chelpa ferro atualiza as curvas da capital portuguesa

relatos e registros da visita do grupo a portugal; artigo publicado na revista da secretaria de estado de cultura do rio de janeiro em 2012

Pela primeira vez em terras lusitanas, o grupo multimídia Chelpa Ferro acaba de expor em Lisboa seu mais recente trabalho, a instalação site-specific Craca, além de se apresentar ao vivo junto ao artista português Pedro Tudela. Formado há 17 anos pelos artistas Luiz Zerbini, Sérgio Mekler e Barrão, o Chelpa Ferro realiza performances, instalações híbridas com dispositivos tecnológicos e lançou três discos, o último recentemente.

Convidado pelo Carpe Diem Arte e Pesquisa, instituição voltada para o campo alargado da arte contemporânea, o grupo preparou uma peça sonora inédita para 18 canais de áudio. Somando uma mistura de instrumentos tradicionais, parafernálias criadas pelos próprios integrantes e recursos eletrônicos, o som gravado chega ao público através de espessos blocos de isopor dispostos em diversos pontos da sala, que interferem na sua emissão. Uma atmosfera composta de ruídos é então gerada, preenchendo o espaço da Sala Azul do antigo Palácio Pombal, no coração histórico de Lisboa. A obra, exposta entre os meses de junho e setembro desse ano no XI Módulo Expositivo do Carpe Diem Arte e Pesquisa, deve ser remontada em breve em outro local da mesma cidade, considerando suas dimensões variáveis.

Materializando um desejo do curador Paulo Reis, falecido em 2011, carioca radicado em Portugal e fundador do Carpe Diem Arte e Pesquisa, Chelpa Ferro e Pedro Tudela realizaram um concerto idealizado há aproximadamente uma década, quando o grupo e o artista tiveram a oportunidade de se conhecer em São Paulo. O improviso foi a chave da apresentação, que ocorreu no Teatro do Bairro, como parte do Programa Próximo Futuro da Fundação Calouste Gulbenkian. Em parceria inédita, os artistas uniram conhecimentos e repertórios oriundos das fontes mais impensáveis, provocando diferentes dimensões auditivas.

Pedro Tudela, assim como o Chelpa Ferro, é artista plástico, se desdobrando desde 1982 entre performances, programas de rádio, discos, concertos de música experimental eletrônica e projetos cenográficos. Os dois eventos, XI Módulo Expositivo do Carpe Diem Arte e Pesquisa e o Programa Próximo Futuro da Fundação Calouste Gulbenkian, de instituições parceiras, tiveram como característica marcante a participação simultânea de artistas brasileiros e portugueses, que se somavam a outros de diferentes nacionalidades.

Ao caminhar pela cidade, as aproximações e intercâmbios se intensificavam: enquanto o Chelpa preparava a exposição no Carpe Diem Arte e Pesquisa, a cantora gaúcha Adriana Calcanhotto fazia um show com um grande fadista português, o grupo almoçava no restaurante que a presidente Dilma Rousseff costuma frequentar, de onde contam a exótica experiência de comer caracóis. Exotismo quase local, se considerarmos todas as nossas heranças históricas, que se misturam de maneira curiosa, gerando comparações que ora nos aproximam, ora afastam.

E é irrevogável a importância desse contato, que ganha tons de humor quando o grupo relata ter visto Portugal ser eliminado da Eurocopa (“viveram esse triste momento”) ou entusiasmo, como quando falam da Galeria Zé dos Bois, misto de espaço de exposições e ações performáticas, com forte pé fincado na música experimental. A presença no espaço se faz fundamental não só pelas atividades previstas, que por si já seriam singulares e aguardadas fazia longo tempo. Mas coisas do acaso, como topar na rua com o grande colecionador de música e galerista Zé Mário, ou encontros fortuitos com artistas com quem podem gerar futuras parcerias, até mesmo comer caracóis, são agentes da nossa cultura antropofágica que vem atualizar raízes, estabelecer contatos, fundar novas buscas.

bebop?

texto produzido como parte do conteúdo integrante do site promocional do filme “na estrada”, dirigido por walter salles e lançado no brasil em 2012

Jazz pode ser uma canção doce, com roupagem lo-fi e levada calma, como aquelas que inspiraram a bossa nova, mas não só. Nos anos 40, o jazz, ritmo que tomou forma uns 20 anos antes, era sacudido, revirado e subvertido: foi quando surgiu o bebop.

Mais mau comportada que o próprio rock para o contexto da época, essa vertente do jazz é marcada pela improvisação, o ritmo acelerado e músicos muito talentosos. Naquela época, o padrão de duração das músicas gravadas não podia ultrapassar os 3 minutos, devido às próprias limitações dos discos de vinil de 78 rotações, que aos poucos iam sendo substituídos pelos de 33 e ½ – formato que se tornou padrão. Só que ao vivo, as noitadas eram longas, e as canções variavam muito, dependendo da empolgação dos músicos (e do público).

Situada em Nova York, a Minton’s Playhouse era uma casa de shows que ficou conhecida pelas longas jam sessions que sediava, contando com músicos como Charlie Parker, Thelonious Monk, Dizzie Gillespie e Kenny Clarke tocando sem parar noite adentro. Depois de um tempo, as noites de bop contavam em geral com quintetos formados por trompete, saxofone, piano, baixo e bateria, admitindo variações. A música é complexa e engenhosa, sendo grande parte construída a partir de improvisações – ainda que houvesse quem fizesse diferente.

De estrutura livre, o bebop fez história e se transformou num divisor de águas, inaugurando o que chamamos hoje de jazz moderno. O saxofonista que virava noite adentro tocando jazz se tornaria uma espécie de herói americano, ao passo que o bebop se espalhava como trilha sonora da juventude boêmia. Seu apogeu foi na São Francisco dos anos 50, mesma data e local onde estavam os beats – e de fato, havia uma grande afinidade entre eles. Longas sessões de jazz/poetry teriam então lugar, em que poemas eram declamados ao som de sax, contrabaixo e outros instrumentos.

