre multicoloridas e abertas às mais diferentes pessoas. Não sei se foram os muitos anos frequentando noites de rock e algumas de eletrônica pela vida que trouxeram esses pensamentos, mas a mim esses eventos se assemelham a algo como um mundo paralelo. No que todos os outros campos buscam uma espécie de norma ou padrão que unifique a “cena”, o paradigma dominante nas artes parece ser da ordem da variação e do diferente, permitindo a uns e outros apresentarem-se quase ao modo que desejarem.

O outro movimento se relaciona com o espaço da cidade e o aderir às cotidianas celebrações de rua. É de fato muito próprio da cultura local reunir-se nas calçadas e ambientes públicos, mesmo que nos últimos tempos as alienígenas iniciativas do choque de ordem, da prefeitura, pretendam coibir a prática. São tão poucas as opções de lugares fechados para sair na cidade que em dias de chuva parecem se extinguir praticamente todas as opções. Claro que as temperaturas elevadas contribuem para hábitos como esse, mas o fenômeno também se relaciona com o estilo de vida impregnado pelos hábitos de praia e com a informalidade que consegue juntar pessoas diferentes num mesmo canto, geralmente pulverizadas na mesma medida que as latas de cerveja.

Sendo assim, as festas da Gentil têm sido, nos últimos tempos, sob um certo ponto de vista, o melhor oásis encontrável nas manifestações festeiras locais. Há outras celebrações de ordem similar, como as tardes promovidas no gramado do Museu de Arte Moderna, mais intensamente em um mês que passou, mas que contam hoje quase constantemente com ensaios da Orquestra Voadora aos domingos. Muitos desses eventos fazem parte do calendário de verão, que impulsiona eventos ao ar livre, gratuitos e que de algum modo se relacionam com o carnaval que se aproxima. Mal começava o ano e já foi decretada a abertura não-oficial do carnaval de rua carioca, nas imediações da praça XV, no Centro…

As festas da Gentil podem vistas num sentido culturalmente amplo: são celebrações feitas na rua, agregando convidados, transeuntes e afins; mas também relativamente restrito, por se tratarem de eventos do circuito de artes, com toda a fama/tradição elitista que este carrega. Pois uma versão local e aberta de um evento inicialmente específico e restrito como se supõe que seja uma vernissage é produzida com esmero: é bonito de ver o grande fluxo de pessoas passar de um canto ao outro, subir, ver uns trabalhos, beber cerveja na rua, caminhar até o outro centro cultural e literalmente se acabar dançando no meio da rua até por volta de meia-noite. A região é, durante o dia, parte do centro de comércio popular conhecido como Saara, próxima à praça Tiradentes, que por sua vez, carrega uma história construída por teatros e prostitutas.

No último sábado, dia 5 de fevereiro, A Gentil Carioca, o Centro Cultural Hélio Oiticica e suas imediações sediaram a sétima edição do evento Abre Alas, exposição coletiva que dessa vez mais que nunca transbordou o espaço de uma única galeria de arte. Em tudo, foi mais especial ainda que de costume: todo o espaço da escada que dá acesso à Gentil foi pintado de dourado, com purpurinas espalhadas pelo chão. Da performance do artista Siri com seus tambores eletrônicos ao desfile organizado por Bruna Lobo e Liza Machado, intitulado “Acervo de Afetos”, todos os trabalhos expostos emitiam uma espécie de brilho e exuberância. As pessoas circulavam com as roupas no meio de todos, não havia separação, palco, nada. Como se fizesse sentido separar um ou outro na mistura. O bonito estava ali, em ver e fazer parte daquilo tudo.

dan deacon e outros experimentalismos contemporâneos

parte 3/3 de artigo apresentado no encontro de música e mídia: e(st)éticas do som, na usp, em 2009

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Um devaneio eletrizante que perpassa diversas esferas do ambiente sonoro, atravessa camadas auditivas as mais amplas, gera imagens multicoloridas de uma festa infantil de outro mundo e revela, entremeada, uma calma débil aliada a uma alegria intensa. A música de Dan Deacon, artista norte-americano fixado em Baltimore, EUA e com dois discos lançados oficialmente – mais alguns distribuídos em CD-R e disponíveis em seu website – converte boa parte do universo pop midiático que habita a hiperestimulada vida urbana em canções que são viagens alucinantes sobre a mais palpável das realidades sonoras. E, imerso em uma oscilação entre o som quieto macio de ouvir à mais acelerada saturação de barulhos cacofônicos impensáveis, consegue extrair uma beleza extrema do conjunto.

