dan deacon e outros experimentalismos contemporâneos

parte 3/3 de artigo apresentado no encontro de música e mídia: e(st)éticas do som, na usp, em 2009

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Um devaneio eletrizante que perpassa diversas esferas do ambiente sonoro, atravessa camadas auditivas as mais amplas, gera imagens multicoloridas de uma festa infantil de outro mundo e revela, entremeada, uma calma débil aliada a uma alegria intensa. A música de Dan Deacon, artista norte-americano fixado em Baltimore, EUA e com dois discos lançados oficialmente – mais alguns distribuídos em CD-R e disponíveis em seu website – converte boa parte do universo pop midiático que habita a hiperestimulada vida urbana em canções que são viagens alucinantes sobre a mais palpável das realidades sonoras. E, imerso em uma oscilação entre o som quieto macio de ouvir à mais acelerada saturação de barulhos cacofônicos impensáveis, consegue extrair uma beleza extrema do conjunto.

Ao vivo, ao menos na turnê de Spiderman of the Rings, ele se misturava com o público ao tocar seus diversos brinquedos, teclados e traquitanas eletrônicas. Bromst, seu mais recente álbum, traz como elementos novos a companhia de uma banda de 15 músicos, para a performance que até então se resumia ao artista solo, e juntamente com isso algumas sonoridades orgânicas que se misturam aos samples, barulhos eletrônicos os mais variados, teclados e vocoders. Deacon diz em entrevistas que neste álbum os sons são metade orgânicos, metade eletrônicos, e que os primeiros se manifestam mais evidentemente no uso de três baterias simultâneas (!).

Com formação musical erudita e eletroacústica, Deacon torna-se aos poucos conhecido por elevar aos últimos níveis de intensidade, criativamente, sons reconhecíveis na experiência urbana, tais como os oriundos de ambientes midiáticos, como desenhos animados; barulhos de brinquedos e ruídos saturados, em excesso, se aproximando de bandas atribuídas ao gênero noise, como Fuck Buttons ou MoHa!, mas de forma muito mais divertida, mais associável ao Passion Pit, em alterações vocais agudas e alegria festiva. Deacon também faz uso de frequentes alterações no tempo das músicas, provocando quem ouve tanto de forma instigante quanto desafiadora para a interpretação do corpo para os ritmos (que em última instância seria a dança, mas que por vezes mesmo um mero tamborilar dos dedos se torna inevitável).

Talvez o artista mais conhecido na música eletrônica recente, por alterar os tempos das músicas e jogar com batidas e ruídos, não raro em excesso, seja Aphex Twin. Suas batidas mais nervosas – aquelas que mantêm estabelecida o tempo todo uma ligação oscilante com o drum’n’bass – são verdadeiros desafios sonoros, playground para os ouvidos mais abertos. E, mesmo em seus discos ambient, mais calmos, a marca se verifica, em faixas talvez inclassificáveis (apesar do nome que carregam), ou, também, podendo ser adotadas pelo estranho rótulo de IDM (intelligent dance music – não seria então do que falamos aqui todo o tempo?).

Murray Schafer observa que o que mais se ouve à época em que escreveu The Soundscape, em fins dos anos 70, é a música de épocas anteriores, menos acelerada, que se contraporia ao chamado future shock. Ora, Deacon é identificado precisamente com esse gênero, hoje relacionado também a outras bandas e artistas de Baltimore. E, se por um lado ainda se ouve maciçamente músicas de tempos passados, vide a eternamente imutável programação das rádios e as observações de Hans Ulrich Gumbrecht ao falar no “presente em constante expansão”, artistas que apontam mudanças e ressignificações a partir da manipulação de sons existentes confirmam cada vez mais a coexistência possível de sons e modos de ouvir que podem parecer extremamente díspares, mas que de fato estão em perfeita consonância. Não só histórico-temporal, que seria inevitável, mas também por estarem todas essas formas musicais vivas agora, no presente, em diálogo com o que entra em sai das janelas das residências e demais estabelecimentos do meio urbano.