Fonte: “O que é Jazz?”, de Roberto Muggiati. Ed. Brasiliense, 2008 e pesquisa de Dodô Azevedo.

patti smith e os beats

texto produzido como parte do conteúdo integrante do site promocional do filme “na estrada”, dirigido por walter salles e lançado no brasil em 2012

Patti Smith – Patricia Lee Smith nasceu em Chicago, EUA, em 1946. Em 1967, depois de uma experiência traumática, mudou-se aos 19 anos para Nova York para começar uma nova vida. Lá, conheceu Robert Mapplethorpe, iniciando uma parceria que duraria para a vida toda. Moraram juntos como casal e permaneceram amigos, vivendo ainda sob o mesmo teto durante algum tempo. Colaboravam intensivamente um com o trabalho do outro, chegando a organizar uma exposição juntos no início da carreira. Compartilharam dificuldades, experimentações e descobertas do que viria a ser a carreira de cada um. Patti escrevia poesias e desenhava, e mais tarde veio a se interessar por performances. A ideia de somar poesia a rock’n’roll surgiu naturalmente, primeiro por meio de convites que recebeu, decidindo enfim formar uma banda em 1974. Enquanto isso, Mapplethorpe, que desenhava, elaborava instalações e colagens, descobriu-se fotógrafo, atividade que emergiu à mesma época em que explorava sua própria sexualidade. Ambos eram frequentadores da famosa casa de shows CBGB, onde mais tarde se apresentaria com sua banda. Patti Smith alcançou o sucesso já no primeiro disco, Horses, lançado em 1975. Cantora, compositora, poeta e artista plástica, Patti Smith é grande fã do poeta Arthur Rimbaud e hoje reconhecida como uma das grandes expoentes do punk rock novaiorquino.

O encontro com Allen Ginsberg se deu de forma curiosa: nos primeiros anos de Nova York, ela e Mapplethorpe viviam sempre com o dinheiro contado, muitas vezes faltando para comer. Dotada de um metabolismo rápido, ela estava sempre com fome, e havia conseguido juntar 55 centavos de dólar, o preço exato de um sanduíche de queijo à época. Chegando na lanchonete, o preço tinha subido para 65. Eis que surge um sujeito barbudo se oferecendo para cobrir os 10 centavos restantes, e ainda a convidando para um café. Patti aceitou na hora. Ao conversarem, Patti descobre que Ginsberg a havia confundido com um menino – ele estava chegando nela! Mais tarde se tornariam amigos, e Patti diria simplesmente que Ginsberg lhe deu comida quando tinha fome.

Patti Smith transitou pelo círculo de amizades dos beatniks, com os quais compartilhava o amor pela literatura. Vivendo por um período no famoso Chelsea Hotel, em Nova York, ela e Mapplethorpe foram vizinhos de Burroughs, a quem ela faria visitas constantes. As histórias que permeiam o período em que viveu em Nova York, e em especial a relação com Robert Mapplethorpe, foram relatadas no premiado livro Só Garotos (Just Kids), lançado em 2010.

dan deacon e outros experimentalismos contemporâneos

parte 3/3 de artigo apresentado no encontro de música e mídia: e(st)éticas do som, na usp, em 2009

2/3 1/3

Um devaneio eletrizante que perpassa diversas esferas do ambiente sonoro, atravessa camadas auditivas as mais amplas, gera imagens multicoloridas de uma festa infantil de outro mundo e revela, entremeada, uma calma débil aliada a uma alegria intensa. A música de Dan Deacon, artista norte-americano fixado em Baltimore, EUA e com dois discos lançados oficialmente – mais alguns distribuídos em CD-R e disponíveis em seu website – converte boa parte do universo pop midiático que habita a hiperestimulada vida urbana em canções que são viagens alucinantes sobre a mais palpável das realidades sonoras. E, imerso em uma oscilação entre o som quieto macio de ouvir à mais acelerada saturação de barulhos cacofônicos impensáveis, consegue extrair uma beleza extrema do conjunto.

Ao vivo, ao menos na turnê de Spiderman of the Rings, ele se misturava com o público ao tocar seus diversos brinquedos, teclados e traquitanas eletrônicas. Bromst, seu mais recente álbum, traz como elementos novos a companhia de uma banda de 15 músicos, para a performance que até então se resumia ao artista solo, e juntamente com isso algumas sonoridades orgânicas que se misturam aos samples, barulhos eletrônicos os mais variados, teclados e vocoders. Deacon diz em entrevistas que neste álbum os sons são metade orgânicos, metade eletrônicos, e que os primeiros se manifestam mais evidentemente no uso de três baterias simultâneas (!).

Com formação musical erudita e eletroacústica, Deacon torna-se aos poucos conhecido por elevar aos últimos níveis de intensidade, criativamente, sons reconhecíveis na experiência urbana, tais como os oriundos de ambientes midiáticos, como desenhos animados; barulhos de brinquedos e ruídos saturados, em excesso, se aproximando de bandas atribuídas ao gênero noise, como Fuck Buttons ou MoHa!, mas de forma muito mais divertida, mais associável ao Passion Pit, em alterações vocais agudas e alegria festiva. Deacon também faz uso de frequentes alterações no tempo das músicas, provocando quem ouve tanto de forma instigante quanto desafiadora para a interpretação do corpo para os ritmos (que em última instância seria a dança, mas que por vezes mesmo um mero tamborilar dos dedos se torna inevitável).

Talvez o artista mais conhecido na música eletrônica recente, por alterar os tempos das músicas e jogar com batidas e ruídos, não raro em excesso, seja Aphex Twin. Suas batidas mais nervosas – aquelas que mantêm estabelecida o tempo todo uma ligação oscilante com o drum’n’bass – são verdadeiros desafios sonoros, playground para os ouvidos mais abertos. E, mesmo em seus discos ambient, mais calmos, a marca se verifica, em faixas talvez inclassificáveis (apesar do nome que carregam), ou, também, podendo ser adotadas pelo estranho rótulo de IDM (intelligent dance music – não seria então do que falamos aqui todo o tempo?).

Murray Schafer observa que o que mais se ouve à época em que escreveu The Soundscape, em fins dos anos 70, é a música de épocas anteriores, menos acelerada, que se contraporia ao chamado future shock. Ora, Deacon é identificado precisamente com esse gênero, hoje relacionado também a outras bandas e artistas de Baltimore. E, se por um lado ainda se ouve maciçamente músicas de tempos passados, vide a eternamente imutável programação das rádios e as observações de Hans Ulrich Gumbrecht ao falar no “presente em constante expansão”, artistas que apontam mudanças e ressignificações a partir da manipulação de sons existentes confirmam cada vez mais a coexistência possível de sons e modos de ouvir que podem parecer extremamente díspares, mas que de fato estão em perfeita consonância. Não só histórico-temporal, que seria inevitável, mas também por estarem todas essas formas musicais vivas agora, no presente, em diálogo com o que entra em sai das janelas das residências e demais estabelecimentos do meio urbano.