Ao vivo, ao menos na turnê de Spiderman of the Rings, ele se misturava com o público ao tocar seus diversos brinquedos, teclados e traquitanas eletrônicas. Bromst, seu mais recente álbum, traz como elementos novos a companhia de uma banda de 15 músicos, para a performance que até então se resumia ao artista solo, e juntamente com isso algumas sonoridades orgânicas que se misturam aos samples, barulhos eletrônicos os mais variados, teclados e vocoders. Deacon diz em entrevistas que neste álbum os sons são metade orgânicos, metade eletrônicos, e que os primeiros se manifestam mais evidentemente no uso de três baterias simultâneas (!).

Com formação musical erudita e eletroacústica, Deacon torna-se aos poucos conhecido por elevar aos últimos níveis de intensidade, criativamente, sons reconhecíveis na experiência urbana, tais como os oriundos de ambientes midiáticos, como desenhos animados; barulhos de brinquedos e ruídos saturados, em excesso, se aproximando de bandas atribuídas ao gênero noise, como Fuck Buttons ou MoHa!, mas de forma muito mais divertida, mais associável ao Passion Pit, em alterações vocais agudas e alegria festiva. Deacon também faz uso de frequentes alterações no tempo das músicas, provocando quem ouve tanto de forma instigante quanto desafiadora para a interpretação do corpo para os ritmos (que em última instância seria a dança, mas que por vezes mesmo um mero tamborilar dos dedos se torna inevitável).

Talvez o artista mais conhecido na música eletrônica recente, por alterar os tempos das músicas e jogar com batidas e ruídos, não raro em excesso, seja Aphex Twin. Suas batidas mais nervosas – aquelas que mantêm estabelecida o tempo todo uma ligação oscilante com o drum’n’bass – são verdadeiros desafios sonoros, playground para os ouvidos mais abertos. E, mesmo em seus discos ambient, mais calmos, a marca se verifica, em faixas talvez inclassificáveis (apesar do nome que carregam), ou, também, podendo ser adotadas pelo estranho rótulo de IDM (intelligent dance music – não seria então do que falamos aqui todo o tempo?).

Murray Schafer observa que o que mais se ouve à época em que escreveu The Soundscape, em fins dos anos 70, é a música de épocas anteriores, menos acelerada, que se contraporia ao chamado future shock. Ora, Deacon é identificado precisamente com esse gênero, hoje relacionado também a outras bandas e artistas de Baltimore. E, se por um lado ainda se ouve maciçamente músicas de tempos passados, vide a eternamente imutável programação das rádios e as observações de Hans Ulrich Gumbrecht ao falar no “presente em constante expansão”, artistas que apontam mudanças e ressignificações a partir da manipulação de sons existentes confirmam cada vez mais a coexistência possível de sons e modos de ouvir que podem parecer extremamente díspares, mas que de fato estão em perfeita consonância. Não só histórico-temporal, que seria inevitável, mas também por estarem todas essas formas musicais vivas agora, no presente, em diálogo com o que entra em sai das janelas das residências e demais estabelecimentos do meio urbano.

Com um ar irresistível de céu branco de outono, Daedelus, com um pé no dubstep e outro na IDM, traz reminiscências de músicas de pista de outras épocas e faz uso constante de samples. Seu trabalho é um passeio sonoro por rádios e cidades, música pop e boates. Eventualmente ouvem-se vocais, que podem tanto ilustrar discotecas dos anos 50 ou dos dias atuais, mas também ser conversas entreouvidas em alguma esquina ou no interior de uma casa de família. Caracteristicamente, ele se distingue por incorporar diferentes espaços, tanto ao assimilar sons quanto no ato de levar sua performance para o topo de um edifício, interferindo nos sons da paisagem urbana; interfaces, como o uso de monomes, além do laptop, para manipular os sons ao vivo, e formas de fazer, em incursões por práticas como o circuit bending, que são intervenções em instrumentos eletrônicos, muitos infantis, levando-os a produzir sons inusitados e não previstos, mas que de alguma forma sempre estiveram ali enquanto possibilidades.