Com um ar irresistível de céu branco de outono, Daedelus, com um pé no dubstep e outro na IDM, traz reminiscências de músicas de pista de outras épocas e faz uso constante de samples. Seu trabalho é um passeio sonoro por rádios e cidades, música pop e boates. Eventualmente ouvem-se vocais, que podem tanto ilustrar discotecas dos anos 50 ou dos dias atuais, mas também ser conversas entreouvidas em alguma esquina ou no interior de uma casa de família. Caracteristicamente, ele se distingue por incorporar diferentes espaços, tanto ao assimilar sons quanto no ato de levar sua performance para o topo de um edifício, interferindo nos sons da paisagem urbana; interfaces, como o uso de monomes, além do laptop, para manipular os sons ao vivo, e formas de fazer, em incursões por práticas como o circuit bending, que são intervenções em instrumentos eletrônicos, muitos infantis, levando-os a produzir sons inusitados e não previstos, mas que de alguma forma sempre estiveram ali enquanto possibilidades.

Com suas músicas cria ambientes oscilantes. Os ouvintes deixa frequentemente desconcertados, ora por chamar à dança, ora por adentrar mais profundamente espaços de experimentações, aos quais só cabe ouvir e se deixar levar pelas vibrações tão particulares. No último disco, Love to Make Music to, 2008, algo parece ter sido perdido, talvez por incorporar nele as cinco faixas que já estavam no brilhante EP Fair Weather Friends, de 2007, e este, conciso e preciso, parece bastar-se lindamente, mais ainda se posto no modo repeat.

Guillermo Scott Herren, se em seus primeiros discos ainda pisava firme no terreno do hip-hop, ao longo da carreira foi elevando os pés pelos ares e desmontando vagarosamente, não sem ritmo, uma a uma as suas referências. Produtor musical de múltiplos projetos e cujo principal é o Prefuse 73, também se identifica com as práticas conhecidas como experimentais e que fazem uso constante de colagens. Ele tem uma forma muito própria de misturar sons – muitos deles orgânicos – e beats eletrônicos em camadas marcadas pela imprevisibilidade, de um modo que lembra artistas como Four Tet e alguns outros daqueles rotulados como folktronica, mas que em muito (e há muito) transbordam as barreiras de qualquer gênero. É música oriunda diretamente da experiência multiatenta de quem caminha pela cidade capturando fragmentos de músicas e vozes embaladas pelo soar dos carros e pelo silêncio que emerge para além da parede sonora que esses e outros ruídos formam.

Em todos os casos citados neste artigo, trata-se de música que vem dos espaços (multimidiáticos; urbanos) e vai para os espaços: Dan Deacon no meio da multidão, Daedelus em locações inusitadas tais como o topo de um edifício. Se no trabalho de Deacon se observa uma intensa saturação de sons que convocam à memória de outros ambientes e outros usos, tais como desenhos animados, Daedelus e Prefuse 73 levam os breakbeats e seus desdobramentos às últimas consequências, utilizando instrumentos e interfaces pouco convencionais e envolvendo-se em frequentes parcerias com outros músicos, o que é comum entre os artistas de música eletrônica.

Seria talvez abominável afirmar, partindo da postura muito clara** que assume Murray Schafer, que tais peças sonoras possam ter seu referente no ambiente urbano de modo tão próximo, e ainda assim soarem bonitas. Mais ainda, há faixas do Prefuse 73 (qualquer uma das canções de Sleeping on Saturday and Sunday Afternoons, de 2003) ou do Four Tet (“You Were There With Me”, de Everything Ecstatic, 2005) que remetem à calma mitológica atribuída às paisagens idílicas dos campos rurais. Em versão contemporânea e de inspiração onírica, pode-se dizer.

O projeto sonoro que Murray Schafer lidera desde fins dos anos 60 e início dos 70 até hoje, primeiramente intitulado World Soundscape Project e posteriormente reestruturado como World Forum for Acoustic Ecology, a partir de 1993, pretende promover uma espécie de ecologia dos ambientes sonoros. Ele carrega consigo por um lado potência e importância muito grandes face às tendências do mercado e possíveis deslizes contemporâneos, no que diz respeito ao sons que se ouve nas grandes metrópoles. Os ambientes estão cada vez mais contaminados pela Musak, assim como por imagens igualmente descartáveis e abundantes, que primam pelo excesso de estímulos e sobra pouco ou nenhum silêncio.

