bebop?

texto produzido como parte do conteúdo integrante do site promocional do filme “na estrada”, dirigido por walter salles e lançado no brasil em 2012

Jazz pode ser uma canção doce, com roupagem lo-fi e levada calma, como aquelas que inspiraram a bossa nova, mas não só. Nos anos 40, o jazz, ritmo que tomou forma uns 20 anos antes, era sacudido, revirado e subvertido: foi quando surgiu o bebop.

Mais mau comportada que o próprio rock para o contexto da época, essa vertente do jazz é marcada pela improvisação, o ritmo acelerado e músicos muito talentosos. Naquela época, o padrão de duração das músicas gravadas não podia ultrapassar os 3 minutos, devido às próprias limitações dos discos de vinil de 78 rotações, que aos poucos iam sendo substituídos pelos de 33 e ½ – formato que se tornou padrão. Só que ao vivo, as noitadas eram longas, e as canções variavam muito, dependendo da empolgação dos músicos (e do público).

Situada em Nova York, a Minton’s Playhouse era uma casa de shows que ficou conhecida pelas longas jam sessions que sediava, contando com músicos como Charlie Parker, Thelonious Monk, Dizzie Gillespie e Kenny Clarke tocando sem parar noite adentro. Depois de um tempo, as noites de bop contavam em geral com quintetos formados por trompete, saxofone, piano, baixo e bateria, admitindo variações. A música é complexa e engenhosa, sendo grande parte construída a partir de improvisações – ainda que houvesse quem fizesse diferente.

De estrutura livre, o bebop fez história e se transformou num divisor de águas, inaugurando o que chamamos hoje de jazz moderno. O saxofonista que virava noite adentro tocando jazz se tornaria uma espécie de herói americano, ao passo que o bebop se espalhava como trilha sonora da juventude boêmia. Seu apogeu foi na São Francisco dos anos 50, mesma data e local onde estavam os beats – e de fato, havia uma grande afinidade entre eles. Longas sessões de jazz/poetry teriam então lugar, em que poemas eram declamados ao som de sax, contrabaixo e outros instrumentos.

Fonte: “O que é Jazz?”, de Roberto Muggiati. Ed. Brasiliense, 2008 e pesquisa de Dodô Azevedo.

patti smith e os beats

texto produzido como parte do conteúdo integrante do site promocional do filme “na estrada”, dirigido por walter salles e lançado no brasil em 2012

Patti Smith – Patricia Lee Smith nasceu em Chicago, EUA, em 1946. Em 1967, depois de uma experiência traumática, mudou-se aos 19 anos para Nova York para começar uma nova vida. Lá, conheceu Robert Mapplethorpe, iniciando uma parceria que duraria para a vida toda. Moraram juntos como casal e permaneceram amigos, vivendo ainda sob o mesmo teto durante algum tempo. Colaboravam intensivamente um com o trabalho do outro, chegando a organizar uma exposição juntos no início da carreira. Compartilharam dificuldades, experimentações e descobertas do que viria a ser a carreira de cada um. Patti escrevia poesias e desenhava, e mais tarde veio a se interessar por performances. A ideia de somar poesia a rock’n’roll surgiu naturalmente, primeiro por meio de convites que recebeu, decidindo enfim formar uma banda em 1974. Enquanto isso, Mapplethorpe, que desenhava, elaborava instalações e colagens, descobriu-se fotógrafo, atividade que emergiu à mesma época em que explorava sua própria sexualidade. Ambos eram frequentadores da famosa casa de shows CBGB, onde mais tarde se apresentaria com sua banda. Patti Smith alcançou o sucesso já no primeiro disco, Horses, lançado em 1975. Cantora, compositora, poeta e artista plástica, Patti Smith é grande fã do poeta Arthur Rimbaud e hoje reconhecida como uma das grandes expoentes do punk rock novaiorquino.

O encontro com Allen Ginsberg se deu de forma curiosa: nos primeiros anos de Nova York, ela e Mapplethorpe viviam sempre com o dinheiro contado, muitas vezes faltando para comer. Dotada de um metabolismo rápido, ela estava sempre com fome, e havia conseguido juntar 55 centavos de dólar, o preço exato de um sanduíche de queijo à época. Chegando na lanchonete, o preço tinha subido para 65. Eis que surge um sujeito barbudo se oferecendo para cobrir os 10 centavos restantes, e ainda a convidando para um café. Patti aceitou na hora. Ao conversarem, Patti descobre que Ginsberg a havia confundido com um menino – ele estava chegando nela! Mais tarde se tornariam amigos, e Patti diria simplesmente que Ginsberg lhe deu comida quando tinha fome.

Patti Smith transitou pelo círculo de amizades dos beatniks, com os quais compartilhava o amor pela literatura. Vivendo por um período no famoso Chelsea Hotel, em Nova York, ela e Mapplethorpe foram vizinhos de Burroughs, a quem ela faria visitas constantes. As histórias que permeiam o período em que viveu em Nova York, e em especial a relação com Robert Mapplethorpe, foram relatadas no premiado livro Só Garotos (Just Kids), lançado em 2010.

as drogas e os beats

texto produzido como parte do conteúdo integrante do site promocional do filme “na estrada”, dirigido por walter salles e lançado no brasil em 2012

O nome beat vem da expressão “man, I’m beat!”, frase usada por Kerouac para para dizer que estava detonado (provavelmente por ter bebido demais ou algo do gênero) em uma conversa com o escritor John Clellon Holmes. Mais tarde, Kerouac expandiria o significado do termo para associá-lo também a conceitos como beatificação e outras variações, como “upbeat” (animado, alegre, otimista) e “to be on the beat”, ou estar no ritmo. Beatnik surgiria mais tarde como um rótulo criado pela mídia, somando aos beats a associação com o nome Sputnik, o primeiro satélite artificial a ser posto em órbita da Terra, de origem russa.
E os beats de fato procuravam explorar outros mundos, partindo literalmente em fuga na contracorrente da cultura conservadora americana dominante. É importante reparar que as aventuras e excessos que fazem parte da trajetória alucinada de On the Road foram escritos entre fins dos anos 40 e o começo dos 50. Muito diferente do contexto que se estabeleceu a partir dos anos 60, para o qual os beats foram grandes inpiradores, naquela época aquelas atitudes eram extremamente subversivas, novas e desafiadoras. Eram gritos de liberdade rumo ao desconhecido.

Em 1944, na Universidade de Columbia, Lucien Carr, Ginsberg, Kerouac e Burroughs criaram uma espécie de grupo de estudos que denominavam Ciclo Libertino (Libertine Circle). A partir dele, elaboraram o que chamariam de Nova Visão (New Vision), baseados na vidência como desregramento dos sentidos, conceito retirado da obra do poeta Arthur Rimbaud e no misticismo visionário de William Blake, somado às ideias de W. B. Yeats. Na prática, se tratava de uma mistura de pesquisas e experiências literárias com o uso de drogas visando a alteração de estados de consciência. Carr acabou se afastando do grupo e de Columbia ainda naquele ano, por ter assassinado David Kammerer.

É fato conhecido que os beats usavam diversos tipos de drogas. Jack Kerouac bebia muito, vindo a morrer por conta da cirrose aos 47 anos, e Neal Cassady teria se destruído principalmente devido às anfetaminas. Ao seu redor, como parte das explorações da Nova Visão, havia uma variedade muito maior delas: morfina e heroína, estimulantes como benzedrina e anfetamina, alucinógenos como maconha e haxixe, psilobicina (de cogumelos) e mercalina (dos cactos) e tranquilizantes como o nembrutal. Entre cada uma delas há diferenças grandes. Experimentando LSD com Timothy Leary, Ginsberg viria mais tarde a politizar o uso de alucinógenos, defendendo até mesmo suas potências de paz para a humanidade. Por outro lado, concluiu que nada de bom poderia vir da cocaína.

O primeiro livro publicado de William Burroughs se chama Junkie, reconhecido por narrar essa então desconhecida parcela da sociedade americana, a partir de fatos que ele mesmo vivenciou. Burroughs experimentou de tudo, de veneno para insetos a outras substâncias mais estranhas, mas demonstrava desprezo pelos alucinógenos. Ele e sua mulher, Joan Vollmer, chegaram a viver com Herbert Huncke em uma fazenda de 40 hectares cuja principal plantação era de maconha – para venda, o que não deu muito certo. Em episódio relatado no livro Visions of Cody, de Kerouac, ela teve que ser hospitalizada por abuso de anfetaminas, pois entrara em um delírio sem fim: ele entra no apartamento de Hal Chase, amigo deles, e encontra Joan completamente nua e alucinada, acusando-o aos berros de querer estuprá-la, sem o reconhecer. Huncke está na cama entorpecido e inerte enquanto Ginsberg, também sob o efeito de anfetaminas, datilografa muito concentrado um poema sobre morte e violência.

