intrépida trupe: entre voos e desafios, aos 25

entrevista com beth martins, da intrépida trupe, publicada no overmundo, pouco depois do festival tangolomango. rio de janeiro, 2011

Em novembro desse ano aconteceu o Tangolomango – festival da diversidade cultural, nas cidades Rio de Janeiro e Buenos Aires. Comemorando 10 anos de atividades, o Tangolomango resolveu inovar em 2011, dando início a um ciclo de eventos que ocorrerão simultaneamente em uma capital brasileira e outra da América Latina, alternando as cidades onde acontecem a cada ano.

Tangolomango é muito mais do que o espetáculo de um só dia, que acontece (ou aconteceu), no caso do Rio de Janeiro, no Circo Voador. É um espaço de intensas trocas entre grupos de dança, circo e música, que se propõem a trabalhar juntos durante as datas que antecedem imediatamente o festival, para criar uma grande e diversificada apresentação.

Nesse contexto, o Overmundo já soma vários anos de parceria, seja na cobertura do evento, seja na feitura do catálogo e entrevistas, como nesse ano, agregando redes pelo Facebook e fazendo as entrevistas lá mesmo.

Durante a correria louca que foi produzir esse material, possibilitando trocas muito prazerosas e conhecendo grupos brilhantes que iriam participar, a única entrevista “analógica” que acabei fazendo foi com a Beth Martins, da Intrépida Trupe. A proximidade ajudou: o escritório do Overmundo fica a poucos passos da Fundição Progresso, espaço no qual a Intrépida ensaia já fazem nem sei quantos anos.

Eu era pequena quando comecei a acompanhar a Trupe, nos idos tempos em que morava em Niterói, e, mais tarde, ainda na escola primária, fui encontrar no Rio de Janeiro uma aula de acrobacia entre as atividades extracurriculares da escola! Tenho saudades do trapézio até hoje, me recordo de alguns movimentos, como o salto leão (acrobacia de solo), e na época eu era doida pra misturar isso com ginástica olímpica. Mas não sabia fazer parada de mão.

Por isso tudo, fiquei muito feliz de poder fazer essa entrevista pessoalmente. Nem deu tempo de falar para a Beth da relação afetiva que eu guardava com o grupo, em memórias, e sempre acompanhando os espetáculos que eles vêm fazendo, incansáveis. Sonhos de Einstein, relativamente recente, trata do sonho antigo que tem o ser humano de voar, e por isso pode parecer comum, mas é muito belo. Hoje, acho que me desperta mais interesse o uso de cordas, escadas e outros apetrechos que estão em algum lugar entre o alpinismo, o circo e, vagamente, aqueles brinquedos de subir de criança. E em muitas práticas. A infância está sempre ali em algum lugar – e eu digo aquela que ninguém devia nunca abandonar. De querer subir em coisas e dar piruetas, dançar.

Como foi feita em voz, registrada com gravador (digital), transcrevi a entrevista e editei procurando manter ao máximo a fidelidade aos modos de fala. Não é a primeira vez que faço um trabalho de transcrição, mas nesse pude ter a liberdade de manter todas as reticências que compõem uma fala, quando o pensamento procura uma resposta e ela vem em diversas frentes, semifalas que aos poucos vão constituindo uma linha de raciocínio. Às vezes ela se perde, ou se lemos pensando no falar – e sou muito grata a Guimarães Rosa por registrar com tamanha minúcia os hábitos e criações de fala de grupos específicos, pessoas – acabamos por entender o todo, e essas buscas feitas pelo pensamento. É construção.

Peço que não relevem o delay com que chega esse material na íntegra ao Overmundo. Um resumo bem resumido das ideias está no site do Tangolomango, junto aos textos que produzimos para os outros grupos. As entrevistas eram preferencialmente feitas pelo Facebook como uma forma experimental de promover a interação entre os entrevistados, e quem mais quisesse aparecer e participar.

Exclusiva, portanto, e não menos reflexiva, da entrevista na Fundição resultaram essas poucas palavras que troquei com a Beth Martins nos minutos antes do ensaio da equipe jovem da Intrépida. A maior parte das apresentações que ela cita já são passado, ainda que recente, como o próprio Tangolomango. Sobre como foi o festival, aqui no Rio de Janeiro e em Buenos Aires, vocês podem ler no site do Tangolomango – ou buscando diretamente pela tag ‘2011’. As outras palavras, sobre a trajetória da Intrépida Trupe, que comemora 25 anos em 2011, suas diversas atividades, modos de fazer, práticas, países latino-americanos, circo novo e circo tradicional, estão abaixo. Leiam com carinho e empolgação!