Ora, acerca disso, diria John Cage que o silêncio hoje, na maior parte dos lugares, é o próprio som do tráfego dos carros. Porque se tais práticas eram novidade nos primórdios da modernidade e da sucessiva substituição dos meios de transporte por máquinas ruidosas***, ou com o advento do rádio, ou ainda com o boom tecnológico pós-II Guerra, os jovens de hoje já nasceram imersos neste ambiente. E então diria-se que aparelhos eletrônicos em geral, assim como imagens e sons que atravessam a experiência urbana já estão de alguma forma assimilados nos ouvidos dessa geração, mas ainda assim o argumento não seria suficiente para justificar. Pois se há décadas que a música eletrônica existe, e há muito mais tempo estão presentes no cotidiano os ruídos que foram um dia inspiração para a musique concrète, Stockhausen ou John Cage, clamar por um certo retorno idílico às origens, a uma audição com poucas interferências e ao silêncio dos terrenos rurais soa de fato um tanto ingênuo. E sequer é isso que está em questão aqui: estando uma vez assimilada a experiência urbana tal como ela se apresenta hoje, quais sons e diferentes percepções auditivas se pode extrair dela? O que esse mix de referências pode trazer para as turntables, laptops, monomes e headphones, combinados e justapostos às mais criativas variações de instrumentos musicais, enriquecendo a própria experiência auditiva de seus ouvintes?

Sons quietos podem surgir, também. Algumas variações de silêncio já foram evocadas, assim como diferentes níveis de saturação sonora, engenhosamente trabalhados e saturados de referências pop. O projeto de Murray Schafer possui sim um trunfo, que é chamar a atenção justamente para o que se ouve em função dos ouvidos humanos, que já há algum tempo vêm deixando de ser o parâmetro medidor de limites em função de alternativas mais lucrativas ou com roupagem mais modernosa. Pensar a experiência urbana como interessante e enriquecedora para os ouvidos, ainda que lidando com suas díspares variações (em intensidade, ritmo, tom ou qualquer outro aspecto), permite afinal aliar tanto uma recepção calorosa às criativas manifestações contemporâneas no campo da música, ou de eventos musicais em espaços entre pessoas, quanto uma atenção devida (e sem ela, que é contexto, ficaria difícil imaginar como seria o trabalho de alguns artistas recentes) aos espaços sonoros habitados por pessoas, que buscam sim alguma espécie de clariaudiência, mas que ao mesmo tempo articulam o repertório recebido e o processam de múltiplas maneiras.

** “Parece que a paisagem sonora do mundo atingiu um ápice de vulgaridade no nosso tempo, e muitos especialistas previram uma surdez universal como a última consequência caso o problema não possa ser rapidamente controlado.” (MURRAY SCHAFER, 1977:3).

*** Ver SINGER in: CHARNEY e R. SCHWARTZ, Vanessa, 2004:102.

Referências:

Barthelmes, Barbara. 2002.“Music and the city”. In: BRAUN, Hans-Joachim (org.). Music and technology in the twentieth century. Baltimore and London: John Hopkins University Press, 97-105.

Gardnier, Ruy. 2009. “Dan Deacon – Bromst (2009; Carpark, EUA)”. Camarilha dos Quatro.

Gumbrecht, Hans Ulrich. 1998. Modernização dos Sentidos. São Paulo: Editora 34.

LaBelle, Brandon. 2006. Background Noise: perspectives on sound art. New York: Continuum.

Schafer, R. Murray. 1994 (1977). The Soundscape: Our Sonic Environment and the tuning of the world. Vermont: Rochester.

Singer, Ben. 2004. “Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular”. In: CHARNEY, Leo e R. SCHWARTZ, Vanessa (org.). O Cinema e a Invenção da Vida Moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 95-123.

Taylor, Timothy. 2001. Strange Sounds: Music, Technology and Culture. New York: Routledge.

Thebérge, Paul. 1997. Any Sound You Can Imagine: Making Music/Consuming Technology. Hanover and London: Wesleyan University Press.

ludologia e narratologia: teorias de jogos eletrônicos

por inês nin, julho de 2008

 

Em busca de teorias que fossem capazes de interpretar os jogos eletrônicos – forma midiática que emergia com a computação –, foi criado o campo acadêmico chamado game studies, ou estudo de jogos. Os textos mais antigos datam de 1997 e são de Janet H. Murray (Hamlet no Holodeck – O Futuro da Narrativa no Ciberespaço) e Espen J. Aarseth (Cybertext – Perspectives on Ergotic Literature). Ambos fazem uso do prefixo cyber, cunhado por Norbert Wiener em Cibernética (1948) e O Uso Humano dos Seres Humanos (1950), sendo o primeiro um livro de enfoque mais técnico e o segundo uma obra sobre a interação entre humanos e máquinas como forma de comunicação.