Na segunda parte do poema Uivo (Howl), até hoje o poema mais conhecido de Ginsberg, grita “Moloch! Moloch!” diversas vezes, e conta que foi escrita a partir de uma alucinação que teve sob efeito de mescalina, em que de fato via o rosto do personagem bíblico Moloch em uma horrível aparição na fachada do hotel em que se encontrava. Acreditando sobretudo na transcendência dos estados da mente por meio dos alucinógenos, Ginsberg foi mais fundo em suas pesquisas, aproximando-se de outras formas de atingir estados alterados de consciência. Interessou-se por zen budismo, inicialmente através de Gary Snyder e fez uma longa viagem ao Oriente, da qual retornaria praticante de meditação. Ainda em Columbia, ele e seus amigos já haviam entrado em contato com doutrinas gnosticistas, graças ao professor Raymond Weaver. Desse modo, as experiências extremas vividas e narradas pelos beats se misturavam a universos líricos e pesquisas místicas. De fato, é inútil tentar dissociar inteiramente uma coisa da outra, assim como, em seus escritos, misturavam ficção e realidade, intensidades poéticas e práticas autodestrutivas.

confluências, luminâncias, filmes

versão original do artigo publicado na revista overmundo nº1, sem cortes

Como se constrói a partir de uma torrente de ideias, invenção? Fazer um filme pode partir da pureza de uma ideia banal; um lapso de estória capaz de carregar imagens e sons que, orquestrados, funcionem em conjunto. Ou pode ser também uma obra construída durante anos anos a fio, detalhada, narrativa, com estruturas. Seja o que for a reger os minutos da empreitada, é certo que os modos de fazer não só são múltiplos como possíveis, muitos deles. E que quando se pretende abarcar um contexto, ou compreender o que se passa em determinado tempo, em determinadas áreas que têm em comum alguma situação, é bom que se considere os caminhos abertos e as novas soluções que vão se encontrando e se cruzando.

Ao falarmos de cinema, em alguns textos, críticas, rememórias e, principalmente, em debates e conversas, é reconhecida uma certa trajetória que vem se criando nos últimos anos em diversas instâncias no Brasil. Já faz parte da história que só tocamos com alguma distância, parcimoniosamente e por meio de resquícios, os tempos em que filmes necessariamente eram peças caras a serem feitas vagarosamente, a duras custas e mediante diversas parcerias. Um intervalo brusco que interrompeu quase que completamente a produção brasileira, durante a era Collor e que culminou com o fechamento da Embrafilme, balançou severamente o contexto local, mas  já podemos falar em mais de uma década após o “cinema da retomada”.

E talvez tenha sido só nos anos mais recentes que começaram a aparecer filmes capazes de destoar bastante das referências mais evidentes do que seria uma tradição nacional. Ainda que indiscutivelmente brasileiros, mesclando referências de um mundo globalizado às quais já nos acostumamos com estórias e modos de ser e fazer tipicamente locais, os filmes não fazem força para pertencerem a este ou àquele lugar; muito menos para reproduzir complexas fórmulas de produção ao modo industrial como outrora.

As facilidades de produzir e criar, vindas com as novas tecnologias – câmeras de vídeo digitais em alta resolução, que se aproximam em muito à qualidade da película em 35mm e que superam infinitamente em facilidade e custos de produção; câmeras de celular e diversas outras para os mais variados gostos, resoluções e texturas emergiram ao mesmo tempo em que a internet despontou como fonte primeira para o acesso a um conteúdo antes restrito a festivais, locadoras e, principalmente, à remessa que o amigo do amigo trouxe da sua última viagem ao exterior. Hoje em dia já é chavão falar de tudo isso, mas ao mesmo tempo o resgate parece indispensável quando se quer entender em que contexto vivemos e como se tornam possíveis certas experimentações e olhares. Sim, porque devido a essa enorme difusão e troca de conteúdo possibilitada pela internet, um cultivo de filmes e diretores de linguagens mais diversas e oriundos de partes do mundo menos participantes da grande mídia pôde ter lugar.

Marcelo Ikeda fala, não sem razão, em seu recém-lançado livro (junto a Dellani Lima) “Cinema de garagem – um inventário afetivo sobre o cinema jovem brasileiro do século XXI”, que atualmente o Ceará pode estar mais próximo de Belo Horizonte, das Filipinas ou de Taiwan que da Bahia, quando se trata de cinema. Novos cruzamentos de ideias e inspirações acontecem, portanto, a partir desse meio que reúne a linguagem e as características de tantos outros – a internet – tanto em termos de comunicação interpessoal quanto de difusão e acesso, propriamente.

Não se pode esquecer, no entanto, da batalha que se trava nesse campo, de um lado estando o direito ao livre acesso à informação e, do outro, os interesses das grandes indústrias decadentes, que se sentem injustiçadas pelas trocas atuais e, principalmente, pelas perspectivas que o futuro lhes reserva. Essa celebração do acesso ao conhecimento não pode, infelizmente, ainda, vir desgarrada de uma militância política pela manutenção e ampliação dos modos de uso e da própria existência do espaço da rede como ele se apresenta no momento.

E quanto à estética, a que maravilhas essas mudanças nos abrem? Pois não são só elas, as tecnologias, mas todo um contexto em torno, gerado por diversas mudanças conjunturais, que torna viáveis empreitadas com praticamente nenhum dinheiro, e que muitas vezes não esperam mais receber qualquer tipo de incentivo governamental ou de empresas. Ainda que, como toda novidade, essas formas emergentes de fazer – que se refletem na própria imagem – ainda não demonstrem inteiramente sua sustentabilidade e não forneçam todas as respostas para o futuro, esse futuro se constrói por meio de presentes um tanto entusiasmantes, desviantes e promissores.

É típico das estruturas canônicas e estabelecidas não querer abarcar pequenas ou grandes incertezas. Como diz Cezar Migliorin em seu crucial ensaio intitulado “O cinema pós-industrial”, publicado na revista eletrônica Cinética e em diversos outros meios pela rede, faz parte da lógica capitalista da grande indústria a estrutura de produção hierárquica, extensa e planejada em seus mínimos pormenores, em que qualquer surpresa ou variação representa um risco ou mesmo uma anomalidade, por não serem suas consequências passíveis de prever.

Nesse ambiente que floresce talvez mais fortemente desde os filmes de Karim Aïnouz, primeiro “Madame Satã” e depois “Um Céu de Suely”, junto ao grande boom de documentários, assistimos, faz pouquíssimo tempo, à emergência de pequenos grupos que começam a produzir artesanalmente seus filmes, e não somente curtas, mas – e a surpresa – também longas! Antes deles, é importante lembrar, o cinema nacional vinha se fortalecendo por outros caminhos, em grande parte pela crítica, que formou sólidos grupos atuantes durante vários anos através de revistas eletrônicas e também de cineclubes.

Faz sentido pensar que essa movimentação vinda de muitos lados – universidades, cineclubes, festivais, revistas de crítica e uma crescente produção de curta-metragens, em grande parte identificada com realizadores que assinam sozinhos ou em duplas – possa ter motivado a criação de grupos ou coletivos que produzem de forma independente e colaborativa. Não busco aqui qualquer sentido lógico, mas uma maneira de pensar frente ao contexto que se delineia.

É comum, cada vez mais, também nas artes plásticas, hoje chamadas visuais ou simplesmente artes, que as pessoas procurem se organizar através de coletivos para produzir trabalhos muitas vezes mais anárquicos ou somente diferentes de seus projetos pessoais. Ao mesmo tempo, nesse sentido, também se mantém no campo das artes cada vez mais forte um foco na figura do autor destacado individualmente como criador, assinando as obras de maneira que seu nome frequentemente acabe ganhando mais visibilidade que o próprio trabalho. Não sei se isso pode ser chamado de contrafluxo ou somente uma evidência de que ali pode haver um acirramento de uma lógica anterior, por um lado, e de outro uma inspiração de ordem mais diversa e particular, focada em pequenos grupos e ideias que se relacionam não por questões locais ou por fazerem parte desse ou daquele movimento, mas por motivos puramente estéticos ou políticos num sentido muito mais amplo – em escala global, ainda que em certa instância horizontalizada.

Gostaríamos de falar aqui de um grupo em especial, que tem chamado a atenção em alguns festivais e mostras pelo Brasil e no exterior por sua próspera produção nos anos recentes, o Alumbramento. São cinco longas finalizados – sendo um de fato uma reunião de curtas em torno de um tema, chamado “Praia do Futuro” – e 29 curtas, feitos entre 2007 e 2011. A produtora, grupo ou coletivo Alumbramento teve origem na primeira turma do extinto projeto Escola do Audiovisual, formação com duração de dois anos promovida pela Prefeitura de Fortaleza a partir do ano de 2006, na época em que Beatriz Furtado era Secretária de Cultura. O curso, pensado em formato inovador, com professores diferentes trazidos a cada semana de várias partes do país, teve problemas de verbas logo no começo de 2007. Em tempos em que não havia ainda o curso de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Ceará, iniciado em 2010, a ameaça de interrupção motivou uma ocupação feita pelos alunos durante duas semanas no local onde eram ministradas as aulas, de maneira a garantir que as mesmas continuariam.