Com um ar irresistível de céu branco de outono, Daedelus, com um pé no dubstep e outro na IDM, traz reminiscências de músicas de pista de outras épocas e faz uso constante de samples. Seu trabalho é um passeio sonoro por rádios e cidades, música pop e boates. Eventualmente ouvem-se vocais, que podem tanto ilustrar discotecas dos anos 50 ou dos dias atuais, mas também ser conversas entreouvidas em alguma esquina ou no interior de uma casa de família. Caracteristicamente, ele se distingue por incorporar diferentes espaços, tanto ao assimilar sons quanto no ato de levar sua performance para o topo de um edifício, interferindo nos sons da paisagem urbana; interfaces, como o uso de monomes, além do laptop, para manipular os sons ao vivo, e formas de fazer, em incursões por práticas como o circuit bending, que são intervenções em instrumentos eletrônicos, muitos infantis, levando-os a produzir sons inusitados e não previstos, mas que de alguma forma sempre estiveram ali enquanto possibilidades.

Com suas músicas cria ambientes oscilantes. Os ouvintes deixa frequentemente desconcertados, ora por chamar à dança, ora por adentrar mais profundamente espaços de experimentações, aos quais só cabe ouvir e se deixar levar pelas vibrações tão particulares. No último disco, Love to Make Music to, 2008, algo parece ter sido perdido, talvez por incorporar nele as cinco faixas que já estavam no brilhante EP Fair Weather Friends, de 2007, e este, conciso e preciso, parece bastar-se lindamente, mais ainda se posto no modo repeat.

Guillermo Scott Herren, se em seus primeiros discos ainda pisava firme no terreno do hip-hop, ao longo da carreira foi elevando os pés pelos ares e desmontando vagarosamente, não sem ritmo, uma a uma as suas referências. Produtor musical de múltiplos projetos e cujo principal é o Prefuse 73, também se identifica com as práticas conhecidas como experimentais e que fazem uso constante de colagens. Ele tem uma forma muito própria de misturar sons – muitos deles orgânicos – e beats eletrônicos em camadas marcadas pela imprevisibilidade, de um modo que lembra artistas como Four Tet e alguns outros daqueles rotulados como folktronica, mas que em muito (e há muito) transbordam as barreiras de qualquer gênero. É música oriunda diretamente da experiência multiatenta de quem caminha pela cidade capturando fragmentos de músicas e vozes embaladas pelo soar dos carros e pelo silêncio que emerge para além da parede sonora que esses e outros ruídos formam.

Em todos os casos citados neste artigo, trata-se de música que vem dos espaços (multimidiáticos; urbanos) e vai para os espaços: Dan Deacon no meio da multidão, Daedelus em locações inusitadas tais como o topo de um edifício. Se no trabalho de Deacon se observa uma intensa saturação de sons que convocam à memória de outros ambientes e outros usos, tais como desenhos animados, Daedelus e Prefuse 73 levam os breakbeats e seus desdobramentos às últimas consequências, utilizando instrumentos e interfaces pouco convencionais e envolvendo-se em frequentes parcerias com outros músicos, o que é comum entre os artistas de música eletrônica.

Seria talvez abominável afirmar, partindo da postura muito clara** que assume Murray Schafer, que tais peças sonoras possam ter seu referente no ambiente urbano de modo tão próximo, e ainda assim soarem bonitas. Mais ainda, há faixas do Prefuse 73 (qualquer uma das canções de Sleeping on Saturday and Sunday Afternoons, de 2003) ou do Four Tet (“You Were There With Me”, de Everything Ecstatic, 2005) que remetem à calma mitológica atribuída às paisagens idílicas dos campos rurais. Em versão contemporânea e de inspiração onírica, pode-se dizer.

O projeto sonoro que Murray Schafer lidera desde fins dos anos 60 e início dos 70 até hoje, primeiramente intitulado World Soundscape Project e posteriormente reestruturado como World Forum for Acoustic Ecology, a partir de 1993, pretende promover uma espécie de ecologia dos ambientes sonoros. Ele carrega consigo por um lado potência e importância muito grandes face às tendências do mercado e possíveis deslizes contemporâneos, no que diz respeito ao sons que se ouve nas grandes metrópoles. Os ambientes estão cada vez mais contaminados pela Musak, assim como por imagens igualmente descartáveis e abundantes, que primam pelo excesso de estímulos e sobra pouco ou nenhum silêncio.

Ora, acerca disso, diria John Cage que o silêncio hoje, na maior parte dos lugares, é o próprio som do tráfego dos carros. Porque se tais práticas eram novidade nos primórdios da modernidade e da sucessiva substituição dos meios de transporte por máquinas ruidosas***, ou com o advento do rádio, ou ainda com o boom tecnológico pós-II Guerra, os jovens de hoje já nasceram imersos neste ambiente. E então diria-se que aparelhos eletrônicos em geral, assim como imagens e sons que atravessam a experiência urbana já estão de alguma forma assimilados nos ouvidos dessa geração, mas ainda assim o argumento não seria suficiente para justificar. Pois se há décadas que a música eletrônica existe, e há muito mais tempo estão presentes no cotidiano os ruídos que foram um dia inspiração para a musique concrète, Stockhausen ou John Cage, clamar por um certo retorno idílico às origens, a uma audição com poucas interferências e ao silêncio dos terrenos rurais soa de fato um tanto ingênuo. E sequer é isso que está em questão aqui: estando uma vez assimilada a experiência urbana tal como ela se apresenta hoje, quais sons e diferentes percepções auditivas se pode extrair dela? O que esse mix de referências pode trazer para as turntables, laptops, monomes e headphones, combinados e justapostos às mais criativas variações de instrumentos musicais, enriquecendo a própria experiência auditiva de seus ouvintes?

Sons quietos podem surgir, também. Algumas variações de silêncio já foram evocadas, assim como diferentes níveis de saturação sonora, engenhosamente trabalhados e saturados de referências pop. O projeto de Murray Schafer possui sim um trunfo, que é chamar a atenção justamente para o que se ouve em função dos ouvidos humanos, que já há algum tempo vêm deixando de ser o parâmetro medidor de limites em função de alternativas mais lucrativas ou com roupagem mais modernosa. Pensar a experiência urbana como interessante e enriquecedora para os ouvidos, ainda que lidando com suas díspares variações (em intensidade, ritmo, tom ou qualquer outro aspecto), permite afinal aliar tanto uma recepção calorosa às criativas manifestações contemporâneas no campo da música, ou de eventos musicais em espaços entre pessoas, quanto uma atenção devida (e sem ela, que é contexto, ficaria difícil imaginar como seria o trabalho de alguns artistas recentes) aos espaços sonoros habitados por pessoas, que buscam sim alguma espécie de clariaudiência, mas que ao mesmo tempo articulam o repertório recebido e o processam de múltiplas maneiras.