No momento presente, pouco mais de dez anos após as primeiras publicações no campo, sites na internet se multiplicaram acerca dos estudos; novos termos e abordagens foram trazidos para o campo; novos teóricos surgiram propondo debates e os games em si foram complexificados e aperfeiçoados. Dentro do campo crescente dos game studies, autores como Gonzalo Frasca e Jesper Juul surgiram inaugurando o que eles próprios chamam de ludologia (do inglês ludology), que em si se diferencia da abordagem feita da chamada (pelos ludologistas) de narratologia (narratology). Eles partem da teoria de Aarseth, que fala do cibertexto e da literatura egórdica – que necessita de um esforço maior que um simples virar a página de um livro para ser lida (apesar dos termos). Dela destacam em especial a passagem “To claim there is no difference between games and narratives is to ignore essential qualities of both categories” (AARSETH, 1997), de Cybertext, para ir em direção contrária à perspectiva “narratologista” de Murray e outros como Henry Jenkins.

Frasca foi quem “inaugurou” o que seria esta nova disciplina especificamente criada para estudar os jogos – eletrônicos ou não, ainda que tenha ênfase nestes – em um artigo de 1999 entitulado “Ludology Meets Narratology: Similitude and differences between (video)games and narrative.” O termo ludology, de fato, não foi cunhado por ele, e nem é novo, mas tem sido usado há algum tempo por jogadores de jogos não-eletrônicos. Ludus, em si, vem do grego e denota aspectos relativos a jogo. Na teoria ludológica ele vem assumir um significado mais específico.

Partindo das categorias criadas por Roger Caillois, Frasca estabelece a distinção entre ludus e paidia (em português, ludo e paideia) como formas diferentes de jogo. Esta necessidade é explicitada pela confusão potencialmente encontrada com as palavras “play” (em inglês, que tem duplo significado e pode ser tanto verbo quanto substantivo) e as respectivas em outras línguas, que só encontram um significado (em português poderíamos encontrar a distinção entre “jogo” e “brincadeira”, ou jogar/brincar). De acordo com a ludologia, essencialmente, ludo seria o jogo com regras, e paideia, sem regras.

A paideia aqui remete àquela brincadeira de crianças bem pequenas que não tem hora para acabar e cujas regras mudam de acordo com o gosto da criança. O ludo seria o jogo de adultos, como o xadrez, que tem objetivo definido, estratégia e regras bem demarcadas. O jogo do tipo ludo é o que mais se aproxima da concepção de jogos eletrônicos abordada pelos “narratologistas”. Ele traz em si os três atos apontados pela teoria estética de Aristóteles (ver Poética) e que se verificam mais tipicamente nas narrativas hollywoodianas.

Seriam correspondentes aos jogos eletrônicos de aventura. Murray encara os jogos de computador como novas formas de criar histórias, ou narrativas, considerando a constante escolha por caminhos que se tem que fazer nos jogos como direções tomadas por uma narrativa multi-linear. Os jogos especificamente analisados por ela são os MUDs (Multi-User Dungeons), precursores dos atuais MMORPGs (Massive Multi-player Online Role Playing Games), como Zork e Myst.

É de fato inegável a semelhança de tais jogos às narrativas cinematográficas, por exemplo, e diversos estudos têm sido feitos a respeito disso, apontando semelhanças e diferenças. Sem dúvida a principal diferença é que no caso do jogo eletrônico o interator (que interage com o texto; um nome para a forma de leitura descrita por Murray em meio digital) tem a possibilidade de “incorporar” o personagem e interagir ativamente com a história – que está então sendo construída.

Acerca disso, Frasca argumenta que pessoas reais não agem como personagens, especialmente se lembrarmos da forma tradicional deles e presente nas narrativas (dotadas de estrutura clássica). Personagens em geral são baseados em arquétipos, tipos, enquanto pessoais reais são seres muito mais complexos que esta forma simplificada criada para a literatura e peças teatrais.

As diferenças entre as concepções teóricas são muitas, enfim. Podemos estabelecer aqui as linhas gerais: os auto-intitulados ludologistas acreditam que o que há de principal em um jogo são as regras, que é o que os distingüe das formas narrativas e os próprios jogos entre si. O enfoque deles é no aspecto da simulação, argumentando que os jogos são antes baseados nisso que em narrativas (mas não excluem a possibilidade de existir jogos narrativos), cuja base está no comportamento (do software do jogo), que vai permitir ou não determinadas ações. Atentam ainda para o aspecto ideológico dos jogos, tanto em seu aspecto mais explícito (como nos chamados advergames – jogos que servem para promoções publicitárias) quanto implícito, que estaria presente em todos os jogos a partir de seus conjunto de regras: eles permitem determinada ação ou não.

