dan deacon e outros experimentalismos contemporâneos

parte 3/3 de artigo apresentado no encontro de música e mídia: e(st)éticas do som, na usp, em 2009

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Um devaneio eletrizante que perpassa diversas esferas do ambiente sonoro, atravessa camadas auditivas as mais amplas, gera imagens multicoloridas de uma festa infantil de outro mundo e revela, entremeada, uma calma débil aliada a uma alegria intensa. A música de Dan Deacon, artista norte-americano fixado em Baltimore, EUA e com dois discos lançados oficialmente – mais alguns distribuídos em CD-R e disponíveis em seu website – converte boa parte do universo pop midiático que habita a hiperestimulada vida urbana em canções que são viagens alucinantes sobre a mais palpável das realidades sonoras. E, imerso em uma oscilação entre o som quieto macio de ouvir à mais acelerada saturação de barulhos cacofônicos impensáveis, consegue extrair uma beleza extrema do conjunto.

Ao vivo, ao menos na turnê de Spiderman of the Rings, ele se misturava com o público ao tocar seus diversos brinquedos, teclados e traquitanas eletrônicas. Bromst, seu mais recente álbum, traz como elementos novos a companhia de uma banda de 15 músicos, para a performance que até então se resumia ao artista solo, e juntamente com isso algumas sonoridades orgânicas que se misturam aos samples, barulhos eletrônicos os mais variados, teclados e vocoders. Deacon diz em entrevistas que neste álbum os sons são metade orgânicos, metade eletrônicos, e que os primeiros se manifestam mais evidentemente no uso de três baterias simultâneas (!).

Com formação musical erudita e eletroacústica, Deacon torna-se aos poucos conhecido por elevar aos últimos níveis de intensidade, criativamente, sons reconhecíveis na experiência urbana, tais como os oriundos de ambientes midiáticos, como desenhos animados; barulhos de brinquedos e ruídos saturados, em excesso, se aproximando de bandas atribuídas ao gênero noise, como Fuck Buttons ou MoHa!, mas de forma muito mais divertida, mais associável ao Passion Pit, em alterações vocais agudas e alegria festiva. Deacon também faz uso de frequentes alterações no tempo das músicas, provocando quem ouve tanto de forma instigante quanto desafiadora para a interpretação do corpo para os ritmos (que em última instância seria a dança, mas que por vezes mesmo um mero tamborilar dos dedos se torna inevitável).

Talvez o artista mais conhecido na música eletrônica recente, por alterar os tempos das músicas e jogar com batidas e ruídos, não raro em excesso, seja Aphex Twin. Suas batidas mais nervosas – aquelas que mantêm estabelecida o tempo todo uma ligação oscilante com o drum’n’bass – são verdadeiros desafios sonoros, playground para os ouvidos mais abertos. E, mesmo em seus discos ambient, mais calmos, a marca se verifica, em faixas talvez inclassificáveis (apesar do nome que carregam), ou, também, podendo ser adotadas pelo estranho rótulo de IDM (intelligent dance music – não seria então do que falamos aqui todo o tempo?).

Murray Schafer observa que o que mais se ouve à época em que escreveu The Soundscape, em fins dos anos 70, é a música de épocas anteriores, menos acelerada, que se contraporia ao chamado future shock. Ora, Deacon é identificado precisamente com esse gênero, hoje relacionado também a outras bandas e artistas de Baltimore. E, se por um lado ainda se ouve maciçamente músicas de tempos passados, vide a eternamente imutável programação das rádios e as observações de Hans Ulrich Gumbrecht ao falar no “presente em constante expansão”, artistas que apontam mudanças e ressignificações a partir da manipulação de sons existentes confirmam cada vez mais a coexistência possível de sons e modos de ouvir que podem parecer extremamente díspares, mas que de fato estão em perfeita consonância. Não só histórico-temporal, que seria inevitável, mas também por estarem todas essas formas musicais vivas agora, no presente, em diálogo com o que entra em sai das janelas das residências e demais estabelecimentos do meio urbano.