Com suas músicas cria ambientes oscilantes. Os ouvintes deixa frequentemente desconcertados, ora por chamar à dança, ora por adentrar mais profundamente espaços de experimentações, aos quais só cabe ouvir e se deixar levar pelas vibrações tão particulares. No último disco, Love to Make Music to, 2008, algo parece ter sido perdido, talvez por incorporar nele as cinco faixas que já estavam no brilhante EP Fair Weather Friends, de 2007, e este, conciso e preciso, parece bastar-se lindamente, mais ainda se posto no modo repeat.

Guillermo Scott Herren, se em seus primeiros discos ainda pisava firme no terreno do hip-hop, ao longo da carreira foi elevando os pés pelos ares e desmontando vagarosamente, não sem ritmo, uma a uma as suas referências. Produtor musical de múltiplos projetos e cujo principal é o Prefuse 73, também se identifica com as práticas conhecidas como experimentais e que fazem uso constante de colagens. Ele tem uma forma muito própria de misturar sons – muitos deles orgânicos – e beats eletrônicos em camadas marcadas pela imprevisibilidade, de um modo que lembra artistas como Four Tet e alguns outros daqueles rotulados como folktronica, mas que em muito (e há muito) transbordam as barreiras de qualquer gênero. É música oriunda diretamente da experiência multiatenta de quem caminha pela cidade capturando fragmentos de músicas e vozes embaladas pelo soar dos carros e pelo silêncio que emerge para além da parede sonora que esses e outros ruídos formam.

Em todos os casos citados neste artigo, trata-se de música que vem dos espaços (multimidiáticos; urbanos) e vai para os espaços: Dan Deacon no meio da multidão, Daedelus em locações inusitadas tais como o topo de um edifício. Se no trabalho de Deacon se observa uma intensa saturação de sons que convocam à memória de outros ambientes e outros usos, tais como desenhos animados, Daedelus e Prefuse 73 levam os breakbeats e seus desdobramentos às últimas consequências, utilizando instrumentos e interfaces pouco convencionais e envolvendo-se em frequentes parcerias com outros músicos, o que é comum entre os artistas de música eletrônica.

Seria talvez abominável afirmar, partindo da postura muito clara** que assume Murray Schafer, que tais peças sonoras possam ter seu referente no ambiente urbano de modo tão próximo, e ainda assim soarem bonitas. Mais ainda, há faixas do Prefuse 73 (qualquer uma das canções de Sleeping on Saturday and Sunday Afternoons, de 2003) ou do Four Tet (“You Were There With Me”, de Everything Ecstatic, 2005) que remetem à calma mitológica atribuída às paisagens idílicas dos campos rurais. Em versão contemporânea e de inspiração onírica, pode-se dizer.

O projeto sonoro que Murray Schafer lidera desde fins dos anos 60 e início dos 70 até hoje, primeiramente intitulado World Soundscape Project e posteriormente reestruturado como World Forum for Acoustic Ecology, a partir de 1993, pretende promover uma espécie de ecologia dos ambientes sonoros. Ele carrega consigo por um lado potência e importância muito grandes face às tendências do mercado e possíveis deslizes contemporâneos, no que diz respeito ao sons que se ouve nas grandes metrópoles. Os ambientes estão cada vez mais contaminados pela Musak, assim como por imagens igualmente descartáveis e abundantes, que primam pelo excesso de estímulos e sobra pouco ou nenhum silêncio.