Findo o curso, foi formada a Alumbramento. O que de mais importante notamos naquela que mais tarde viria a se tornar uma produtora de fato, é a aparente ausência de hierarquia entre seus membros, que chamam a si mesmos de “família” e trabalham frequentemente uns nos filmes dos outros, alternando funções de acordo com o projeto. Outros grupos têm surgido pondo em prática formatos parecidos, como a Teia, baseada em Belo Horizonte, ou até a Duas Mariola, de Felipe Bragança e Marina Meliande, do Rio de Janeiro, ainda que nesta última o grupo de amigos – somente 6, mais alguns parceiros – mantenha em geral mais ou menos fixas as funções de cada um dentro dos filmes.

Os filmes da Alumbramento são tão diversos quanto podem ser as ideias de seus membros; não existe unidade organizada que determine uma orientação estética específica para os filmes. Mesmo assim, como todo grupo de amigos que se reúne em torno de ideias e vontades comuns, é possível notar semelhanças, ainda que porventura vagas, entre um filme ou outro, além de diálogos estabelecidos com os trabalhos de outros cineastas. Estes têm em comum frequentemente o modo simples de produzir, o experimentar, além de filmes e diretores de referência.

É possível citar alguns filmes que ganharam destaque recentemente, sobre os quais os holofotes incidem mais ou menos junto a um barulho alavancado quase em toda sua totalidade dentro do campo do cinema: primeiro pelo Festival de Tiradentes, ocorrido no fim de janeiro desse ano, e mais tarde na Mostra do Filme Livre, que se extendeu ao longo do mês de março. De lá pra cá, os espaços têm sido abertos cada vez mais para uma crescente politização dos debates em torno da cultura, suas formas de produção e acesso, em grande parte motivada pelas mudanças no cenário global da cultura digital e pelas alterações políticas pelas quais vem passando o Brasil nesse momento, com a mudança de governo.

“Estrada para Ythaca”, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti (Alumbramento); Desassossego – Filme das Maravilhas”, obra coletiva composta de fragmentos com diversos diretores, em projeto concebido por Felipe Bragança e Marina Meliande (Duas Mariola, Teia, Blum Filmes, Alumbramento, Filmes do Caixote, Karim Aïnouz, Gustavo Bragança, Arissas Multimídia); “O Céu Sobre os Ombros”, de Sérgio Borges (Teia); “Os Monstros”, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti (Alumbramento), dentre outros, compõe esse rol bem diverso de filmes que tem ganhado atenção.

Não se pode dizer que os trabalhos abordem, diretamente, qualquer questão política evidente. Não são nem de perto panfletários e sequer tratam de assuntos grandiosamente históricos – muito pelo contrário. Há uma fala que resume um dos caminhos tomados, retirada do catálogo de um cineclube que exibia curtas de diretores de origens semelhantes (Luisa Marques, Leonardo Amaral e Sérgio Borges, de novo):

Deve haver algo de sintomático de um estado das coisas nesses filmes que abandonam a construção de grandes narrativas, vontades de simbologia e preferem se recolher ao mínimo, à narração do quintal ao invés do país, nessas sinopses de uma única linha. O mundo é possível demais, múltiplo demais. Ideologias não servem, políticas não satisfazem, teorias e instituições não dão conta. Diante disso, resta se recolher às suas certezas mais acessíveis: eu, minha casa, minha rua, meus amigos e parentes. Diante da estafa de as mãos poderem abraçar muitos quilômetros, agarra-se o que se tem à vista e a história a ser contada é a sua própria, e os fatos são reles e quase cinzas. Um cinema que, por trás de toda a ternura de suas imagens, revela um certo desalento contemporâneo: as câmeras tentam agarrar cada pequeno momento, como se, diante de tudo, só nos restasse nos abraçar, silenciosamente. (Affonso Uchoa, Cineclube Curta Circuito, BH, junho de 2010)

Ofuscando a melancolia impressa nessas palavras, Felipe Bragança surge, em dois textos publicados recentemente – “Óvnis, fantasmas e cinema”, O Globo, Caderno Prosa & Verso, 26 de junho de 2010 e “Meu último texto de cinema”, que aparece encurtado na versão online do mesmo caderno, em 12 de março de 2011 – defendendo um escopo bem maior de filmes possíveis que começam a existir e ganhar espaço.

De fato, se o texto de Uchoa procurava nortear a presença dos três filmes, juntos, no cineclube, ele também aponta para uma variação possível no campo da narrativa num sentido mais amplo. A imagem que sai por aí à procura, mas que, por caminhos obscuramente bonitos consegue apresentar um mundo particular àquele que assiste, mesmo que esse mundo apareça esquisito, incerto, contendo rasgos muitas vezes incorporados à imagem como parte dos arranhões inevitáveis a qualquer tomada de riscos. As palavras de Uchoa me recordam o entusiasmo transmitido pelas palavras de Deleuze quando falava do cinema de Godard e de outros nos 60, que corajosamente se dignificavam a buscar, em caminhos nunca dantes trilhados, sentidos outros para a imagem que então construíam.

Bragança, por sua vez, aponta justamente para estranhezas: ao invés de procurarmos um cinema coeso, de podermos falar em “cinema brasileiro” querendo compreendê-lo em sua integridade, ou ainda de cobrarmos dos filmes que atendam às nossas expectativas de olhares viciados, podemos procurar ver as exuberâncias errantes que vão começando a emergir, ousadas e imperfeitas, mas belas! E de lugares que nos são próximos, mesmo cheias de desafios a serem trilhados.

Portanto, é digno que sejam reconhecidos esses caminhos experimentais, trilhados ora com mais ou menos dúvidas ou certezas, mas propondo-se a lançar-se em novas aventuras “monstruosas” o quanto puderem ser. O modo de fazer contamina os filmes, que por sua vez são contaminados pelo terreno em volta, pelas trocas entre amigos, festivais e demais festividades – não sem seriedade, não sem zelo. Mas a cautela excessiva, ou, pior, a crítica que poda mais que estimula à criação, buscando os filmes “certos”, efeitos precisos e cobrando até mesmo um distanciamento histórico para que se possa falar do que vê em volta… Limita mais do que expande, cobrando contenção.

É louvável que se procure reconhecer os próprios pés, percorrer os próprios caminhos e encontrar confluências, formando redes que possam se diferenciar de suas antecessoras. Em suma, arriscar, gerando significâncias. Sem o risco, e sem agarrar as oportunidades conquistadas em um cenário emergente, corre-se o risco de virar cinza. E nem pó: cimento, que engessa a terra fértil por baixo dos pés.

realismo no cinema segundo gilles deleuze

A “invenção” (…) não deve ser entendida como uma descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apóiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral.
(Michel Foucault)

Em algum momento se disse que caberia à filosofia, ou mesmo ao pensamento como um todo, procurar entender as ideias prontas que nos são fornecidas e encontrar meios de desmontá-las por dentro – tal como se pode fazer com um objeto, por exemplo. A alegoria aqui se apresenta mais no sentido de desmontar os conceitos, como se fossem um brinquedo ou um telefone velho, para poder entender como foram produzidos: os processos pelos quais passaram até se tornarem o que são.

1.1 Ação

“Como a produção e a aparição de algo novo são possíveis?” (DELEUZE, 1983, p. 11), questiona Gilles Deleuze no começo do livro A Imagem-movimento (1983). Poderia também ser: como um sistema fechado e já estabelecido recebe uma ideia nova? Um fenômeno que lhe é estranho? Deleuze então completa: “Sabemos que as coisas e as pessoas são sempre forçadas, obrigadas a se esconder quando começam. Elas surgem num conjunto que não as comportava, e devem pôr em evidência os caracteres comuns que conservam com esse conjunto para não serem rejeitadas.” (ibid.)

O cinema em seus primórdios aparecia como uma novidade; uma descoberta curiosa, um corpo estranho. Mesmo os irmãos Lumière haviam dito que a invenção – fotogramas estáticos projetados em tela grande numa sala escura em tal velocidade que os perceberíamos em movimento – poderia ser somente uma curiosidade a ser explorada durante um certo tempo, para ser então esquecida. Bergson, contemporâneo à invenção do cinema, aborda “o mecanismo cinematográfico do pensamento e a ilusão mecanicista” no quarto capítulo da obra A Evolução Criadora, e, como diz Deleuze, “batiza a fórmula injusta: a ilusão cinematográfica” (ibid., p. 10). O cinema não faria mais que reconstituir o movimento a partir de cortes imóveis, provocando a ilusão de movimento, tal como funciona a nossa própria percepção, ou o modo como conhecemos o mundo: “em vez de nos prendermos ao devir interior das coisas, postamo-nos fora delas para recompor artificialmente seu devir” (BERGSON, 2006, p. 330-331).