** “Parece que a paisagem sonora do mundo atingiu um ápice de vulgaridade no nosso tempo, e muitos especialistas previram uma surdez universal como a última consequência caso o problema não possa ser rapidamente controlado.” (MURRAY SCHAFER, 1977:3).

*** Ver SINGER in: CHARNEY e R. SCHWARTZ, Vanessa, 2004:102.

Referências:

Barthelmes, Barbara. 2002.“Music and the city”. In: BRAUN, Hans-Joachim (org.). Music and technology in the twentieth century. Baltimore and London: John Hopkins University Press, 97-105.

Gardnier, Ruy. 2009. “Dan Deacon – Bromst (2009; Carpark, EUA)”. Camarilha dos Quatro.

Gumbrecht, Hans Ulrich. 1998. Modernização dos Sentidos. São Paulo: Editora 34.

LaBelle, Brandon. 2006. Background Noise: perspectives on sound art. New York: Continuum.

Schafer, R. Murray. 1994 (1977). The Soundscape: Our Sonic Environment and the tuning of the world. Vermont: Rochester.

Singer, Ben. 2004. “Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular”. In: CHARNEY, Leo e R. SCHWARTZ, Vanessa (org.). O Cinema e a Invenção da Vida Moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 95-123.

Taylor, Timothy. 2001. Strange Sounds: Music, Technology and Culture. New York: Routledge.

Thebérge, Paul. 1997. Any Sound You Can Imagine: Making Music/Consuming Technology. Hanover and London: Wesleyan University Press.

da relação do som com a tecnologia e a vida urbana

parte 2/3 de artigo apresentado no encontro de música e mídia: e(st)éticas do som, na usp, em 2009

3/3 1/3

Barbara Barthelmes, em “Music and the City”, fala sobre as maneiras como os sons apreendidos na experiência da cidade ecoam e influenciam peças artísticas. Nesse âmbito, ela cita desde os pintores futuristas do começo do século XX, tais como Marinetti, Boccioni (“Street noise enters the house”, 1911) e Russolo, que falava da rua como microcosmo da cidade, até músicos como Charpentier, Delius e Edward Elgar, que tinham a cidade como objeto de comtemplação (contraposto aos pintores impressionistas, que miravam as paisagens da natureza). Entretanto, pode-se dizer que as contribuições musicais que lidam com as paisagens sonoras urbanas das cidades têm em seu favor um aspecto temporal, uma que vez que a música ocupa, mais que o espaço, o tempo, podendo expressar as variações de eventos ao longo de seu curso. Aqui cabe falar sobretudo em intensidade, mas também em fluxo, densidade. E, de alguma forma, as possibilidades abertas pela reprodutibilidade técnica dos sons acabam por ocupar o eixo central que tornou possíveis tantas experimentações.

Na verdade, não foram só as mídias que vieram possibilitar a reprodutibilidade, transmissão e gravação dos sons. A própria manipulação dos ruídos apreendidos através de sintetizadores e posteriormente das tecnologias eletrônicas transformaram substancialmente a forma como som e música seriam ouvidos, interpretados e apreendidos nas décadas seguintes. Os anos 80 do século passado foram cruciais para que isso se consolidasse, e não é à toa que explodiram tantas bandas que faziam fusão entre rock e ritmos eletrônicos, remetendo diretamente a “Psyché Rock” de Pierre Henry, e na década seguinte ocorreu a grande explosão das raves e da cultura da música eletrônica como um todo.

Paul Théberge argumenta que “a ideia de ‘som’ aparenta ser um conceito contemporâneo que dificilmente poderia ter sido mantido em uma era que não possuísse meios eletrônicos de reprodução” (THÉBERGE, 1997:191). Taylor já apontava para o agenciamento humano em face da tecnologia como questão central, uma vez que era precisamente esse o ponto da discussão e crítica que se fazia sobre a musique concrète. “Novamente”, Théberge continua algumas páginas adiante,

a existência prévia do efeito sonoro é um fator crucial; esses efeitos são ‘descobertos’ quase por acidente, tanto quanto criados pelo usuário individual. Decisões feitas por times de engenheiros nos estágios preliminares do design de um dispositivo de processamento podem portanto ter um impacto profundo não só na competência em se fazer uso desse dispositivo, mas também nas práticas e conceitos musicais/composicionais. (THÉBERGE, 1991:199-200)

A prática da colagem de sons, a partir do uso de samples se tornou comum, assim, em bandas que emergiram a partir dos anos 80, e mais frequentemente em gêneros direcionados às pistas, além do hip-hop. Hoje, apesar da constante batalha pelo acesso a músicas ou trechos de músicas que se trava na internet, para que o alto custo dos direitos autorais não comprometa a viabilidade das produções, mais do que nunca essa estética de apropriação e ressignificação faz sentido não só no campo da música, mas das artes como um todo.

A estética do som é inevitavelmente relacionada ao espaço que ela ocupa, seja em relação ao ambiente multirreferencial externo, seja em relação a espaços fechados. E, na era da reprodutibilidade técnica e mashups, as palavras de R. Murray Schafer no livro The Soundscape: Our Sonic Environment and the tuning of the world sobre espaços acústicos e seu tempo cabem:

A forma e o tamanho dos espaços interiores irão sempre controlar o andamento das atividades dentro deles. Novamente, isso pode ser ilustrado em referência à música. A velocidade de modulação das igrejas góticas ou da renascença é lenta; a dos séculos XIX e XX é muito mais rápida porque ela foi criada para salas menores e estúdios de transmissão. (…) O prédio comercial contemporâneo, que também consiste em pequenos e secos espaços, é similar ao frenesi do trabalho moderno, e assim contrasta vividamente com a temporalidade lenta da missa ou de qualquer ritual pensado para uma caverna ou cripta. Mais uma vez, os efeitos atenuados da música recente parecem sugerir um desejo de desaceleração do ritmo das coisas, exatamente como as músicas de Stravinsky e Webern uma vez prenunciaram a prática empresarial moderna. (MURRAY SCHAFER, 1977:219)