Ora, acerca disso, diria John Cage que o silêncio hoje, na maior parte dos lugares, é o próprio som do tráfego dos carros. Porque se tais práticas eram novidade nos primórdios da modernidade e da sucessiva substituição dos meios de transporte por máquinas ruidosas***, ou com o advento do rádio, ou ainda com o boom tecnológico pós-II Guerra, os jovens de hoje já nasceram imersos neste ambiente. E então diria-se que aparelhos eletrônicos em geral, assim como imagens e sons que atravessam a experiência urbana já estão de alguma forma assimilados nos ouvidos dessa geração, mas ainda assim o argumento não seria suficiente para justificar. Pois se há décadas que a música eletrônica existe, e há muito mais tempo estão presentes no cotidiano os ruídos que foram um dia inspiração para a musique concrète, Stockhausen ou John Cage, clamar por um certo retorno idílico às origens, a uma audição com poucas interferências e ao silêncio dos terrenos rurais soa de fato um tanto ingênuo. E sequer é isso que está em questão aqui: estando uma vez assimilada a experiência urbana tal como ela se apresenta hoje, quais sons e diferentes percepções auditivas se pode extrair dela? O que esse mix de referências pode trazer para as turntables, laptops, monomes e headphones, combinados e justapostos às mais criativas variações de instrumentos musicais, enriquecendo a própria experiência auditiva de seus ouvintes?

Sons quietos podem surgir, também. Algumas variações de silêncio já foram evocadas, assim como diferentes níveis de saturação sonora, engenhosamente trabalhados e saturados de referências pop. O projeto de Murray Schafer possui sim um trunfo, que é chamar a atenção justamente para o que se ouve em função dos ouvidos humanos, que já há algum tempo vêm deixando de ser o parâmetro medidor de limites em função de alternativas mais lucrativas ou com roupagem mais modernosa. Pensar a experiência urbana como interessante e enriquecedora para os ouvidos, ainda que lidando com suas díspares variações (em intensidade, ritmo, tom ou qualquer outro aspecto), permite afinal aliar tanto uma recepção calorosa às criativas manifestações contemporâneas no campo da música, ou de eventos musicais em espaços entre pessoas, quanto uma atenção devida (e sem ela, que é contexto, ficaria difícil imaginar como seria o trabalho de alguns artistas recentes) aos espaços sonoros habitados por pessoas, que buscam sim alguma espécie de clariaudiência, mas que ao mesmo tempo articulam o repertório recebido e o processam de múltiplas maneiras.

** “Parece que a paisagem sonora do mundo atingiu um ápice de vulgaridade no nosso tempo, e muitos especialistas previram uma surdez universal como a última consequência caso o problema não possa ser rapidamente controlado.” (MURRAY SCHAFER, 1977:3).

*** Ver SINGER in: CHARNEY e R. SCHWARTZ, Vanessa, 2004:102.

Referências:

Barthelmes, Barbara. 2002.“Music and the city”. In: BRAUN, Hans-Joachim (org.). Music and technology in the twentieth century. Baltimore and London: John Hopkins University Press, 97-105.

Gardnier, Ruy. 2009. “Dan Deacon – Bromst (2009; Carpark, EUA)”. Camarilha dos Quatro.

Gumbrecht, Hans Ulrich. 1998. Modernização dos Sentidos. São Paulo: Editora 34.

LaBelle, Brandon. 2006. Background Noise: perspectives on sound art. New York: Continuum.

Schafer, R. Murray. 1994 (1977). The Soundscape: Our Sonic Environment and the tuning of the world. Vermont: Rochester.

Singer, Ben. 2004. “Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular”. In: CHARNEY, Leo e R. SCHWARTZ, Vanessa (org.). O Cinema e a Invenção da Vida Moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 95-123.

Taylor, Timothy. 2001. Strange Sounds: Music, Technology and Culture. New York: Routledge.

Thebérge, Paul. 1997. Any Sound You Can Imagine: Making Music/Consuming Technology. Hanover and London: Wesleyan University Press.

da relação do som com a tecnologia e a vida urbana

parte 2/3 de artigo apresentado no encontro de música e mídia: e(st)éticas do som, na usp, em 2009

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Barbara Barthelmes, em “Music and the City”, fala sobre as maneiras como os sons apreendidos na experiência da cidade ecoam e influenciam peças artísticas. Nesse âmbito, ela cita desde os pintores futuristas do começo do século XX, tais como Marinetti, Boccioni (“Street noise enters the house”, 1911) e Russolo, que falava da rua como microcosmo da cidade, até músicos como Charpentier, Delius e Edward Elgar, que tinham a cidade como objeto de comtemplação (contraposto aos pintores impressionistas, que miravam as paisagens da natureza). Entretanto, pode-se dizer que as contribuições musicais que lidam com as paisagens sonoras urbanas das cidades têm em seu favor um aspecto temporal, uma que vez que a música ocupa, mais que o espaço, o tempo, podendo expressar as variações de eventos ao longo de seu curso. Aqui cabe falar sobretudo em intensidade, mas também em fluxo, densidade. E, de alguma forma, as possibilidades abertas pela reprodutibilidade técnica dos sons acabam por ocupar o eixo central que tornou possíveis tantas experimentações.