Quanto a isso, Deleuze argumenta que, partindo da reprodução da ilusão, o cinema, ao se emancipar do mero e constante mecanismo de projeção e reprodução de uma ilusão e, avançando em seus caminhos, teria conseguido produzir um corte móvel – a imagem-movimento. Para Deleuze, a percepção imediata, ao contrário, produziria apenas cortes imóveis, seleções apreendidas do mundo que é em si mobilidade(1).

O próprio Bergson teria elaborado, no primeiro capítulo de Matéria e Memória, a tese na qual Deleuze se baseia para pensar o cinema. Bergson entende o mundo como um conjunto de imagens. Percebemos o mundo em referência ao nosso corpo, no mundo material, e portanto os objetos todos a nossa volta comportam-se como imagens que a ele se referem. Em sua filosofia, Bergson elimina a oposição entre o mundo físico do movimento e o mundo psicológico da imagem. As imagens não são o duplo das coisas. São as próprias coisas.

Imagens, Deleuze acrescenta, equivalem a movimento(2). Ao cinema faltaria esse centro de referência, e, “a partir deste estado de coisas, justamente porque lhe faltam centro de ancoragem e horizonte, os cortes que opera não o impediriam de remontar o caminho pelo qual desce a percepção natural. Em vez de ir do estado de coisas acentrado à percepção centrada, ele poderia remontar rumo ao estado de coisas acentrado e dele se aproximar” (DELEUZE, ibid., p. 78).

E completa: “todas as coisas, isto é, todas as imagens, se confundem com suas ações e reações: é a variação universal” (ibid.). O processo de apreensão das coisas no mundo, de acordo com Bergson, se daria partindo da percepção (reconhecimento das imagens) -> afecção (reflexo das imagens no corpo) -> ação (exteriorização desse movimento).

Para Deleuze, essa divisão em conceitos serve para identificar a forma que assume a imagem cinematográfica em suas variações possíveis, tendo em vista os elementos que contribuem para sua composição, tais como a temática, o enquadramento, a montagem e a mise-en-scène. O foco pode recair, grosso modo, sobre o que é visto (o plano-sequência, caracterizando a imagem-percepção); expressões de sensações (close-ups e ênfase na face, a imagem-afecção); espaços degenerados (repetição ou entropia acelerada, a imagem-pulsão) ou o foco poderia ser direcionado à duração da ação (plano médio, a imagem-ação).

A imagem-ação pertence ao universo do Realismo. Narrativas históricas e sociais têm lugar em espaços e tempos determinados que participam e atuam sobre o sujeito da ação, que por sua vez deverá reagir. A chamada grande forma da imagem-ação é compreendida pela estrutura SAS’ (situação-ação-situação, em que a ação é capaz de transformar a situação). “A ação é em si própria um duelo de forças, uma série de duelos: duelo com o meio, com os outros, consigo mesmo” (ibid., p. 179), afirma Deleuze. É a saga do herói que irá colidir com a Ambiência ou o Englobante(3) à sua volta, ou com indivíduos, ou situações, e aceitará o desafio. Ao longo do percurso, ele poderá recuar, sofrer e passar por diversas provações, desde que, ao final da jornada, a situação se modifique. Nela se incluem o herói, o meio e os indivíduos à sua volta.

A diferença principal colocada por Deleuze entre a grande e a pequena forma reside essencialmente em qual dos dois elementos centrais, a ação ou a situação, irá orientar os movimentos da outra: no caso da pequena forma, ao contrário do ambiente atuar como meio que culmina na ação, para enfim modificá-la4, cada pequeno movimento ou gesto revela aos poucos a situação. É um cinema concentrado mais nos detalhes do cenário, na indumentária, nos objetos e nas reações dos corpos que nos grandes feitos, mas que, ainda assim, possui uma estrutura fechada, em que ações modificam situações. A forma, representada pelo esquema ASA’, possui uma imagem indicial5, atuando primeiro por falta (a ação inicial revela indiretamente a situação) e depois por distância (“uma diferença muito pequena na ação ou entre duas ações induz uma distância muito grande entre duas situações”(6)).

Os movimentos da imagem-ação, segundo os modos de operação da pequena forma, são apresentados portanto como elipses (que opera por ausência). Diferentemente desses, a imagem-ação da grande forma atua por espirais (que gira em torno de um centro). dentre as quais se distinguem dois signos: o synsigno(7), que corresponde a “um conjunto de qualidades-potências enquanto atualizadas num meio, num estado de coisas ou num espaço-tempo determinados” (ibid., p. 179-180), e o binômio, no qual uma força aparece em contraposição à outra, em duelo. A realização da imagem-ação então se dá tanto por disfarces, ostentações, armadilhas – em que os gestos se direcionam ao outro – quanto pelo próprio embate, em especial quando as forças opostas aparecem em um mesmo quadro.(8)

Há uma série de gêneros que podem ser identificados com a imagem-ação. Enquanto a pequena forma é mais afim ao burlesco, à comédia de costumes e ao filme de época(9), a grande forma tem a sua manifestação por excelência no grande filme histórico. Ainda assim, ela é capaz de comportar uma variedade bem razoável de gêneros: o documentário, o western, o filme psicossocial; além do fantástico, o extraordinário, o heróico e, não sem destaque, o melodrama. O que é fundamental é que a estrutura, própria do realismo, seja mantida. Isto é, “meios e comportamentos; meios que atualizam e comportamentos que encarnam. A imagem-ação é a relação entre os dois, e todas as variedades dessa relação” (ibid., p. 178).

No centro do espiral da grande forma está o Englobante. Ali, o meio atua como representação orgânica, capaz de reunir tudo e todos a sua volta em um mesmo organismo que respira. Os cenários dos filmes western, bem como seu enredo, são a melhor maneira de tornar isso visível: as extensas paisagens em que céu e terra ganham destaque, além das festas coletivas, exibem um mundo que varia, que se contrai e se expande. O herói participa desse mundo e aparece como representante da comunidade. Como tal, ao fim do trajeto deverá, através de suas ações, igualar-se ao meio, reestabelecendo assim a ordem.

Sobretudo nos filmes de John Ford, aponta Deleuze, a mera compreensão dessa ordem restaurada como cíclica não daria conta de antever os seus meios. É antes uma ordem espiral, em que S não equivale a S’, mas, ao contrário o que ocorre é uma harmonia conquistada sob muito custo, um avanço – a manifestação de um sonho. Torna-se evidente, então, uma ética embutida na imagem, expondo a trajetória de um personagem sob o ponto de vista moral de um povo que visa conquistas e desbravamentos. As injustiças deverão ser combatidas, o sonho deve ser revigorado e os inimigos e traidores eliminados. A imagem tem uma missão, que é fazer o público sonhar junto aos personagens.

Em 1915 G.W. Griffith lançava Nascimento de uma Nação(10), ainda na fase do cinema mudo. O filme, dentre outros méritos históricos e controvérsias políticas que lhe são atribuídos, tornou-se referência na narração do chamado sonho americano. Deleuze afirma que a Ford interessava antes de tudo que a comunidade (estadunidense) pudesse “ter certas ilusões a respeito de si mesma” (ibid., p. 185-186). Essas “ilusões” fazem parte de um conjunto de crenças que chegariam, até hoje, a aparecer em muitos filmes de Hollywood. Vieram a constituir uma forma própria – a imagem-ação –, tal que o mesmo filme fundamental fosse filmado e refilmado inúmeras vezes, e cuja matriz, de certo modo, reside na narrativa dirigida por Griffith.

Não é à toa que Deleuze estabelece uma comparação direta entre o cinema clássico-narrativo americano da grande forma e as concepções históricas apreendidas por Nietzsche. A afinidade se dá pela simples razão de que, grosso modo, todos os gêneros ficcionais clássicos americanos apresentariam em maior ou menor grau uma série de valores característicos de uma narrativa histórica. O sonho americano é compreendido dentro de um Englobante, que abarca as mudanças das sociedades e as carrega em direção a um fim comum, lhes conferindo sentido e legitimidade. É a história dos vencedores, na qual as minorias se fundem e chefes são eleitos para defender o sonho e atingir aquilo que acreditam lhes ser predestinado.

O mesmo tipo de raciocínio se manifesta no cinema soviético, e este consiste na crença na finalidade de uma história universal. A diferença reside em que, se os russos articulavam dialeticamente essa representação orgânica – donde surge Eisenstein, com suas teorias seminais para a montagem cinematográfica –, para os estadunidenses “ela é, sozinha, toda a história, a linhagem germinal na qual cada nação civilizada se destaca como um organismo, cada uma prefigurando a América” (ibid., p. 186). O movimento de superação de obstáculos para a fundação de uma nação-civilização traz também ecos das narrativas bíblicas, transpostas para o cinema em inúmeras variações e formas que iriam narrar, em essência, a mesma história. As civilizações decadentes são vistas como organismos doentes, cujos males o futuro deverá se encarregar de sanar e encontrar os modos de vencer.