Ou seja, como afirma Murray Schafer em outro trecho, o papel da arquitetura é crucial tanto como elemento que interfere na percepção sonora, e em geral ela é pensada levando em conta esse aspecto. Isso pode ser feito na direção de aproveitar as vantagens que os espaços podem oferecer em termos de apreciação estética, criando experiências realmente belas dentro de catedrais ou mesmo edifícios, mas também pode pretender simplesmente suprimir os ruídos dos ambientes externo e interno e preenchê-los com formas sonoras menos edificantes para os ouvidos. E essa última tem sido a tendência contemporânea. Diz ele:

A arquitetura, assim com a escultura, está na fronteira entre os espaços de visão e som. Dentro e em volta de um edifício existem certos lugares que funcionam como pontos de ação tanto visuais quanto acústicos. (…) Em um mundo quieto, a acústica de edifícios floresceu como uma arte de invenção sônica. Em um mundo barulhento ela se transforma meramente na habilidade de silenciar ruídos internos e isolar incursões do turbulento ambiente além-muros. (MURRAY SCHAFER, 1977:222)

Ainda tendo em vista o espaço, Barthelmes carrega em seu texto uma boa contribuição de dois sociólogos, Hans-Peter Meier-Dallach e Hanna Meier, que falam da cidade como organismo social:

Eles começam com a hipótese de que sons e a paisagem sonora urbana funcionam como signos e se referem a uma relação específica entre as pessoas e o espaço urbano no qual elas vivem. “O som da cidade contém imagens do espaço social e seus ritmos, de acordo com os quais se move a sociedade”. (MEIER-DALLACH e MEIER, 1992:416, apud BARTHELMES, in: BRAUN, 2002:97)

E as sociedades contemporâneas empregam frequentemente a ressignificação das heranças culturais deixadas pelas décadas passadas, as quais comprometem as paisagens sonoras das cidades tanto quanto seus hábitos. Some-se a isso os ruídos provocados pelos carros e demais máquinas, acidental ou intencionalmente, que reverberam nos projetos arquitetônicos os mais diversos e ressoam nos ouvidos dos seus habitantes, somados aos sons de televisões e outros dispositivos midiáticos, e tem-se um vasto repertório de sons com que trabalhar. Melhor dizendo, cada vez mais eles são menos dissociáveis da vida enquanto experiência situada em tempo e espaços.

contracultura e a música popular brasileira entre os anos 60 e 70

por inês nin, dezembro de 2007

 

Mandei fazer de puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na avenida central
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer

Panis et Circenses
(Caetano Veloso e Gilberto Gil,
interpretada por Os Mutantes)

 

Não, não é uma estrada, é uma viagem
Tão, tão viva quanto a morte
Não tem sul nem norte
Nem passagem

Ferro Na Boneca
(Paulinho de Boca de Cantor e Morais Moreira,
interpretada pelos Novos Baianos)

Introdução e breve histórico

O lançamento da bomba atômica pelos EUA nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, em 6 de Agosto de 1945, deu início a um período histórico conhecido como Guerra Fria, gerando conseqüências extremas para qualquer lado que se procurasse. Na verdade, a partir de então, qualquer dissidência entre ideias se tornava rivalidade mortal, e quaisquer ideais em que se acreditasse se tornariam imediatamente ameaças ao seu oposto, ou mesmo seriam considerados conspirações. Isto, é claro, caso não seguissem estritamente as regras da ordem dominante.

À esfera mundial foi imposta uma divisão rigorosa entre dois pólos – os que eram e os que não eram; os fascistas e os socialistas; os dominantes e os que deveriam ser dominados. Tudo isto motivado pela ameaça de uma guerra nuclear, uma vez que era fato conhecido que pelo menos cinco países haviam produzido bombas atômicas, e os outros procuravam investir em pesquisas nucleares, configurando desta forma uma corrida armamentista.

Ken Goffman e Dan Joy, no recém-publicado no Brasil Contracultura Através dos Tempos – do Mito de Prometeu à Cultura Digital, dizem que “no dia seguinte à ‘bomba’ o discurso intelectual e a mitologia popular se concentraram na aniquilação em massa. O niilismo era inevitável.” (GOFFMAN, Ken e JOY, Dan, 2007, p. 250).

No livro, eles consideram como contraculturais mesmo personagens míticos arcaicos, como Abraão e Prometeu, por se encaixarem em uma determinada maneira de pensar que, contrária às ordens então vigentes, pode torná-los atores sociais participantes da construção de contraculturas. Entretanto, é somente a partir da segunda metade do século XX, era de extremos, velocidade e “fusão entre tempo e distância” (GOFFMAN, Ken e JOY, Dan, 2007, p. 251) que se estabelecem as contraculturas tais como as procuramos (re)conhecer hoje.

Retornando à perspectiva histórica que começamos a situar, em se tratando dos aspectos locais, no Brasil não foi diferente: o país estava inserido no contexto do mundo polarizado, ainda que não como um dos agentes centrais da cena. Desde o momento pós-bomba atômica e início da Guerra Fria, durante o primeiro governo Vargas (1930 – 1945), o Brasil se aproximou das idéias anti-comunistas dos EUA e seus aliados. Posteriormente, Eurico Gaspar Dutra em seu governo (1946 – 1951) rompe relações diplomáticas com a URSS. Depois disso, Getúlio Vargas reassume o poder, desta vez por voto popular e “nos braços do povo” e dá continuidade à sua política populista. Em seguida, depois do suicídio de Vargas, Juscelino Kubitschek se torna presidente (1956 a 1961), tendo como sucessores Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961 – 1964), cujas idéias (“Plano Trienal”), não podendo ser levadas adiante, abrem espaço para as reivindicações de uma esquerda cada vez mais radical e, conseqüentemente, para uma direita radical que deseja se impor. A situação tem seu apogeu na ocorrência do golpe militar de 1964, que destitui os cidadãos brasileiros da liberdade de voto e de outras liberdades que viriam a ser cerceadas, censuradas e aniquiladas nos anos que viriam pela frente.

A música popular brasileira engajada

A MPB como a conhecemos hoje surge nos anos 60. Identificada prioritariamente com a bossa nova, a qual, se colocando em oposição à popular jovem guarda, agregava elementos do jazz norte-americano (em especial o bebop e o cool jazz), do samba e de outros ritmos como a valsa, o baião e mesmo o bolero.

Artistas como João Gilberto, Vinícius de Moraes e Tom Jobim, bossanovistas, encontraram aceitação e sucesso em especial perante à crítica e ao público considerado mais exigente; não necessariamente aquele popular, mas um mais sofisticado e que podia ver no minimalismo no qual as canções se estruturavam uma beleza, uma estética simples que combinava muito bem com as areias de Ipanema, no Rio de Janeiro, ou mesmo com a desaceleração das praias do litoral baiano.