Os chamados narratologistas, por eles próprios assumidos apenas como formalistas, como Murray, enfatizam os aspectos dos jogos que são comuns às narrativas, ou à criação de histórias: início, desenvolvimento e fim – vencedor ou perdedor. Segundo Murray, “um jogo é um tipo de narração abstrata que se parece com o universo da experiência cotidiana, mas condensa esta última a fim de aumentar o interesse.” (MURRAY, 1997). A partir daí ela cunha os conceitos que seriam específicos do caso dos jogos eletrônicos, como interator (no lugar do leitor; é um leitor que interage com a obra); imersão (pois a experiência de jogar se assemelha ao estar mergulhado em um ambiente totalmente novo); agência (em oposição a autoria, o interator agencia os elementos de um jogo) e transformação (a partir da agência do interator ele pode transformar aquela obra para os caminhos que deseja – desde que o jogo permita).

O “debate” entre estes dois enfoques dos game studies é só mais ou menos declarado, tendo os ludologistas surgido posteriormente para clamar uma distinção dos demais e chamando a atenção para a necessidade de uma disciplina que abordasse somente jogos. Murray os acusa de fazer uso de uma perspectiva a-histórica, negando a relação existente que se estabelece historicamente entre os diferentes meios e tecnologias da comunicação (indo em direção contrária, os ludologistas, do que afirmam Bolter e Grusin, quando falam do conceito de remediação – de fato, a dupla é enquadrada no campo dos narratologistas). Mas ao mesmo tempo diz encontrar alguns avanços no campo da ludologia, e clama por uma mútua cooperação (e não uma oposição). Resta ver os caminhos pelos quais a questão irá trafegar.

indietronica e a cena alemã

artigo publicado em 2006 no site cafetina eletroacústica, voltado para “música, cinema, interlocuções e comportamento” e editado por debora baldelli

Bateu na porta sem ser convidada. A primeira banda que eu ouvi de indietronica foi The Notwist, com seus beats delicados, melodias fáceis mas nada óbvias e um disco irresistivelmente doce, pop e criativo. Me ganharam de cara, os irmãos Acher e seu Neon Golden. Situada em uma deliciosa interseção entre o rock e a eletrônica, a descoberta me fez querer ouvir mais.

É claro que misturar rock com eletrônica não é novidade. Desde as bandas oitentistas como Joy Division/New Order e Depeche Mode, até o novo rock de hoje (fortemente influenciado pelas primeiras), a combinação persiste feliz, multiplicando os horizontes das bandas e projetos que a adotam. Filhas bastardas da eletrônica das pistas são as bastante populares hoje Franz Ferdinand, Kaiser Chiefs, Maxïmo Park e todas as similares que aqui seguem, oriundas da fervilhante cena do Reino Unido, passando pelo fantástico LCD Soundsystem, Liars, !!! e outros, norte-americanos, que seguem por um caminho dançante porém experimental. Estas resultam em um som inquieto, explosivo, fortemente influenciado pelo punk.

Vindo em direção contrária, oriunda de outros nichos e de uma outra eletrônica, a indie eletrônica ou simplesmente indietronica vem ganhando espaço desde o finalzinho do século passado. Nascido a partir de experimentações usando elementos da IDM (“intelligent dance music”, termo algo controverso), glitch e indie rock (ou indie pop), o estilo une bases eletrônicas minimalistas a vocais doces, freqüentemente com estrutura de música pop. E é entre Berlin e Munique que a cena florece.

Inseridos neste contexto, o alemão The Notwist, de Markus e Micha Acher (somados a Martin Gretschman e Martin Messerschmi) é possivelmente a banda mais forte da gravadora Morr Music, de Berlin. Pode-se dizer que tudo se desenvolveu a partir dali: tendo lançado um disco de hardcore, Nook, onde a semelhança com o som do grupo atualmente pára nos vocais, eles lançaram em seguida o disco Shrink (1998), que desempenhou o papel não só de reinventar o som da banda totalmente como já apontava para novas direções em termos musicais. Shrink começa com Day Seven, que demora quase dois minutos para “começar” de fato. É um disco experimental, onde nem todas as faixas possuem vocais e somente as primeiras se encaixam mais ou menos no conceito de música pop, com batidas marcadas e um som líquido, que flui deliciosamente ao longo da gravação. Neon Golden, o disco seguinte, de 2003, é mais bem concebido nos padrões da música pop, possuindo canções cujas batidas, ainda que minimais, chegam a flertar com ritmos mais dançantes como o drum’n’bass. Mas tudo usando linguagem própria.