Na verdade, não foram só as mídias que vieram possibilitar a reprodutibilidade, transmissão e gravação dos sons. A própria manipulação dos ruídos apreendidos através de sintetizadores e posteriormente das tecnologias eletrônicas transformaram substancialmente a forma como som e música seriam ouvidos, interpretados e apreendidos nas décadas seguintes. Os anos 80 do século passado foram cruciais para que isso se consolidasse, e não é à toa que explodiram tantas bandas que faziam fusão entre rock e ritmos eletrônicos, remetendo diretamente a “Psyché Rock” de Pierre Henry, e na década seguinte ocorreu a grande explosão das raves e da cultura da música eletrônica como um todo.

Paul Théberge argumenta que “a ideia de ‘som’ aparenta ser um conceito contemporâneo que dificilmente poderia ter sido mantido em uma era que não possuísse meios eletrônicos de reprodução” (THÉBERGE, 1997:191). Taylor já apontava para o agenciamento humano em face da tecnologia como questão central, uma vez que era precisamente esse o ponto da discussão e crítica que se fazia sobre a musique concrète. “Novamente”, Théberge continua algumas páginas adiante,

a existência prévia do efeito sonoro é um fator crucial; esses efeitos são ‘descobertos’ quase por acidente, tanto quanto criados pelo usuário individual. Decisões feitas por times de engenheiros nos estágios preliminares do design de um dispositivo de processamento podem portanto ter um impacto profundo não só na competência em se fazer uso desse dispositivo, mas também nas práticas e conceitos musicais/composicionais. (THÉBERGE, 1991:199-200)

A prática da colagem de sons, a partir do uso de samples se tornou comum, assim, em bandas que emergiram a partir dos anos 80, e mais frequentemente em gêneros direcionados às pistas, além do hip-hop. Hoje, apesar da constante batalha pelo acesso a músicas ou trechos de músicas que se trava na internet, para que o alto custo dos direitos autorais não comprometa a viabilidade das produções, mais do que nunca essa estética de apropriação e ressignificação faz sentido não só no campo da música, mas das artes como um todo.

A estética do som é inevitavelmente relacionada ao espaço que ela ocupa, seja em relação ao ambiente multirreferencial externo, seja em relação a espaços fechados. E, na era da reprodutibilidade técnica e mashups, as palavras de R. Murray Schafer no livro The Soundscape: Our Sonic Environment and the tuning of the world sobre espaços acústicos e seu tempo cabem:

A forma e o tamanho dos espaços interiores irão sempre controlar o andamento das atividades dentro deles. Novamente, isso pode ser ilustrado em referência à música. A velocidade de modulação das igrejas góticas ou da renascença é lenta; a dos séculos XIX e XX é muito mais rápida porque ela foi criada para salas menores e estúdios de transmissão. (…) O prédio comercial contemporâneo, que também consiste em pequenos e secos espaços, é similar ao frenesi do trabalho moderno, e assim contrasta vividamente com a temporalidade lenta da missa ou de qualquer ritual pensado para uma caverna ou cripta. Mais uma vez, os efeitos atenuados da música recente parecem sugerir um desejo de desaceleração do ritmo das coisas, exatamente como as músicas de Stravinsky e Webern uma vez prenunciaram a prática empresarial moderna. (MURRAY SCHAFER, 1977:219)