À bossa nova seguiram diversas críticas acerca de suas temáticas, que falavam de flores, sorrisos, amores e moças bonitas, temas que poderiam ser considerados alienantes para uma parcela dos críticos e da população. De fato, o resultado ameno das canções bossanovistas, que mais combinavam com fins-de-tarde de sol regados a caipirinha e um violão desplugado, não mais se conectavam com o momento histórico e político no qual o Brasil entrou a partir de meados dos anos 60, com o golpe militar de 64 e o momento de guerra fria que explodia em movimentos pacifistas marcados por atitudes extremas em diversos países do mundo. Teve início, então, uma certa crise no conceito de MPB em seu sentido estrito e clássico, mas foi uma crise criativa, representada especialmente pela tropicália.

Os tropicalistas faziam parte de um movimento de vanguarda que ultrapassava os limites da música, compreendendo também as artes plásticas (Hélio Oiticica, em especial), o teatro e o cinema (sendo influenciado mutuamente pelo cinema novo de Glauber Rocha). Como maiores expoentes no campo da música podemos citar Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes, que agregavam em suas composições influências da Antropofagia de Oswald de Andrade, de vanguardas artísticas como a Pop Art e o Concretismo e da música mundial, como o rock’n’roll dos Beatles e dos Rolling Stones.

As canções tropicalistas são marcadamente políticas, em sentindo amplo, fazendo o uso de linguagem subjetiva e diversas metáforas para falar de alienação (Panis et Circensis), sofrimento (Mamãe, coragem) e de outros temas, sempre de forma irreverente e extremamente criativa.

No início dos anos 70, durante a fase mais dura do regime militar (pós-AI-5), os mais conhecidos artistas ativos brasileiros – dentre eles músicos como Caetano Veloso, Chico Buarque e Geraldo Vandré – se encontravam exilados fora do país, em cidades como Londres ou Paris. O início do governo Médici significou, de um lado, repressões mais violentas àqueles que se opusessem ao regime de qualquer forma considerada suspeita, e de outro, uma política voltada em direção à conquista do apoio da classe média, através de políticas de estímulo ao consumo e propagandas acerca do crescimento econômico do país.

De acordo com Marcos Napolitano (NAPOLITANO, 2001, pp. 83 – 84),

Para o jovem com mentalidade crítica que vivia no início dos anos 1970 restavam três opções: a resistência democrática em pequenas ações no seu cotidiano; a clandestinidade da guerrilha ou o chamado desbunde e a busca por uma vida ‘fora’ da sociedade estabelecida. (…) As comunidades hippies protagonizavam uma nova forma, não comercial, de viver a cultura, baseada na prática do artesanato, na diluição das fronteiras entre vida e arte e na busca de novos valores morais e na busca de um novo comportamento sexual, com base no chamado ‘sexo livre’.

Inserido nesse contexto de tão poucas possibilidades, momento de extremos e severidade da parte do governo, e acima de tudo de ausência de expectativas, se destaca o grupo Novos Baianos, representante da cultura do desbunde que marca este momento histórico. As características híbridas constituintes da canção brasileira (NAPOLITANO, 2003) presentes de forma bem explícita nas canções tropicalistas, se verificam também nas composições dos Novos Baianos, como influência (muito forte, no início).

O grupo, formado por Luiz Dias Galvão, Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor, Baby Consuelo e, durante algum tempo, o bailarino Gato Félix, vivia em uma casa situada na Zona Oeste do Rio de Janeiro que funcionava como uma comunidade hippie. O som do grupo agrega, além das influências tropicalistas, ritmos como o frevo e o rock, e, a partir do disco Acabou Chorare, que conta com a parceria de João Gilberto, também elementos da bossa nova.

O contexto político, neste momento, já não compreendia mais espaço para alguma manifestação de esperança, ainda que irreverente, como havia na tropicália. As canções deste momento já passam para um patamar além da crítica política explícita ou não, para temas que vão do nonsense puro e simples (Ferro Na Boneca, do disco homônimo), como um divertimento, a temas pessoais (Baby Consuelo) ou referentes à cultura brasileira (Brasil Pandeiro, de Acabou Chorare).

O hedonismo e a negação à sociedade tal como ela estava estruturada, com todos os seus problemas e complexidades, é expresso tanto nas letras quanto no modo de vida dos membros do grupo (e de outras comunidades hippies da época). E este estilo de vida se comunica diretamente com a temática abordada em filmes como Hair, de Milos Forman (1979), ou Bem-vindos (Tillsammans), de Lukas Moodysson (2000).

A contracultura hippie dos anos 60 e 70

De acordo com o dicionário britânico Oxford, contracultura se define por:

counterculture. noun [c, u]. a way of life and set of ideas that are opposed to those accepted by most of society; a group of people who share such a way of life and such ideas: the anti-military counterculture of the 1960s.

Essa definição nos ajuda a situar o contexto com o qual dialoga o filme Hair, de Milos Forman (1979). Originalmente uma peça de teatro, que começou off-Broadway e terminou por fazer tanto sucesso na própria Broadway que foi levado ao cinema, o musical retrata de forma bem-humorada o encontro de um grupo de amigos hippies durante os anos 60 com um futuro voluntário da guerra do Vietnã. O espaço é Nova York, Estados Unidos.

Apesar do universo alegre e multicolorido que era a contracultura hippie e pacifista dos anos 60 (identificada com a hoje emblemática expressão peace & love e o movimento flower power), que ganha um tom reforçado por se tratar de um musical (logo, danças coreografadas repentinas e músicas hilárias que fazem parte da história), a película tem um desfecho trágico, contado da forma mais direta mas também delicada, através de imagens permeadas por uma música que é, então, triste e melódica.

O final não poderia ser diferente quando se fala de um momento histórico tão tenso e polarizado como era aquele, representado de um lado pelo rapaz que vem de Oklahoma, típico estado de interior de forte influência religiosa e moralista dos EUA, e se alista para a guerra, acreditando que com isso cumpre um dever para com o seu país; e de outro aquele bando de hippies, de roupas estampadas e alegres – quando as usam –, que vivem não se sabe exatamente como, preenchendo seus dias com drogas para expansão da mente, amor livre e demais formas de liberdade (da forma como a entendiam).

Existe, ainda, um terceiro personagem (encarando assim o grupo como um, pelo lugar que ocupa), que é a moça de família rica e tradicional que se interessa pelo futuro militar, aproveitando ainda para demonstrar uma espécie de dicotomia entre a sua vida pública de colunável certinha e os reais interesses da moça.