ENTREVISTA COM BETH MARTINS DA INTRÉPIDA TRUPE || TANGOLOMANGO 2011

concedida a Inês Nin, Overmundo, em 31/10/2011

Quais são as suas expectativas em relação ao Tangolomango? O que você já tinha ouvido falar antes e o que espera dessa troca?

Bom, eu ouvia sempre esse nome Tangolomango, que era um encontro de grupos, mas nunca tinha participado. E aí, com o contato que o Tangolomango fez com a gente esse ano, uma das coisas que eu me animei é que a pessoa que vai dirigir [Ernesto Piccolo, diretor artístico] é uma pessoa com quem eu já trabalhei muitas vezes e de quem gosto muito. Então, foi um pouco em função desse lado afetivo… Porque é uma proposta de 3 dias de imersão, e para os jovens com quem estou trabalhando acho super importante esse contato.

Na Intrépida, há 15 anos a gente faz um trabalho de formação. E um dos fatos que fez com que a Intrépida Trupe sobrevivesse por 25 anos é que a gente sempre foi muito aberto. Eu não digo que tem uma Intrépida – são muitas intrépidas que foram Intrépida nesses 25 anos. E há 15 anos a gente forma gente. Tem muitos no nosso elenco que chegaram com uma base de dança, de teatro, e adquiriram coisas de circo com a gente. Ou que toda a formação de dança, teatro e circo foi feita aqui no nosso espaço. Então, tudo o que é possibilidade de intercâmbio, de troca, sempre nos atraiu muito. Trabalhamos com essas três linguagens. E, pelo que eu entendi, o Tangolomango também abraça as linguagens cênicas de uma forma mais aberta. Assim, a minha expectativa é que seja um ótimo encontro, uma ótima troca, e que a gente possa aprender coisas, ensinar coisas, e descobrir coisas novas nesse encontro. Acho super legal.

O fato de existir agora um foco nesse intercâmbio latino-americano considero muito interessante. Porque nós temos uma riqueza cultural muito grande na América do Sul, na América Central, e a gente desconhece. Muitas vezes as nossas referências são europeias e norte-americanas. Portanto, eu dou um voto de louvor e admiro uma iniciativa que priorize essa troca entre países tão próximos e tão ricos culturalmente.

O que você poderia falar desses 25 anos da Intrépida? Existem atividades comemorativas? Você já disse que foram muitas Intrépidas ao longo desse tempo…

É, foram muitas Intrépidas e eu tenho o privilégio de estar desde a fundação. Desse modo, eu sou de certa forma uma guardiã, uma dinossaura dentro dessa história.

Vinte e cinco anos na vida de um grupo são muitos anos na vida de uma pessoa. É muito intenso, são muitas trocas. A dinâmica de grupo é muito rica, então são muitos anos. O Eugênio Barba fala isso, que 20 anos na vida de um grupo são 60 na vida de uma pessoa. Então, a gente já está com 70, quase 80 anos. E eu me sinto privilegiada porque tive a oportunidade de criar essa história junto com vários artistas, que continuam aí no mercado. Artistas maravilhosos, como o Gringo Cardia, Dani Lima, Alberto Magalhães dos Brothers, a Debinha Colker (Deborah Colker), que trabalhou com a gente coreografando, no começo…

E eu sei muito da história, além de vir trabalhando também nessa área de formação fortemente junto com a Vanda [Jacques]… Nós duas fomos as únicas a permanecer durante todos esses anos. É uma alegria podermos chegar nessa idade e comemorar… E estar com um elenco jovem.

Quando começamos a trabalhar com esse grupo, em 2009, eles tinham 15, 16 anos… entre 16 e 20 e poucos anos, hoje eles estão com 18 a 25. Começamos montando repertório dos anos 80 que havíamos criado, coisas lindas e que esse público de agora conhece pouco. E acabamos fazendo um espetáculo com eles que fez muito sucesso, chamado Preciosa Idade. Porque é uma idade preciosa esse momento de virada da adolescência para a vida adulta. Agora estamos muito felizes, por estarmos lidando com um processo de criação em um trabalho totalmente novo.

Em fins de novembro e começo de dezembro, faremos no Arpoador três finais de semana na Praça Garota de Ipanema, com remontagem de repertório. São outros números que eles ainda não experimentaram no corpo, outros que já experimentaram. Além disso, continuamos trabalhando nos ensaios o novo trabalho, também em comemoração dos 25 anos, que deve estrear ano que vem [2012], em abril ou maio. Talvez aqui no nosso palco, talvez no Teatro Carlos Gomes. São alegrias.