É a história monumental. Ela pressupõe que “os grandes momentos da humanidade se comunicam pelo ápice” (ibid., p. 187) e se orientam segundo normas comuns. Colecionam efeitos sem causas precisas, mas se dispõem a identificar, paralela e dualisticamente, personas representativas que se repetem, tais como ricos e pobres, o homem justo e o traidor etc.(11) Caberá, pois, à história antiquária, compor com detalhes e ornamentos os grandiosos eventos da história monumental, seja ampliando seus duelos em grandes batalhas, seja na reconstituição de objetos da intimidade e do cotidiano dos sujeitos.

Nesse ambiente, aparecem cores referenciais em tecidos de época e máquinas, por serem estas últimas símbolos representativos fundamentais à emergência ou ao fim de civilizações. A história crítica, renomeada por Deleuze como ética, soma-se às duas anteriores como dispositivo moral encarregado de denunciar os males que acometeram os episódios do passado. Essa ética estará a serviço da retomada do sonho, sucessivamente, de modo que a América seja sempre redescoberta.

1.2 Variação

“Mas pode uma crise da imagem-ação ser apresentada como algo novo? Não foi este o estado constante do cinema?” (ibid., p. 252), ecoa a pergunta novamente, desta vez no último capítulo do livro. Deleuze relaciona a crise da imagem-ação ao contexto global do pós-guerra. Esta estrutura, bem como a indústria do cinema nos moldes em que vinha se mantendo, teria entrado em declínio juntamente à “guerra e seus desdobramentos, a vacilação do ‘sonho americano’ sob todos os seus aspectos, a nova consciência das minorias, a ascensão e a inflação das imagens tanto no mundo exterior como na mente das pessoas” e “a influência sobre o cinema dos novos modos de narrativa experimentados pela literatura” (ibid., p. 253).

A consciência política emergida no pós-2ª Guerra desencadeou uma série de transformações em várias áreas da produção de conhecimento. Os efeitos das guerras seriam sentidos aos poucos, e cada país teria que lidar aos seus modos com um contexto político reconfigurado. As mudanças trazidas com a nova ordem política serviriam então como orientação para os interesses de cada nação, ainda que, de modo geral, juntamente à reconstrução das cidades e à mudança de estratégias políticas, se mostrasse também necessária uma renovação no campo das artes. O contexto alterado provocava uma demanda por novas formas de lidar com os sonhos, as ideias e sobretudo os ideais que apareceriam revestidos por formas estéticas em salas de cinema, livros ou exposições.

Uma nova forma de fazer cinema que emergia, então, diante desse ambiente, se propunha a contemplar a realidade dispersiva e os acontecimentos imprevistos, procurando orquestrar uma simultaneidade de memórias e situações em uma totalidade aberta. As formas tradicionais do cinema clássico-narrativo estadunidense, isto é, SAS’ e ASA’, não perderiam, no entanto, seu forte apelo frente ao público, como forma consolidada de se contar estórias e histórias. Não à toa, até hoje os grandes sucessos comerciais em geral seguem a estrutura da imagem-ação. Mas o que se verifica, a partir da Segunda Guerra, é uma guinada significativa rumo ao desconhecido, a uma reinvenção da forma a partir de uma ideia mínima, em um mundo em que as estruturas antes tão sólidas apareciam em ruínas.

Hitchcock havia, anteriormente, trazido uma série de inovações para o cinema. Mas o que sua imagem-mental (ou imagem-relação), nas palavras de Deleuze, fazia, de fato, era questionar a natureza das formas já existentes – percepção, afecção, ação –, compondo um cinema profundamente rico, mas que ainda assim não seria capaz de subverter por completo os paradigmas da imagem-movimento. A mudança efetiva, diante do contexto do pós-guerra, se daria primeiramente na Itália, seguida da França e da Alemanha. Os novos rumos também seriam verificados mais tarde no cinema que se fazia nos EUA fora de Hollywood, bem como no cinema novo e no cinema marginal brasileiros. A conjuntura global se modificava, e com ela os modos de produção de subjetividade.

“Não acreditamos mais que uma situação global possa dar lugar a uma ação capaz de modificá-la. Também não acreditamos que uma ação possa forçar uma situação a se desvendar, mesmo parcialmente. Desmoronam as ilusões mais ‘sadias’” (DELEUZE, 1983, p. 253). O trecho explicita o paralelo direto estabelecido entre os vínculos sensório-motores na imagem – que corrrespondem aos “encadeamentos situação-ação, ação-reação, excitação-resposta” (ibid.) típicos da imagem-ação – e a situação das crenças políticas que havia então sofrido sérios abalos. O realismo não poderia mais dar conta da representação das ideias nesse momento reconfigurado, que possibilitava que novos modelos e novos formatos fossem postos em prática, de maneira experimental.

“A situação não se prolonga diretamente na ação: não é mais sensório-motora, como no realismo, mas, antes, ótica e sonora, investida pelos sentidos, antes de a ação se formar, utilizar e afrontar seus elementos” (DELEUZE, 1985, p. 13). O neo-realismo italiano e, em seguida, a nouvelle vague francesa, são movimentos nos quais essas mudanças tiveram seus ecos mais evidentes. A definição do primeiro já diz: “Em vez de representar um real já decifrado, o neo-realismo visava um real, sempre ambíguo, a ser decifrado; por isso o plano-sequência tendia a substituir a montagem das representações” (ibid., p. 9). No entanto, no que esses cinemas abandonavam os ideais de perfeição cíclica do mundo e as grandes utopias da modernidade, abraçavam para si questões políticas urgentes, mesmo que em seus filmes não fossem apresentar quaisquer soluções fáceis a respeito.

No cinema feito hoje, as linguagens adotadas ainda bebem muito em cineastas como Godard, Truffaut, Rosselini e De Sica, associados à nouvelle vague e ao neo-realismo italiano (e mesmo Godard continua a reinventar sua forma de fazer filmes e dialogar com o mundo). A eles, soma-se um sem número de novos referentes que vieram a apresentar seus repertórios estéticos, de maneira tão plural que a eles Deleuze teria que se dedicar quase que caso a caso.

O cinema moderno já começa a sofrer mutações consideráveis quando se fala em unidades específicas de pensamento, ou normas estéticas comuns. Da fragmentação e do afrouxamento dos vínculos sensório-motores rumo a imagens puramente ópticas ou sonoras, uma narrativa descontínua – se comparada ao cinema clássico-narrativo – e livre tanto para tender para o exagero quanto para adotar estruturas mais mínimas, assume em algum ponto uma curva possível na trajetória. Não há regras definidas a serem prescritas. Somente movimentos ondulatórios rumo ao desconhecido, cujo futuro é construído constantemente a partir de colagens, invenções e ressignificações desse passado que se consolida como repertório disponível, em uma linguagem sempre em movimento.

Notas

(1) “O modelo seria antes um estado de coisas que não pararia de mudar, uma matéria fluente onde nenhum ponto de ancoragem ou centro de referência seriam imputáveis. A partir desse estado de coisas, seria necessário mostrar como podem se formar centros em pontos quaisquer, que imporiam vistas fixas instantâneas.” (DELEUZE, ibid., p. 78)

(2) Deleuze em citação a Bergson: “A verdade é que os movimentos são muito claros como imagens, e que não cabe procurar no movimento outra coisa além do que nele se vê”.

(3) Deleuze define a Ambiência ou o Englobante, em A Imagem-movimento: “Aqui, a qualidade principal da imagem é o sopro, a respiração. É ela que não só inspira o herói, mas também reúne as coisas em um todo da representação orgânica, contraindo-se e dilatando-se segundo as circunstâncias.” (DELEUZE, 1983, p. 166)

(4) Existe ainda, na grande forma, dois modos variantes: SAS, em que o meio se apresenta como inabalável, só restando aos sujeitos da ação resistirem a esse meio, e SAS”, em que o sujeito passa por um processo de degradação decorrente do meio à sua volta, caracterizando uma patologia desse último.

(5) Deleuze se refere à semiótica pierciana quando fala em índices e signos.

(6) Ibid., p. 202, grifo do autor.

(7) Em apropriação ao termo “sinsigno”, de Pierce, Deleuze esclaresce que o uso do prefixo “syn” insiste não sobre a individualidade de um estado de coisas, como indicaria “sin”, mas justamente sobre as várias qualidades ou potências a serem atualizadas. O prefixo “syn” vem do grego remete à ideia de reunião espaço-temporal.

(8) Daí a identificação com o plano médio, também chamado de plano americano devido ao enquadramento que possibilita que o revólver do homens entre em quadro – como é o caso do western.

(9) Mas não somente. Ela irá comportar, também, o western, o documentário e outros, desde que sua estrutura narrativa seja respeitada, tal como ocorre na grande forma. Os gêneros, assim como as formas narativas, podem oscilar e variar caso a caso, comportar mais de uma estrutura e assim por diante. Para que isso seja apreendido, somente a análise de obras específicas pode evocar as referências precisas.