Ou seja, como afirma Murray Schafer em outro trecho, o papel da arquitetura é crucial tanto como elemento que interfere na percepção sonora, e em geral ela é pensada levando em conta esse aspecto. Isso pode ser feito na direção de aproveitar as vantagens que os espaços podem oferecer em termos de apreciação estética, criando experiências realmente belas dentro de catedrais ou mesmo edifícios, mas também pode pretender simplesmente suprimir os ruídos dos ambientes externo e interno e preenchê-los com formas sonoras menos edificantes para os ouvidos. E essa última tem sido a tendência contemporânea. Diz ele:

A arquitetura, assim com a escultura, está na fronteira entre os espaços de visão e som. Dentro e em volta de um edifício existem certos lugares que funcionam como pontos de ação tanto visuais quanto acústicos. (…) Em um mundo quieto, a acústica de edifícios floresceu como uma arte de invenção sônica. Em um mundo barulhento ela se transforma meramente na habilidade de silenciar ruídos internos e isolar incursões do turbulento ambiente além-muros. (MURRAY SCHAFER, 1977:222)

Ainda tendo em vista o espaço, Barthelmes carrega em seu texto uma boa contribuição de dois sociólogos, Hans-Peter Meier-Dallach e Hanna Meier, que falam da cidade como organismo social:

Eles começam com a hipótese de que sons e a paisagem sonora urbana funcionam como signos e se referem a uma relação específica entre as pessoas e o espaço urbano no qual elas vivem. “O som da cidade contém imagens do espaço social e seus ritmos, de acordo com os quais se move a sociedade”. (MEIER-DALLACH e MEIER, 1992:416, apud BARTHELMES, in: BRAUN, 2002:97)

E as sociedades contemporâneas empregam frequentemente a ressignificação das heranças culturais deixadas pelas décadas passadas, as quais comprometem as paisagens sonoras das cidades tanto quanto seus hábitos. Some-se a isso os ruídos provocados pelos carros e demais máquinas, acidental ou intencionalmente, que reverberam nos projetos arquitetônicos os mais diversos e ressoam nos ouvidos dos seus habitantes, somados aos sons de televisões e outros dispositivos midiáticos, e tem-se um vasto repertório de sons com que trabalhar. Melhor dizendo, cada vez mais eles são menos dissociáveis da vida enquanto experiência situada em tempo e espaços.

da relação entre som e espaço e o contexto do pós-guerra

parte 1/3 de artigo apresentado no encontro de música e mídia: e(st)éticas do som, na usp, em 2009

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Fragmentado ou contínuo, dentro ou fora e em diferentes tonalidades, o som reverbera nos espaços cotidianamente. E a relação do espaço com o som é diferente da que este estabelece com as imagens, que estão na outra margem mais evidente dos meios perceptivos. São, efetivamente, meios tanto de percepção quanto de criação, e, portanto, os sons que são absorvidos ao longo da vida nas cidades contribuem para caracterizar aquilo que se chama experiência urbana, junto com outros aspectos que irão compor.

Brandon LaBelle, em Background Noise, diz que, diferentemente da imagem, “o som está sempre em mais de um lugar”. (LABELLE, 2006:x). E completa:

O som, deste modo, age com e através do espaço: navega geograficamente, reverbera acusticamente e estrutura socialmente; o som amplifica os silêncios, contorce, distorce e atinge a arquitetura; escapa salas, faz paredes vibrarem, perturba conversas; ele expande e contrai o espaço acumulando reverberações, reposicionando o espaço para além dele mesmo, carregando-o em sua onda, e habitando sempre mais de um lugar; ele desloca; como os alto-falantes de um carro explodindo em música alta, o som ultrapassa barreiras. Ele é ilimitado por um lado, e site-specific por outro. (LABELLE, 2006:xi)

Este trecho faz lembrar uma entrevista dada por Stockhausen em 1972, na qual ele fala sobre a possibilidade de apreensão dos sons que ouvimos no ambiente e da transformação deles através de alterações no seu tempo, comprimindo-os ou expandindo-os; enfim, pode-se manipular os sons apreendidos na cidade e nos espaços e ressignificá-los, organizando-os e tornando-os composições.