Temos também outro elenco, formado por pessoas mais velhas, que está na Europa, no festival Europalia, representando o Brasil na área de circo. Vamos fazer dois espetáculos em Bruxelas. Nos deixa muito alegres ter várias frentes em movimento como agora. Uma de formação, um elenco jovem, outro mais maduro. E, de forma menos intensa mas sempre presente, atuamos e continuamos a atuar em projetos sociais que incluem o circo. Fomos pioneiros nessa linguagem.

Começamos com a Intrépida tem uns… minha filha tem 18 anos, eu estava grávida dela… 19, 20 anos atrás a gente começou. O Betinho do Viva Rio chamou a gente para abordar crianças na rua, e isso gerou vários projetos que trabalham com jovens em situação de risco com o circo. Temos um vínculo com vários desses projetos, no nosso elenco tem alguns meninos que foram desses projetos, então estão trabalhando com a gente, também… Na parte técnica também… É uma alegria comemorar 25 anos e ver tantos frutos, o trabalho ampliado em várias frentes e ter uma perspectiva de futuro. No mínimo, mais 25 anos, espero. A galera jovem aí seguindo, continuando a escola, a formação.. é isso.

Você dirige o grupo desde o começo? Ou teve uma trajetória dentro dele?

Na Intrépida a gente sempre foi meio múltiplo. Então, quando começamos… E essa coisa também de ser um grupo que… Hoje você vê muitas companhias que fazem uma seleção do elenco, baseada nas técnicas de dança, nas técnicas de circo. No nosso caso, sempre tivemos várias áreas trabalhando juntas. Tinha um gordinho que não pulava nada, não se pendurava, mas era muito engraçado… era um palhaço, entendeu? E tinha um outro que desenhava muito bem e fazia mil coisas lindas, então era o cara que fazia os cartazes e figurinos. É um grupo que sempre respeitou a diferença como um ponto de riqueza. É por isso, acredito, que a linguagem do grupo sempre foi muito impactante, tanto no sentido visual quanto do humor, da irreverência. No lírico… no poético… Sempre tivemos isso da singularidade de cada um, da diversidade do elenco. Sempre fizemos de tudo um pouco.

No começo, a gente montava, costurava os trapézios, se dirigia, fazia trilha, bolava luz… Foi uma coisa que fomos fazendo, e isso é algo típico dos anos 80. A minha história é um pouco assim: eu dançava com a Graciela Figueroa, Coringa, que foi um grupo pioneiro de dança contemporânea aqui. Ela misturava acrobacia, tai chi, capoeira, dança clássica, neoclássica, moderna… E eu desde o começo tinha um olhar sobre as organizações espacial e coreográfica da coisa. Fui me especializando nos aéreos, uma vez que eu já dançava no chão. Me interessavam o trapézio, cordas… coreografia. E aos poucos fui assumindo a direção de um trabalho ou outro. Hoje, estou mais voltada para a formação, a direção e as coreografias do que estou em cena. Mas ainda faço as minhas brincadeiras pendurada de vez em quando. Ainda me sinto com esse gás de às vezes aparecer e fazer alguma coisa em cena.

E o que você conhece da América Latina? Provavelmente a Intrépida já deve ter se apresentado em outros países das América do Sul, por exemplo.

Olha, infelizmente nos apresentamos muito pouco. Considerando a América Central, a nossa primeira viagem foi para o México, exatamente no ano em que a gente nasceu. Era uma missão cultural do Circo Voador. Na época trabalhávamos muito no Circo, com efeitos. Tínhamos ido montar o Circo Voador no Maranhão, em São Luís. Nessa ocasião, o prefeito estava lá e falou: “Esse é o ano da Copa do Mundo, vamos montar a lona lá?”. Circo Voador tem que ter circo. A gente junta o pessoal da Escola de Circo, o pessoal de dança e vamos nessa. Nossa origem é um pouco essa viagem para o México. Tem releases nossos que dizem: “a Intrépida Trupe nasceu em 86 numa missão cultural ao México”. De alguma maneira, o grupo é meio mexicano, meio brasileiro.