Com um ar irresistível de céu branco de outono, Daedelus, com um pé no dubstep e outro na IDM, traz reminiscências de músicas de pista de outras épocas e faz uso constante de samples. Seu trabalho é um passeio sonoro por rádios e cidades, música pop e boates. Eventualmente ouvem-se vocais, que podem tanto ilustrar discotecas dos anos 50 ou dos dias atuais, mas também ser conversas entreouvidas em alguma esquina ou no interior de uma casa de família. Caracteristicamente, ele se distingue por incorporar diferentes espaços, tanto ao assimilar sons quanto no ato de levar sua performance para o topo de um edifício, interferindo nos sons da paisagem urbana; interfaces, como o uso de monomes, além do laptop, para manipular os sons ao vivo, e formas de fazer, em incursões por práticas como o circuit bending, que são intervenções em instrumentos eletrônicos, muitos infantis, levando-os a produzir sons inusitados e não previstos, mas que de alguma forma sempre estiveram ali enquanto possibilidades.

Com suas músicas cria ambientes oscilantes. Os ouvintes deixa frequentemente desconcertados, ora por chamar à dança, ora por adentrar mais profundamente espaços de experimentações, aos quais só cabe ouvir e se deixar levar pelas vibrações tão particulares. No último disco, Love to Make Music to, 2008, algo parece ter sido perdido, talvez por incorporar nele as cinco faixas que já estavam no brilhante EP Fair Weather Friends, de 2007, e este, conciso e preciso, parece bastar-se lindamente, mais ainda se posto no modo repeat.

Guillermo Scott Herren, se em seus primeiros discos ainda pisava firme no terreno do hip-hop, ao longo da carreira foi elevando os pés pelos ares e desmontando vagarosamente, não sem ritmo, uma a uma as suas referências. Produtor musical de múltiplos projetos e cujo principal é o Prefuse 73, também se identifica com as práticas conhecidas como experimentais e que fazem uso constante de colagens. Ele tem uma forma muito própria de misturar sons – muitos deles orgânicos – e beats eletrônicos em camadas marcadas pela imprevisibilidade, de um modo que lembra artistas como Four Tet e alguns outros daqueles rotulados como folktronica, mas que em muito (e há muito) transbordam as barreiras de qualquer gênero. É música oriunda diretamente da experiência multiatenta de quem caminha pela cidade capturando fragmentos de músicas e vozes embaladas pelo soar dos carros e pelo silêncio que emerge para além da parede sonora que esses e outros ruídos formam.

Em todos os casos citados neste artigo, trata-se de música que vem dos espaços (multimidiáticos; urbanos) e vai para os espaços: Dan Deacon no meio da multidão, Daedelus em locações inusitadas tais como o topo de um edifício. Se no trabalho de Deacon se observa uma intensa saturação de sons que convocam à memória de outros ambientes e outros usos, tais como desenhos animados, Daedelus e Prefuse 73 levam os breakbeats e seus desdobramentos às últimas consequências, utilizando instrumentos e interfaces pouco convencionais e envolvendo-se em frequentes parcerias com outros músicos, o que é comum entre os artistas de música eletrônica.

Seria talvez abominável afirmar, partindo da postura muito clara** que assume Murray Schafer, que tais peças sonoras possam ter seu referente no ambiente urbano de modo tão próximo, e ainda assim soarem bonitas. Mais ainda, há faixas do Prefuse 73 (qualquer uma das canções de Sleeping on Saturday and Sunday Afternoons, de 2003) ou do Four Tet (“You Were There With Me”, de Everything Ecstatic, 2005) que remetem à calma mitológica atribuída às paisagens idílicas dos campos rurais. Em versão contemporânea e de inspiração onírica, pode-se dizer.

O projeto sonoro que Murray Schafer lidera desde fins dos anos 60 e início dos 70 até hoje, primeiramente intitulado World Soundscape Project e posteriormente reestruturado como World Forum for Acoustic Ecology, a partir de 1993, pretende promover uma espécie de ecologia dos ambientes sonoros. Ele carrega consigo por um lado potência e importância muito grandes face às tendências do mercado e possíveis deslizes contemporâneos, no que diz respeito ao sons que se ouve nas grandes metrópoles. Os ambientes estão cada vez mais contaminados pela Musak, assim como por imagens igualmente descartáveis e abundantes, que primam pelo excesso de estímulos e sobra pouco ou nenhum silêncio.