(10) The Birth of a Nation, no original.

(11) Eisenstein, em análise da montagem paralela feita para ilustrar tais representações, irá criticar essa lacuna deixada pelos efeitos expostos sem causa localizada. Apropriando-se ao mesmo tempo de visões dialéticas e monistas, irá em busca das “verdadeiras” causas, apoiando-se na teoria da luta de classes e em versões reconciliatórias da história no cinema.

 

Referências

BERGSON, Henri. A Evolução Criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 2006.

DELEUZE, Gilles. A Imagem-movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

DELEUZE, Gilles. A Imagem-tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

NIETZSCHE, Friedrich. Untimely meditations. Cambridge: University Press, 1997.

transmissão 3D

resenha da palestra “transmissão 3D”
por inês nin, riomarket 2010

Tecnologias de ponta, distribuição e inovações marcaram a primeira mesa do ciclo de debates sobre 3D, realizado na sala de cinema do Pavilhão do Festival do Rio.

Eunézio de Souza, ou Prof. Thoroh, foi o primeiro a falar. Em poucos minutos, questões que tangem a distribuição de filmes e a qualidade dos mesmos foram abordadas do ponto de vista da tecnologia; Thoroh é cientista e coordenador do Laboratório de Fotônica da Universidade Mackenzie.

Primeiramente, ele comparou a distribuição “convencional e analógica”, tal como é feita hoje, na qual o filme sai da ilha de edição não-linear (digital, portanto nem tão antiga assim) para o transfer, a partir do qual são produzidas cópias em película, que por sua vez serão transportadas por caminhão até a sala de cinema. Ao fim, as cópias são eliminadas.

O novo modelo que propõe, chamado de “futuro cinema digital”, prevê uma transferência direta das ilhas de edição não-lineares para o “centro de distribuição cinematográfica”, local responsável por transmitir o filme via satélite, através de redes de fibra óptica ou de mídias físicas, diretamente para as salas de cinema. Lá, o material ficará temporariamente armazenado. As projeções serão digitais, e, ao fim do processo, os arquivos serão deletados.

Atualmente, existem alguns modos de distribuição digital, e o sistema RAIN transmite os filmes de maneira vagamente similar. A grande diferença estaria na qualidade – os filmes em 4k, de acordo com Thoroh, não deixam nada a desejar se comparados à projeção em película 35mm. Cabe, portanto, às tecnologias das redes de fibra óptica – e mesmo aos satélites – aprimorarem sua capacidade para poder receber esse material, que sem dúvida alguma ocupa muitos terabits.

Thoroh exibe, então, alguns gráficos que ilustram as transferências de dados que são feitas atualmente via GLIF – Global Lambda Integrated Facility (“organização visual integrada que promove o paradigma das redes lambda”), atribuições VLAN unicast e outros. As redes de fibra óptica que se propõem a serem usadas para as transmissões de filmes em superalta resolução constituiriam o que Thoroh chama de “a internet do futuro”: redes de IP com tecnologia aprimorada de maneira a viabilizar as transmissões, tendo também o problema da compressão de dados resolvido por novos formatos de arquivo, como o j2k ou o jpeg2000, que já existem.

Há o caso de um grupo japonês que propõe a transmissão de dados sem que seja necessária a compressão. Chama-se ‘Projeto 2014k’. Experimentalmente, o projeto se propõe a “demonstrar a potencialidade da futura internet no Brazil por streaming ao vivo em superalta definição”. A tecnologia R&D, representada na palestra por um esquema, pode parecer inicialmente complexa, mas na verdade vem a serviço da solução de um problema, tornando ideias mais simples de serem realizadas. Um dos provedores de conteúdo participantes do projeto é a Universidade Mackenzie, em meio a outra, e algumas das indústrias envolvidas são a Giga, Kyatera e RNP.

“A previsão é muito difícil, especialmente quando se trata do futuro”, exibe Thoroh no telão, no original em inglês, em citação a Niels Bohr. Conta que a primeira transmissão à distância feita com cabos de fibra óptica foi em 16 de agosto de 1858, por James Buchanan, Cyrus Fields, Lord Kelvin e Samuel Morse. A grande ameaça que se apresenta atualmente é o crescimento acelerado da internet, levando ao risco da incapacidade de transmitir todos os dados: seria a “catástrofe da internet”. Os satélites usados hoje para transmissões estariam em seu limite disponível. Não à toa, o assunto tem mobilizado diversos pesquisadores ao redor do mundo. Thoroh fornece, então, alguns links e artigos através dos quais o público pode se familiarizar mais com o assunto:

http://www.corning.com/docs/opticalfiber/r3461.pdf,http://zakon.org/robert/internet/timeline/ e http://www.telegeography.com/

Fábio Lima, da MovieMobz, apresenta-se em seguida. Dando continuidade ao assunto de sobrecarga de dados da internet, Lima especifica que os arquivos de música e vídeo compõem, hoje, o maior volume de dados transmitidos. Segundo ele, futuras soluções de transmissão de dados audiovisuais para as salas de cinema poderão ser tanto pendrives com altíssima capacidade de armazenamento (para gravação) quanto as redes de fibra óptica (para transmissões ao vivo).

Desse modo, fica claro que o tópico “digitalização do cinema”, que vem sido impulsionado em grande parte pela implementação das salas com tecnologia 3D, não atinge somente os cinemas, mas também os usuários da internet. A média de salas 3D tem sido de 1 por complexo, mas, com o enorme sucesso das produções feitas com essa tecnologia, o número só tende a aumentar.

A qualidade do 3D difere bastante, no entanto. Os projetores 3D atuais das salas de cinema transmitem por broadcastings de 2k, metade da resolução apresentada pelas tecnologias mais recentes. O 3D captado por iMacs (70mm), por sua vez, possui uma diferença notável na profundidade se comparado ao 3D de alta resolução. Lima fala novamente na necessidade de aumento de banda e da capacidade dos satélites, como infraestrutura básica para que as transmissões de filmes em altíssima resolução possam avançar. E estes são capítulos a ser definidos sob o ponto de vista comercial.

Dolby, Real D, MasterImage e XPanD são as tecnologias 3D disponíveis hoje no mercado, afirma Albert Besso (TCE). Eles possuem diferenças entre si: os sistemas polarizados RealD e MasterImage (Transisom/Kelonik) agem por raios infravermelhos; o Dolby3D tem um filtro de cor no projetor. O RealD tem a tela metalizada. Os tipos de óculos também são bastante diferentes, e há uma disputa tecnológica muito grande para a produção de imagens 3D em superalta resolução que possam ser vistas a olho nu.

Besso apresenta novas tecnologias que vêm sendo implementadas. A cidade de Maringá (PR) receberá em breve, em primeira mão, um complexo que conta com uma tela 3D gigante, que vai quase até o chão e ocupa toda a largura da sala. Juntamente ao som espacial imersivo 3D, que evoluiu do Dolby 6.1 e 7.1 para o 23.1 (23 canais), a intenção é que o espectador se sinta totalmente envolvido pela experiência, configurando um tipo realmente diferenciado de cinema. Este esquema de som com 23 canais está atualmente sendo desenvolvido na Espanha, e o México já possui complexos com 3 salas com tecnologia 3D. É uma corrida muito grande, na qual muitos investimentos estão envolvidos.

“Um dos objetivos é combater a internet, o conteúdo sob demanda (VoD, sigla para Video-on-Demand) e os games, fornecendo uma experiência mais completa”, informa Besso. Por internet se entende a difusão de informação, a mudança de hábitos do consumidor e a pirataria, ao que Fábio Lima rebate: “Pirataria não é um problema, mas uma concorrência”. O VoD é a resposta comercial não-física à questão, que deve oferecer preços compatíveis, tal como já ocorre nos EUA. A contrapartida física é o cinema 3D, que deve oferecer um produto melhor e com mais vantagens.

Durante o debate, Walkiria Barbosa intervém citando números da Total Entertainment: “Devido à pirataria, com o ‘Se Eu Fosse Você 2’ perdemos um total de 1000% em lucros”. Fábio Lima: “O brasileiro passa muito tempo na internet, mas é porque o conteúdo é de graça”, completa. É um momento de transição, em que novos modelos e soluções têm sido pensados. O se mostraria necessário, agora, é infra-estrutura e incentivos governamentais a esses novos empreendimentos. Lima afirma que “O governo precisa se interessar mais pelo VoD e outras soluções de distribuição, tornando os produtos competitivos no mercado.”

Sobre infra-estrutura, Prof. Thoroh discorda, dizendo que o Brasil não está tão atrás assim: “O processo de modernização tecnológica é não-linear, até que todos atingem um turning point.” Para ele, o que falta é mão-de-obra especializada, porque incentivos à pesquisa existem. Walkiria Barbosa encerra o debate afirmando que não há no Brasil uma iniciativa para discutir o 3D fora do Festival do Rio.