Fomos à Colômbia, num festival em Manizales, e fizemos uma apresentação uma vez num evento na Argentina. Eu adoraria que a gente circulasse mais, que pudéssemos fazer uma troca, um intercâmbio mais rico. Tanto com o Uruguai, Argentina, Paraguai, Peru, Bolívia, Chile… Sei lá, Guatemala, são países belíssimos com essa cultura rica. E o mundo a gente já fez bastante. Portugal, França, Alemanha, EUA… são os lugares que a gente mais foi. Mais a França: nos apresentamos no festival de circo de Demain algumas vezes, participamos dos festivais que tem em Nanterre também… Na Alemanha, fomos em um festival convidados a fazer uma temporada num théâtre de variété, com gente do mundo inteiro, que é uma noite… Tipo um Canecão, em que as pessoas vão comer e beber e há várias atrações. E Portugal, que a gente já…

Agora fomos para a Bélgica participar do Europalia, festival no qual o país homenageado era o Brasil. Escolheram a Intrépida para representar essa linha do circo novo lá. Mas, hoje em dia, as viagens internacionais estão mais… No começo, no final dos anos 80 e começo dos anos 90, viajávamos com mais frequência. Agora, talvez devido à crise financeira mundial, com elenco grande, equipamento… Venho tentando fazer alguns trabalhos focados nas pessoas e na técnica, até para poder viabilizar essa troca, que geralmente é muito rica.

Quantas pessoas tem agora na Intrépida? Você falou que tem mais de um grupo.

O elenco que foi para a Bélgica é composto de umas 8 pessoas, e nesse elenco jovem somos 13. Fora a [equipe] técnica, claro. O outro [que foi para a Bélgica] tem umas 5, 6 pessoas na técnica, porque se trata de um espetáculo que necessita de subir e descer coisas. Senão fica difícil viabilizar. Mas, a gente dá um jeitinho, né? Gostamos de viajar e estamos abertos para os intercâmbios possíveis, dentro do que as pessoas podem oferecer, dentro das datas… Se estiver ao nosso alcance, sempre temos uma abertura para trocar.

Há também esse outro intercâmbio. Ano passado, por exemplo, eu viajei por várias capitais do Brasil dando aula, a Vandinha também, de técnicas de segurança. A Vandinha [Jacques] é diretora técnica e pedagógica, mas tem o Claudio Baltar, que também é diretor técnico e dirigiu os Sonhos de Einstein, e eu, que vou mais para o lado de direção artística, de coreografias, e imagens, cena. Mas eu trabalho junto com o elenco, né? de imaginar coisas e realizar na cena.

Não faz muito tempo, fui convidada pela Funarte para dar aula para pessoas de circo tradicional. Pequenos e médios circos. Porque eles têm uma coisa de muita carência, no sentido de luz, figurino. Com o tempo, vão ficando na periferia da periferia, muito pobres. Às vezes, nos pequenos e médios circos, os filhos não querem mais seguir a carreira de circo porque ela é muito árdua. Então, a Funarte fez um programa de oficinas para eles, de maquiagem, luz, expressão corporal, consciência corporal.

O corpo do circense tradicional sofre muito. Muitas vezes eles não têm noção de determinadas formas de se aquecer que são mais doces para o corpo, de compensar esforços repetitivos… E eu acho que o circo novo tem um.. Eu tenho um amor muito grande pelo circo tradicional, porque o que me fez me apaixonar pelo circo quando eu era pequena foi… Eu morava no interior de Mato Grosso, e era importante o momento em que o circo chegava na pequena cidade. No que eu puder ajudar o circo tradicional e homenageá-lo, o que tiver ao meu alcance, eu farei. Para mim, o circo tocou meu coração de uma forma que mudou a minha vida. Eu estou há 25 anos nessa história e, assim… Eu quis voar, acabei voando e ajudando um monte de gente a voar.

É, o circo com intercâmbio de linguagens, meio espetáculo teatral…

Que é mais viável, né? Acho que ele pode estar mais em todo lugar. Não depende daquela mega estrutura, lona… Isso tudo é um dia-a-dia muito árduo.

Mas também não tem uma estrutura tão itinerante como tem essa ideia da lona…

É, a gente podendo itinerar é sempre bom, porque está na essência do circo esse lado nômade. Você poder trocar com as culturas que vai conhecendo no caminho. Por isso eu acho que é muito bacana o Tangolomango. Sinto que existe essa filosofia da troca, que de alguma forma é o nomadismo. Você está num lugar mas as coisas estão sendo trocadas e passando, como quando você viaja.

confluências, luminâncias, filmes

versão original do artigo publicado na revista overmundo nº1, sem cortes

Como se constrói a partir de uma torrente de ideias, invenção? Fazer um filme pode partir da pureza de uma ideia banal; um lapso de estória capaz de carregar imagens e sons que, orquestrados, funcionem em conjunto. Ou pode ser também uma obra construída durante anos anos a fio, detalhada, narrativa, com estruturas. Seja o que for a reger os minutos da empreitada, é certo que os modos de fazer não só são múltiplos como possíveis, muitos deles. E que quando se pretende abarcar um contexto, ou compreender o que se passa em determinado tempo, em determinadas áreas que têm em comum alguma situação, é bom que se considere os caminhos abertos e as novas soluções que vão se encontrando e se cruzando.