Hoje um clássico, Hair é um perfeito exemplo desta contracultura que se localiza temporalmente, identificada com os anos 60 e aquele determinado momento histórico que se vivia nos EUA, no Brasil e no mundo. Os Novos Baianos e as práticas relacionadas ao desbunde, no Brasil, se identificam genericamente com os mesmos ideais e atividades que o grupo de personagens do filme; aqui, ao invés da guerra do Vietnã, vivia-se sob o regime militar.

Em Bem-Vindos a situação é um pouco diferente: apresentando uma postura crítica e bem-humorada acerca dos valores e costumes hippies e convencionais dos anos 70, eles, quando postos em confronto, acabam por encontrar, incrivelmente, um denominador comum entre ambas as partes. O filme se passa em 1975 na comunidade hippie Together, na qual seus membros atravessam mudanças em suas vidas a partir da chegada da irmã de um dos moradores, que vem de um casamento tradicional. Logo passam a fazer parte da vida dela atitudes feministas e “livres”, enquanto que seus filhos têm que encarar uma nova forma de lidar com o conceito de família, seus hábitos e costumes.

Tanto em Hair, em Bem-vindos ou no caso dos Novos Baianos, encontramos representada, seja em ficção ou realidade, o que foi a contracultura hippie de finais dos anos 60 e início dos anos 70. A partir de então, o estilo de vida ligado ao amor livre, a não violência e os respectivos protestos e manifestações entrou em declínio, o hedonismo mais que nunca imperava, pois os ideais com bases sessentistas não mais faziam sentido.

Conceitos de contracultura e a perspectiva temporal

A contracultura também pode ser encarada como um conceito genérico que possui determinadas características, identificadas em variados períodos da história. A respeito disso, Ken Goffman e Dan Joy dizem que

as contraculturas são movimentos de vanguarda transgressivos. O apego contracultural à mudança e à experimentação inevitavelmente leva à ampliação dos limites da estética e das visões aceitas.

Os autores colocam ainda que, de modo geral, as contraculturas se caracterizam pelas “rupturas radicais em arte, ciência, espiritualidade, filosofia e estilo de vida; diversidade; comunicação verdadeira e aberta (…); perseguição pela cultura hegemônica de subculturas contemporâneas e exílio ou fuga.”

Para Stewart Home, autor de Assalto à Cultura, os movimentos contraculturalistas (ou samizdat, como ele escolhe chamar), em conjunto, compõem uma tradição dissidente. O livro possui um enfoque maior nas vanguardas das artes plásticas, ainda que também fale do movimento punk, mais conhecido por sua expressão musical. Assim como o punk, outros não raro extrapolam seus limites e influenciam a música produzida no mesmo espaço e tempo dos quais participam, ou mesmo em outros espaços. Home acrescenta que

enquanto os movimentos sobre os quais estou escrevendo situam-se em oposição ao capitalismo consumista, eles também emergiram de sociedades baseadas em tal modo de organização, e assim não escapam inteiramente da lógica de mercado. (…) No entanto, (…) (eles) nem sempre falham em romper com a ideologia da sociedade reinante.

As características de ruptura, rebeldia, subversão e criação de novas formas de vida e de arte seriam, afinal, os principais pontos em comum entre os movimentos hippies dos anos 60 e 70, o flower power e o desbunde, a tropicália e os Novos Baianos, dentre todos os outros, inclusive o punk que viria em seguida. Todos eles se unem dentro do que seria essa tradição dissidente; possuem um olhar diferente sobre a realidade, a iniciativa de criar a sua própria e a de combater quaisquer formas de cerceamento à liberdade empreendidas em seu momento histórico.

Os movimentos contraculturalistas, que encontram na música uma das suas principais formas de expressão, podem ser considerados os novos ares necessários a respirar por uma sociedade sufocada em regras, dogmas e circulos viciosos, o que invariavelmente acaba por acontecer. Pois as inovações, embora não raro rejeitadas em princípio, logo tentem a ser assimiladas pela lógica da mesma (a de mercado, no caso do sistema capitalista) e então novas formas de subversão e movimentos de ruptura irão surgir. E as sociedades precisam deles para que possam se renovar.

O filme Edukators (Die Fetten Jahre sind vorbei), de Hans Weingartner (2004), fala desse assunto muito bem. Em formato de ficção e situado no momento contemporâneo, ele retrata um grupo de jovens alemães que acredita em ideais anárquicos e se envolve em ações encaradas pelo Estado como ilegais, mas que pretendem fazer os outros (no caso, milionários) refletirem sobre a sua situação perante à sociedade. Também fazem uso de drogas ilícitas, se divertem e acabam por formar um triângulo amoroso.

Jovens, cheios de ideias e esperanças, acabam por se encontrar confrontados com um homem de meia-idade, então milionário, que também na juventude participou de movimentos contraculturalistas em fins dos anos 60. Agora ele é um senhor conformado, complacente com a lei, reacionário, que passa suas noites solitárias contando seus milhões em sua mansão, enquanto degusta um whisky importado.

Invariavelmente notamos que os principais agentes de movimentos contraculturalistas são jovens que assumem para si um papel transformador, aceitando correr riscos para que possam catalizar novas formas de vida. Ainda que suas transgressões, uma vez assimiladas, assumam cores mais brandas ou mesmo cheguem a perder o sentido quando deslocadas de seu contexto, os registros de seus atos possibilitam o acesso a algo do que um dia foram, podendo influenciar gerações vindouras e sedentas por mudanças.

Referências

NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira – utopia e massificação (1950-1980). Contexto, 2001.

NAPOLITANO, Marcos. A Canção engajada nos anos 60. In: CAMBRAIA NAVES, S. & DUARTE, Paulo Sérgio (orgs.) Do Samba-canção à Tropicália. RJ: Relume Dumará, 2003.

GOFFMAN, Ken e JOY, Dan. Contracultura Através dos Tempos – do Mito de Prometeu à Cultura Digital. Ediouro, 2007.

OXFORD Advanced Learners Dictionary, International Student’s Edition. Oxford University Press, 2001.

HOME, STEWART. Assalto à Cultura – utopia subversão guerrilha na (anti) arte do século XX. Conrad, 2005.

indietronica e a cena alemã

artigo publicado em 2006 no site cafetina eletroacústica, voltado para “música, cinema, interlocuções e comportamento” e editado por debora baldelli

Bateu na porta sem ser convidada. A primeira banda que eu ouvi de indietronica foi The Notwist, com seus beats delicados, melodias fáceis mas nada óbvias e um disco irresistivelmente doce, pop e criativo. Me ganharam de cara, os irmãos Acher e seu Neon Golden. Situada em uma deliciosa interseção entre o rock e a eletrônica, a descoberta me fez querer ouvir mais.