IAEL – Marcas e Cinema: paródias e product placement

Posted on 30/09/2010 by Inês Nin

O segundo painel da IAEL dessa quinta-feira foi destinado à discussão de questões legais envolvidas no uso de marcas da indústria do entretenimento, como título, logos, nomes de personagens, locações, referências explícitas etc. Na mesa estavam presentes Anthony Lupo (Arent Fox LLP), Luiza Duarte Pereira (Murta Goyanes Advogados) e Louise Nemschoff (Independent Film and Television Alliance), moderados por Marcelo Goyanes (Murta Goyanes Advogados).

Luiza Duarte Pereira iniciou sua fala concentrando-se na questão da proteção às marcas criadas para um filme. Através do uso de slides, expôs pontos relacionados ao processo de registro/autorização de uso, que deve ser feito na INPI (Instituto Nacional de Propriedade Intelectual) pela produtora responsável. Consta, então, uma cláusula de originalidade, referente à cessão/licença exclusiva de direitos de roteiristas e argumentistas. O Brasil segue um sistema atributivo de direitos, o que significa que tanto a marca quanto a exploração comercial da obra, bem como de seus subprodutos, só vale efetivamente caso esta tenha sido registrada.
É importante que os contratos sejam minuciosamente elaborados, de modo que fiquem claras as condições referentes à utilização da marca por terceiros.

Pereira apresenta exemplos de product placement, distinguindo-os de casos em que se detectou violação de uma marca. A diferença consiste essencialmente em que, no caso do product placement, uma empresa fecha um acordo comercial com a produção de um filme para divulgar seu produto, inserindo o anúncio no contexto da narrativa. É uma ação paga e acordada mediante contrato. Violação, por outro lado, consiste no uso indevido de uma marca por outra.

Pereira ilustra sua fala usando exemplos da indústria do entretenimento: o filme “Tropa de Elite” tem uma logo com uma caveira, logo, uma marca; os personagens do “Sítio do Picapau Amarelo” têm nomes e um visual específico bem reconhecível.

Cita dois casos conhecidos de violação, ambos envolvendo a Rede Globo: a marca de produtos de beleza Maya veiculou uma propaganda ambientada na Índia, referindo-se, no texto, explicitamente à telenovela “Caminhos das Índias”. O caso foi a julgamento e terminou com a Maya sendo condenada a retirar o comercial do ar. Em outra situação, há mais tempo, uma telenovela da Globo citou “sabão da Costa” junto a uma menção a Iemanjá, entidade do candomblé e umbanda. A marca “Sabão da Costa” não gostou nada da menção, mas a roteirista argumentou que havia utilizado uma expressão de uso corrente: “sabão da Costa” é um termo tradicionalmente usado por escravos brasileiros, e o nome se refere à Costa do Marfim, na África.

Em seguida, Louise Hemschoff, advogada da Independent Film and Television Alliance, falou sobre o uso de marcas em filmes, concentrando-se nos usos humorísticos que podem ser feitos. Em quais casos o uso é legal, justificado como “fair use” (“utilização justa”), e em quais não é? Se comparada à brasileira, a legislação dos EUA é mais permissiva quanto a isso, diz ela. Existem variações: o fair use não-normativo, que corresponde a promoções em filmes, e a propaganda comparativa, que deve ser verdadeira. É permitido, nos EUA, que o comercial de um produto o compare a outro, desde que sua afirmação seja verdadeira.

Hemschoff, em sua fala, prefere se concentrar em um tipo específico de fair use: a paródia. Seu uso deve ser não comercial, e necessariamente humorístico. Nos EUA, há uma forte tradição de T-shirts, lembra, que funcionam nos meios urbanos como forma de auto-expressão. As paródias são manifestações criativas, e emergem, desse modo, frequentemente como comentário social.

Do ponto de vista jurídico, surge a pergunta: “Do que a paródia ri? Qual é seu objeto?”. Pode ser um comentário social ou se direcionar à própria marca em questão. Hemschoff traz diversos exemplos: bolsas Louis Vouitton de pelúcia branca feitas para cachorros, que zombam do alto valor atribuído a elas; a campanha “The North Face”, representada por uma curva, que se tornou “The South Butt”, com a curva invertida; um rótulo que lembra o do café Starbucks mostrando uma mulher semi-nua e drogada e “Enjoy Cocaine”, referente à Coca-Cola.

Mesmo quando se trata de comentário social, que poderia estar presente em todos os casos mencionados, existem limites quanto à exploração da marca. Ao menos quanto à justificativa da campanha por fair use. “As empresas detestam associações com sexo e drogas, isso é fato”, alerta. Por isso, tanto “Enjoy Cocaine” quanto a versão da logo da Starbucks foram vistas como difamação, gerando embates judiciais.

Finalmente, Anthony Lupo, da Arent Fox LLP, concentra sua exposição na legislação implicada no licenciamento de marcas nos EUA. Com enfoque sobre a indústria do cinema, reitera que os estadunidenses tendem a ser mais liberais. Diz que o registro de obras não é requerido, mas altamente recomendável, pois facilita acordos de product placement emedia placement. “Todas as condições referentes aos direitos de terceiros devem estar bem claras”, recomenda. Os usos a serem feitos de determinada marca devem ser estabelecidos por contrato.

A partir disso, são fixadas attorney fees, que consistem em taxas estipuladas previamente para a cessão de parte da obra, com usos estipulados. Devem-se ponderar os valores de mercadoria e a expressão artística, de maneira a não comprometer o produto final. Ao falar das vantagens e condições implicadas nessas parcerias, Lupo encerra seu discurso dizendo: “Transforme um filme com o product placement”.

reforma da lei de direitos autorais

resenha da palestra “IAEL e a reforma da lei de direitos autorais”
por inês nin e lonya mana gomes, riomarket 2010

A Reforma da Lei de Direitos Autorais brasileira é o assunto central em pauta já há algum tempo, tanto em fóruns de cultura quanto de Propriedade Intelectual. Diante das gigantescas controvérsias, opiniões variadas e embates judiciais que vêm ocorrendo ao redor do mundo, envolvendo violações ao direito de autor, legislações diferentes em cada país e, principalmente, as mudanças decorrentes do advento da internet, mostra-se necessária uma discussão ampla a respeito do assunto. Com as mudanças técnico-sociais de impacto no contexto mundial, práticas antigas como a pirataria ganharam novos modos de atuação, assim como também emergiram novas e interessantes oportunidades para a divulgação e distribuição de produtos audiovisuais.

Dado que a Lei de Direitos Autorais brasileira sofreu pouquíssimas modificações desde o século XIX, existe, atualmente, uma proposta de reforma dessa legislação com a intenção de atualizar as normas que regem as práticas de consumo e difusão. O principal motivo que rege essa iniciativa é que se mostra necessária, diante do contexto, a criação de uma base legislativa sob o prisma do Direito, visando dar conta dos problemas que têm ocorrido.

Por falta de legislação apropriada, inúmeros processos que vêm ocorrendo ao redor do mundo tratam os consumidores-produtores da rede como réus criminais. Diante desse panorama, foi elaborada, há pouco tempo, uma minuta que ouviu, em debate público, tanto organismos ligados à propriedade intelectual quanto empresas e pessoas físicas. O Ministério da Cultura elaborou, então, a partir dos resultados obtidos, um Anteprojeto de Reforma da Lei de Direitos Autorais. Após ouvir cidadãos e instituições em consulta pública durante mais de um mês, o Anteprojeto foi aprimorado e deve entrar em vigor já no começo de 2011.

Marcelo Goyanes (Murta Goyanes Advogados), mediador da mesa, apresenta o tema afirmando que não existe uma nova lei ou sequer um projeto de lei de Reforma dos Direitos Autorais. Para ele, o que existe é um “antiprojeto”, com o intuito de estimular a criação artística, possibilitando a todos o acesso à cultura.

Concentrando-se nas limitações e licenças não-voluntárias, Manoel Pereira dos Santos, da Santos & Furriela Advogados, expôs pontos dos dois principais capítulos do Anteprojeto. De acordo com ele, as principais limitações encontradas consistem na possibilidade do uso livre de bens culturais; em uma ampliação das hipóteses de limitação da livre utilização da cultura para fins didáticos, educacionais, informativos, pesquisas e como recursos criativos. Consta, também, uma sutil alteração em uma cláusula geral baseada no “fair use”.

O Art. 46 estabelece que “não constitui ofensa aos direitos autorais a utilização de obras protegidas, dispensando-se, inclusive, a prévia e expressa autorização do titular e a necessidade de remuneração por parte de quem as utiliza”, em 18 casos especificamente detalhados, seguidos de “fins educacionais, didáticos, informativos, de pesquisa ou para uso como recurso criativo” e de forma que os respectivos autores não sejam prejudicados. Segundo Pereira dos Santos, essas licenças sobre a cópia privada podem contemplar licenças não-voluntárias.