13&God consiste em The Notwist + Themselves. Themselves é um grupo de hip-hop experimental do selo Anticon, onde, juro, o que menos se encontra é hip-hop como é popularmente conhecido hoje. É hip-hop para as mentes abertas, música avant-garde como alguns chamam, e a união destes dois grupos não poderia ter originado um disco menos criativo, onde são notáveis as contribuições do The Notwist com as melodias pop e os vocais doces, enquanto o disco é levado para caminhos muito pouco previsíveis pelo Themselves.

A banda se desdobra ainda em alguns outros projetos, nem tão paralelos assim, além do 13&God: Console, Lali Puna, Ms. John Soda, John Yoko e Tied + Tickled Trio. Lali Puna é o mais popular destes (consideradas as devidas proporções), sendo composto por Markus Acher e Valerie Trebeljahr, alemã com ares de oriental que canta em inglês e português – com sotaque de Portugal. Entre canções como Contratempo, cantada em português, e Call 1-800-Fear, com uma batida marcada e até dançante, a sonoridade do grupo é fria, leve e charmosa, cheia de pequenas surpresas, remetendo em alguns de seus aspectos ao Stereolab. Já Tied + Tickled Trio é algo como jazz eletrônico experimental, e Console é o projeto solo do programador Martin Gretschmann, este totalmente eletrônico e oscilando entre a eletrônica experimental e aproximações com o electro.

A gravadora Morr Music na prática reproduz o gosto musical de Thomas Morr, seu fundador, que também atua como DJ, abrindo para as bandas ou tocando sozinho, geralmente pela Europa. No site da Morr, graciosíssimo, na parte de “FAQ / demo policy”, eles explicam que aceitam receber CDs demo, desde que não sejam de heavy metal ou electroclash… Há, claro, outras bandas dali que merecem destaque, como The American Analog Set, norte-americanos que produzem um som leve e mais próximo ao indie pop; Múm, islandesa e uma das bandas mais interessantes e fofas da atualidade; Tarwater, mistura experimental de indie rock/post-rock e indietronica, e que já veio fazer shows no Brasil de graça (!) no Resfest do ano passado em São Paulo; Styrofoam, projeto do belga Arne Van Petergen; The Go Find, banda apadrinhada por Arne que se aproxima muitíssimo ao seu som porém soa bem mais rock; ISAN, inglês que produziu o disco mais delicioso de “e-soninho” que eu já ouvi (Lucky Cat) e Electric President, que lançou há pouco tempo um dos discos mais empolgantes da indietronica, onde une da forma mais bonita os elementos que a compõem.

Obviamente a indietronica não se limita à Morr ou à cena alemã, onde o grande hype atualmente é produzir sons minimalistas, mas também se extende por outras áreas onde os artistas incorporaram o estilo: The Postal Service, talvez a mais famosa dentre todas as que eu poderia citar, é um projeto do vocalista Ben Gibbard, do grupo de indie rock Death Cab For Cutie com Jimmy Tamborello, que também responde pelos projetos Dntel e Figurine, e suas músicas são bonitas e pop a ponto de grudar nos ouvidos por dias a fio; há também o Broadcast, que mistura texturas sonoras de um modo que lembra desde Stereolab até My Bloody Valentine; Stars, da respeitabilíssima gravadora canadense Arts & Crafts; Le Tigre, de Kathleen Hanna, conhecida pela banda de riot grrrl Bikini Kill e outras, que juntas constituem um conjunto variado de sonoridades que de uma forma ou de outra são inegavelmente próximas.

Não é difícil perceber que todas essas bandas ou projetos partiram de grupos de rock, que estando abertos para experimentações puderam chegar ao ponto que configura um novo estilo. Alguns dos artistas aqui citados têm ou tiveram bandas de post-rock, mais freqüentes até pela sonoridade que os aproxima, como o Ms. John Soda e o Couch, ou o ultra-criativo artista Four Tet e seu Fridge, ambos ainda na ativa. Mas este último é um caso a parte, que demanda uma imersão por outros ambientes sonoros.