É claro que misturar rock com eletrônica não é novidade. Desde as bandas oitentistas como Joy Division/New Order e Depeche Mode, até o novo rock de hoje (fortemente influenciado pelas primeiras), a combinação persiste feliz, multiplicando os horizontes das bandas e projetos que a adotam. Filhas bastardas da eletrônica das pistas são as bastante populares hoje Franz Ferdinand, Kaiser Chiefs, Maxïmo Park e todas as similares que aqui seguem, oriundas da fervilhante cena do Reino Unido, passando pelo fantástico LCD Soundsystem, Liars, !!! e outros, norte-americanos, que seguem por um caminho dançante porém experimental. Estas resultam em um som inquieto, explosivo, fortemente influenciado pelo punk.

Vindo em direção contrária, oriunda de outros nichos e de uma outra eletrônica, a indie eletrônica ou simplesmente indietronica vem ganhando espaço desde o finalzinho do século passado. Nascido a partir de experimentações usando elementos da IDM (“intelligent dance music”, termo algo controverso), glitch e indie rock (ou indie pop), o estilo une bases eletrônicas minimalistas a vocais doces, freqüentemente com estrutura de música pop. E é entre Berlin e Munique que a cena florece.

Inseridos neste contexto, o alemão The Notwist, de Markus e Micha Acher (somados a Martin Gretschman e Martin Messerschmi) é possivelmente a banda mais forte da gravadora Morr Music, de Berlin. Pode-se dizer que tudo se desenvolveu a partir dali: tendo lançado um disco de hardcore, Nook, onde a semelhança com o som do grupo atualmente pára nos vocais, eles lançaram em seguida o disco Shrink (1998), que desempenhou o papel não só de reinventar o som da banda totalmente como já apontava para novas direções em termos musicais. Shrink começa com Day Seven, que demora quase dois minutos para “começar” de fato. É um disco experimental, onde nem todas as faixas possuem vocais e somente as primeiras se encaixam mais ou menos no conceito de música pop, com batidas marcadas e um som líquido, que flui deliciosamente ao longo da gravação. Neon Golden, o disco seguinte, de 2003, é mais bem concebido nos padrões da música pop, possuindo canções cujas batidas, ainda que minimais, chegam a flertar com ritmos mais dançantes como o drum’n’bass. Mas tudo usando linguagem própria.

13&God consiste em The Notwist + Themselves. Themselves é um grupo de hip-hop experimental do selo Anticon, onde, juro, o que menos se encontra é hip-hop como é popularmente conhecido hoje. É hip-hop para as mentes abertas, música avant-garde como alguns chamam, e a união destes dois grupos não poderia ter originado um disco menos criativo, onde são notáveis as contribuições do The Notwist com as melodias pop e os vocais doces, enquanto o disco é levado para caminhos muito pouco previsíveis pelo Themselves.

A banda se desdobra ainda em alguns outros projetos, nem tão paralelos assim, além do 13&God: Console, Lali Puna, Ms. John Soda, John Yoko e Tied + Tickled Trio. Lali Puna é o mais popular destes (consideradas as devidas proporções), sendo composto por Markus Acher e Valerie Trebeljahr, alemã com ares de oriental que canta em inglês e português – com sotaque de Portugal. Entre canções como Contratempo, cantada em português, e Call 1-800-Fear, com uma batida marcada e até dançante, a sonoridade do grupo é fria, leve e charmosa, cheia de pequenas surpresas, remetendo em alguns de seus aspectos ao Stereolab. Já Tied + Tickled Trio é algo como jazz eletrônico experimental, e Console é o projeto solo do programador Martin Gretschmann, este totalmente eletrônico e oscilando entre a eletrônica experimental e aproximações com o electro.

A gravadora Morr Music na prática reproduz o gosto musical de Thomas Morr, seu fundador, que também atua como DJ, abrindo para as bandas ou tocando sozinho, geralmente pela Europa. No site da Morr, graciosíssimo, na parte de “FAQ / demo policy”, eles explicam que aceitam receber CDs demo, desde que não sejam de heavy metal ou electroclash… Há, claro, outras bandas dali que merecem destaque, como The American Analog Set, norte-americanos que produzem um som leve e mais próximo ao indie pop; Múm, islandesa e uma das bandas mais interessantes e fofas da atualidade; Tarwater, mistura experimental de indie rock/post-rock e indietronica, e que já veio fazer shows no Brasil de graça (!) no Resfest do ano passado em São Paulo; Styrofoam, projeto do belga Arne Van Petergen; The Go Find, banda apadrinhada por Arne que se aproxima muitíssimo ao seu som porém soa bem mais rock; ISAN, inglês que produziu o disco mais delicioso de “e-soninho” que eu já ouvi (Lucky Cat) e Electric President, que lançou há pouco tempo um dos discos mais empolgantes da indietronica, onde une da forma mais bonita os elementos que a compõem.

Obviamente a indietronica não se limita à Morr ou à cena alemã, onde o grande hype atualmente é produzir sons minimalistas, mas também se extende por outras áreas onde os artistas incorporaram o estilo: The Postal Service, talvez a mais famosa dentre todas as que eu poderia citar, é um projeto do vocalista Ben Gibbard, do grupo de indie rock Death Cab For Cutie com Jimmy Tamborello, que também responde pelos projetos Dntel e Figurine, e suas músicas são bonitas e pop a ponto de grudar nos ouvidos por dias a fio; há também o Broadcast, que mistura texturas sonoras de um modo que lembra desde Stereolab até My Bloody Valentine; Stars, da respeitabilíssima gravadora canadense Arts & Crafts; Le Tigre, de Kathleen Hanna, conhecida pela banda de riot grrrl Bikini Kill e outras, que juntas constituem um conjunto variado de sonoridades que de uma forma ou de outra são inegavelmente próximas.

Não é difícil perceber que todas essas bandas ou projetos partiram de grupos de rock, que estando abertos para experimentações puderam chegar ao ponto que configura um novo estilo. Alguns dos artistas aqui citados têm ou tiveram bandas de post-rock, mais freqüentes até pela sonoridade que os aproxima, como o Ms. John Soda e o Couch, ou o ultra-criativo artista Four Tet e seu Fridge, ambos ainda na ativa. Mas este último é um caso a parte, que demanda uma imersão por outros ambientes sonoros.