Há exceções para os casos de obras esgotadas, quanto aos titulares criarem restrições ou até mesmo se recusarem a reproduzir a obra e para obras órfãs. Mas, no todo – afirma Pereira dos Santos – praticamente tudo se torna permitido desde que não haja finalidade lucrativa no uso dos bens culturais. Existem condições básicas para se adquirir a licença compulsória, explica: há uma restrição aos direitos concedidos. O titular será desapropriado, mas mediante um prazo e a concessão é limitada a um interessado com legitimidade. Este deverá ter capacidade técnica e econômica, além de ter os mesmos fins previstos como na limitação, e os titulares receberão uma remuneração justa.

Para Attilio Gorine, da Dannemann Siemsen Advogados, a lei vigente não é moderna e não se adéqua ao advento da internet. No entanto, no Anteprojeto foi perdido o foco sobre os direitos de autor. Quanto às limitações, há uma permissão em relação às cópias integrais privadas; cópias para portabilidade e interoperabilidade; na exibição audiovisual em estabelecimentos de ensino; cópia; distribuição e comercialização aos públicos de obras para portadores de necessidades especiais; na não possibilidade de um acordo do pagamento das licenças compulsórias e para a conservação nas bibliotecas. Sobre isso, ele acrescenta: “Por que o deficiente não pode pagar pelo conteúdo?”. De acordo com Gorine, o Estado procura proteger excessivamente o acesso à cultura, sob a “desculpa do acesso ao conhecimento.”

No caso das exibições audiovisuais, há ainda casos como a finalidade de difusão cultural; a multiplicação de público; a formação de opinião ou debate; utilização da obra por associações cineclubistas; a difusão no interior de templos religiosos; para os fins de reabilitações ou terapias; nas internações médicas ou em unidades prisionais. O Anteprojeto se propõe a amparar todas as cópias das obras que não estiverem disponíveis para venda em quantidades suficientes, visando fins didáticos, educacionais, informativos, de pesquisa ou como recursos criativos. Attilio Gorini acredita que, em todos esses casos, as instituições não deveriam ter direito ao uso das obras sem o pagamento de licenças compulsórias, ainda que isso possa implicar em uma diminuição drástica no acesso, difusão e popularização das mesmas.

O norte-americano Mark Halloran, da Halloran Law Corporation, falou sobre a legislação de seu país, que é em muito centrada no consumo e no comércio: “but that’s how we are”, completa, sorrindo. Exemplos de leis e experiências recentes ocorridas nos EUA pairaram sobre o Anteprojeto brasileiro, em contraposição. Halloran diz que, no campo da música, graças ao livre acesso aos arquivos através da internet, o público não se deu conta de que a qualidade das músicas caiu devido à grande quantidade de criações. Cita uma experiência pessoal, na qual suas filhas, que anteriormente baixavam música gratuitamente para seus iPods, hoje, crescidas, compreenderam a questão e pagam pelo conteúdo que consomem.

De maneira geral, diz ele, os norte-americanos, por sua cultura, estão mais acostumados a pagar por conteúdo – ou mesmo por palestras dadas por pesquisadores em universidades, acrescenta uma senhora na plateia. Halloran deixa como sugestão, por fim, a necessidade de se dar atenção aos autores e também ao público, de modo que nenhuma das partes seja prejudicada.

narrativas transmídia e os diferentes discursos possíveis

resenha da palestra “transmídia”
por inês nin, riomarket 2010

Começava a segunda mesa de debates do RioSeminars voltada para as novas mídias. Antes, caminhando por ideias um pouco diversas, havia sido discutida a programação da TV brasileira, seguida por um painel sobre VOD – um novo modelo de negócios para a distribuição audiovisual que tem como base a internet.

A mesa Transmídia, mediada por Tania Yuki, da empresa de pesquisas comScore, trazia convidados com estórias muito diferentes para contar. Yuki apresenta o tema, primeiramente: “transmídia”, termo que desperta curiosidades, trata essencialmente de narrativas muliplataformas, e deixa a pergunta: “qual é o melhor modo de se contar uma estória?”.

Maurício Mota começa se apresentando. É membro da Divisão Transmídia da Rede Globo, da CGCom e do grupo Os Alquimistas. Para ele, o transmedia storytelling é a uma ferramenta para contar estórias com o objetivo de alcançar o maior número possível de pessoas. Mas, alerta, é importante ter estratégia e traçar uma trajetória coerente. Não é sempre necessário o uso de todas as mídias disponíveis para se divulgar uma ideia. Leonardo Sá, consultor técnico de multimeios da Petrobras, assim como Mota, fala sobre a contação de estórias de maneira direcionada à divulgação de uma marca. Nesse caso, a narrativa transmídia seria um modo de fazer as informações sobre determinado produto chegarem mais próximas do público.

As redes sociais desempenham um papel importante nesse ambiente, ainda que o discurso ainda não seja capaz de esclarecer alguns pontos específicos, como os usos e as vantagens dessas mídias. Talvez ainda estejam no terreno das descobertas – que aliás, ali, são constantes – até porque nunca cessa a busca por inovação. Mas, o que ganha destaque e parece ser ponto central do transmedia storytelling é a necessidade – e a possibilidade – de poder se aproximar mais das pessoas, levando-as se envolver com as narrativas. Através disso, consomem produtos ou ideias ligado a elas.

Na prática, enquanto Mota e Sá discutiam a difusão de uma marca, seja a venda de um filme – que se desdobra em game, site, twitter etc. – ou de uma marca de cerveja, Stephen Dinehart (NarrWare) falava no poder da imaginação para alterar o estado das coisas. Originalmente designer de games, Dinehart falou pouco na mesa, mas conseguiu deixar ao menos parte da plateia bastante entusiasmada.

Daniel Pereira, diretor do Convergence Culture Consortium (C3), vinculado ao programa de Comparative Media Studies (CMS) do Massachussets Institute of Technology (MIT), pontuou práticas e processos associados às narrativas transmídia, como indicam as pesquisas do C3 nos últimos anos: cultura participativa, convergência coletiva, transmídia e cultura popular. Seu ponto central é defender que as formas de engajamento do público são moldadas pelos protocolos sociais e culturais, e não pela tecnologia em si. “O mais importante não é o (uso do) dispositivo, mas os aspectos culturais e sociais que orientam sua utilização”. Ou, em outras palavras, “não é sobre o hardware, mas sobre as ações que se encontram umas às outras”.

Ao falar em engajamento do público, Pereira cita o livro “Inteligência Coletiva”, de Pierre Lévy, para nortear a plateia acerca de seu campo teórico*, e diz que a cultura de fãs desempenha um papel central nessa trajetória. Grandes narrativas de sucesso, como “Star Wars”, “O Senhor dos Anéis”, “Matrix” e o recente “Avatar” foram lembradas como os melhores exemplos para clarificar um pouco o assunto. Esses produtos audiovisuais são e foram capazes de atingir um número enorme de fãs; espalharam-se por meios que vão desde filmes, séries de TV, jogos eletrônicos até bonecos e artefatos dos personagens. Não há como não lembrar de fan fiction – versões das estórias feitas por fãs, usando os mesmos personagens e cenários dos ‘originais’ – e o poder que elas carregam ao apontarem o envolvimento do público com o produto que ele admira. Torna-se, de fato, mais que um simples produto. Já faz parte do imaginário desse público, que se envolve ativamente com ele.

A questão passa a ser, então, “como ativamos esses comportamentos”, coloca Dinehart. Para ele, “nós vivemos em um mundo transmídia”, então cabe apenas saber ativar esses processos, para que as ideias se multipliquem e ramifiquem. E isso vale tanto para uma marca comercial quanto para uma ideia ligada à transformação social.

Rene da Silva Santos, jornalista de apenas 16 anos, edita e publica desde os 11 anos um jornal no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, onde vive. Na mesa, apresenta uma estória que mistura sua experiência com o jornal e sua própria história de vida. A indiferenciação é curiosa, mesmo porque o jornal, intitulado “A Voz da Comunidade”, atingiu grande sucesso ao longo dos anos e é atualmente divulgado nas mais populares mídias sociais disponíveis, visando ampliar seu campo de atuação.

Sua história admira o público, sem dúvida, mas o mais interessante é observar a disparidade dos ambientes dos quais emergem os palestrantes ali presentes, e os discursos possíveis que se estabelecem a partir de uma ferramenta em comum. Santos não pesquisa tecnologias no sentido acadêmico ou comercial, mas as utiliza para difundir seu trabalho, e tem encontrado resultados admiráveis. Um diálogo maior entre todos será certamente muito proveitoso, no sentido de entender melhor os processos correntes e apontar novos caminhos.

*Daniel Pereira fez questão de mencionar alguns teóricos envolvidos em suas pesquisas sobre narrativas transmídia e cultura da convergência. São eles: Henry Jenkins (MIT/USC), autor do livro “Cultura da Convergência”; Marsha Kinder (USC); Geoff Long (MIT-CMS/Microsoft) e Ivan Askwith (MIT-CMS/Big Spaceship).