Ora, acerca disso, diria John Cage que o silêncio hoje, na maior parte dos lugares, é o próprio som do tráfego dos carros. Porque se tais práticas eram novidade nos primórdios da modernidade e da sucessiva substituição dos meios de transporte por máquinas ruidosas***, ou com o advento do rádio, ou ainda com o boom tecnológico pós-II Guerra, os jovens de hoje já nasceram imersos neste ambiente. E então diria-se que aparelhos eletrônicos em geral, assim como imagens e sons que atravessam a experiência urbana já estão de alguma forma assimilados nos ouvidos dessa geração, mas ainda assim o argumento não seria suficiente para justificar. Pois se há décadas que a música eletrônica existe, e há muito mais tempo estão presentes no cotidiano os ruídos que foram um dia inspiração para a musique concrète, Stockhausen ou John Cage, clamar por um certo retorno idílico às origens, a uma audição com poucas interferências e ao silêncio dos terrenos rurais soa de fato um tanto ingênuo. E sequer é isso que está em questão aqui: estando uma vez assimilada a experiência urbana tal como ela se apresenta hoje, quais sons e diferentes percepções auditivas se pode extrair dela? O que esse mix de referências pode trazer para as turntables, laptops, monomes e headphones, combinados e justapostos às mais criativas variações de instrumentos musicais, enriquecendo a própria experiência auditiva de seus ouvintes?

Sons quietos podem surgir, também. Algumas variações de silêncio já foram evocadas, assim como diferentes níveis de saturação sonora, engenhosamente trabalhados e saturados de referências pop. O projeto de Murray Schafer possui sim um trunfo, que é chamar a atenção justamente para o que se ouve em função dos ouvidos humanos, que já há algum tempo vêm deixando de ser o parâmetro medidor de limites em função de alternativas mais lucrativas ou com roupagem mais modernosa. Pensar a experiência urbana como interessante e enriquecedora para os ouvidos, ainda que lidando com suas díspares variações (em intensidade, ritmo, tom ou qualquer outro aspecto), permite afinal aliar tanto uma recepção calorosa às criativas manifestações contemporâneas no campo da música, ou de eventos musicais em espaços entre pessoas, quanto uma atenção devida (e sem ela, que é contexto, ficaria difícil imaginar como seria o trabalho de alguns artistas recentes) aos espaços sonoros habitados por pessoas, que buscam sim alguma espécie de clariaudiência, mas que ao mesmo tempo articulam o repertório recebido e o processam de múltiplas maneiras.

** “Parece que a paisagem sonora do mundo atingiu um ápice de vulgaridade no nosso tempo, e muitos especialistas previram uma surdez universal como a última consequência caso o problema não possa ser rapidamente controlado.” (MURRAY SCHAFER, 1977:3).

*** Ver SINGER in: CHARNEY e R. SCHWARTZ, Vanessa, 2004:102.

Referências:

Barthelmes, Barbara. 2002.“Music and the city”. In: BRAUN, Hans-Joachim (org.). Music and technology in the twentieth century. Baltimore and London: John Hopkins University Press, 97-105.

Gardnier, Ruy. 2009. “Dan Deacon – Bromst (2009; Carpark, EUA)”. Camarilha dos Quatro.

Gumbrecht, Hans Ulrich. 1998. Modernização dos Sentidos. São Paulo: Editora 34.

LaBelle, Brandon. 2006. Background Noise: perspectives on sound art. New York: Continuum.

Schafer, R. Murray. 1994 (1977). The Soundscape: Our Sonic Environment and the tuning of the world. Vermont: Rochester.

Singer, Ben. 2004. “Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular”. In: CHARNEY, Leo e R. SCHWARTZ, Vanessa (org.). O Cinema e a Invenção da Vida Moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 95-123.

Taylor, Timothy. 2001. Strange Sounds: Music, Technology and Culture. New York: Routledge.

Thebérge, Paul. 1997. Any Sound You Can Imagine: Making Music/Consuming Technology. Hanover and London: Wesleyan University Press.