Alguns artistas têm de fato feito experimentações nesse sentido, e, dentre esses, são sempre muito lembrados Pierre Schaeffer e Pierre Henry da musique concrète francesa, que desde o fim dos anos 40, mas mais enfaticamente a partir das décadas de 50 e 60 do século XX, vêm produzindo peças sonoras que desafiam limites do que até então se conhecia por música, incorporando a ela diversos sons apreendidos do ambiente. O contexto do pós-II Guerra mundial favoreceu experimentações nesse sentido, porque, com o boom tecnológico que adentrava a vida das pessoas, surgiram também novidades como sintetizadores e novas técnicas de gravação e reprodução, como as fitas magnéticas. A música eletrônica dava então seus primeiros passos, sendo Henry, que fazia uso de loops e samples e suas obras, posteriormente reconhecido por DJs e produtores de techno, drum’n’bass e outros gêneros como seu precursor em muitos sentidos.

As composições de musique concrète foram das primeiras a incluir ruídos diversos capturados no ambiente, misturados a barulhos, vozes e instrumentos musicais dispostos em estruturas que exploravam, dentre outras variações, a espacialização das peças sonoras, como se verifica em “Symphonie pour un Homme Seul”, de 1951, de Schaeffer e Henry.

Pierre Schaeffer, diferentemente de Henry, não seguiu produzindo música depois da dissolução do movimento conhecido por musique concrète, cujo manifesto aponta para a observação de cada som em sua particularidade. Através do distanciamento desse som de seu contexto original, o artista poderia rearranjá-lo e reordená-lo de modo a torná-lo composição. Ainda assim, críticos* da musique concrète apontavam como ponto fraco desta o fato de não alterarem significativamente a natureza dos sons, questionando assim até que ponto os músicos teriam real controle de suas obras. De qualquer modo, ficou claro, como aponta Timothy Taylor em “Post-war Music and the Technoscientific Imaginary” (de Strange Sounds, 2001) que a Schaeffer interessava mais os experimentalismos em música e sonoridades, influenciando em grande parte o que hoje é chamado de sound art, enquanto que Henry nunca perdeu de vista os potenciais do som enquanto forma de linguagem e comunicação, mais que de prática artística.

John Cage, outro importante artista a se destacar no pós-guerra, pesquisou amplamente formas de audição, ruído e composição; atuou junto ao movimento Fluxus nos anos 60 e expandiu suas práticas para os dominíos da escrita – crítica ou poética – e para as artes visuais e happenings, junto a outros artistas tais como Allan Kaprow. O que interessava a ele era procurar no ambiente, enquanto espaço auditivo, uma estrutura musical não-intencional. Contexto e audiência, portanto, desempenham papéis determinantes em seu trabalho, pois, ao interferirem no ambiente, transformam-se em material de composição.

Ao comparar os artistas da musique concrète a Cage, LaBelle diz que

A diferença entre o objeto material de Cage e o objeto sonoro de Schaeffer é uma diferença de contexto e procedimento: para Cage, o mundo em si paira dentro e por trás do trabalho musical, como uma presença material e espaço de liberdade individual, no qual a vida comum toma forma; em contraste, para Schaeffer o objeto sonoro em si oferece o potencial de realização de uma experiência musical alterada e esclarecida, determinada por uma paleta expandida de detalhes sonoros exposta através de manipulações eletrônicas. (LABELLE, 2006:32-33)

A conhecida obra 4’33”, de Cage, é talvez o mais interessante exemplo para ilustrar como, em seu modo de perceber, os ruídos do ambiente interferem e constituem verdadeiramente a composição. E, coerentemente, LaBelle completa dizendo que o movimento Fluxus, de uma certa maneira, é sobre percepção. Mais ainda, ele argumenta que tanto a estética musical, relacionada à musique concrète, quanto a observação das sonoridades do ambiente, de Cage, são conceitos possíveis de se complementar. Em ambos pode-se notar interpretações e modos de lidar com os sons encontrados no mundo. Assim sendo, em última instância, todas essas interferências, seja no caso do acoustic design, instalações sonoras ou quaisquer obras que pensam a relação do espaço com o som, todas elas necessariamente irão se relacionar com a arquitetura, essa que permeia o espaço urbano.

* Taylor cita especificamente Pierre Boulez, músico francês contemporâneo a eles e ainda vivo, além de artistas da Elektronische Musik alemã, que compunham canções puramente eletrônicas a partir de sons sintetizados.