Ao falarmos de cinema, em alguns textos, críticas, rememórias e, principalmente, em debates e conversas, é reconhecida uma certa trajetória que vem se criando nos últimos anos em diversas instâncias no Brasil. Já faz parte da história que só tocamos com alguma distância, parcimoniosamente e por meio de resquícios, os tempos em que filmes necessariamente eram peças caras a serem feitas vagarosamente, a duras custas e mediante diversas parcerias. Um intervalo brusco que interrompeu quase que completamente a produção brasileira, durante a era Collor e que culminou com o fechamento da Embrafilme, balançou severamente o contexto local, mas  já podemos falar em mais de uma década após o “cinema da retomada”.

E talvez tenha sido só nos anos mais recentes que começaram a aparecer filmes capazes de destoar bastante das referências mais evidentes do que seria uma tradição nacional. Ainda que indiscutivelmente brasileiros, mesclando referências de um mundo globalizado às quais já nos acostumamos com estórias e modos de ser e fazer tipicamente locais, os filmes não fazem força para pertencerem a este ou àquele lugar; muito menos para reproduzir complexas fórmulas de produção ao modo industrial como outrora.

As facilidades de produzir e criar, vindas com as novas tecnologias – câmeras de vídeo digitais em alta resolução, que se aproximam em muito à qualidade da película em 35mm e que superam infinitamente em facilidade e custos de produção; câmeras de celular e diversas outras para os mais variados gostos, resoluções e texturas emergiram ao mesmo tempo em que a internet despontou como fonte primeira para o acesso a um conteúdo antes restrito a festivais, locadoras e, principalmente, à remessa que o amigo do amigo trouxe da sua última viagem ao exterior. Hoje em dia já é chavão falar de tudo isso, mas ao mesmo tempo o resgate parece indispensável quando se quer entender em que contexto vivemos e como se tornam possíveis certas experimentações e olhares. Sim, porque devido a essa enorme difusão e troca de conteúdo possibilitada pela internet, um cultivo de filmes e diretores de linguagens mais diversas e oriundos de partes do mundo menos participantes da grande mídia pôde ter lugar.

Marcelo Ikeda fala, não sem razão, em seu recém-lançado livro (junto a Dellani Lima) “Cinema de garagem – um inventário afetivo sobre o cinema jovem brasileiro do século XXI”, que atualmente o Ceará pode estar mais próximo de Belo Horizonte, das Filipinas ou de Taiwan que da Bahia, quando se trata de cinema. Novos cruzamentos de ideias e inspirações acontecem, portanto, a partir desse meio que reúne a linguagem e as características de tantos outros – a internet – tanto em termos de comunicação interpessoal quanto de difusão e acesso, propriamente.

Não se pode esquecer, no entanto, da batalha que se trava nesse campo, de um lado estando o direito ao livre acesso à informação e, do outro, os interesses das grandes indústrias decadentes, que se sentem injustiçadas pelas trocas atuais e, principalmente, pelas perspectivas que o futuro lhes reserva. Essa celebração do acesso ao conhecimento não pode, infelizmente, ainda, vir desgarrada de uma militância política pela manutenção e ampliação dos modos de uso e da própria existência do espaço da rede como ele se apresenta no momento.

E quanto à estética, a que maravilhas essas mudanças nos abrem? Pois não são só elas, as tecnologias, mas todo um contexto em torno, gerado por diversas mudanças conjunturais, que torna viáveis empreitadas com praticamente nenhum dinheiro, e que muitas vezes não esperam mais receber qualquer tipo de incentivo governamental ou de empresas. Ainda que, como toda novidade, essas formas emergentes de fazer – que se refletem na própria imagem – ainda não demonstrem inteiramente sua sustentabilidade e não forneçam todas as respostas para o futuro, esse futuro se constrói por meio de presentes um tanto entusiasmantes, desviantes e promissores.

É típico das estruturas canônicas e estabelecidas não querer abarcar pequenas ou grandes incertezas. Como diz Cezar Migliorin em seu crucial ensaio intitulado “O cinema pós-industrial”, publicado na revista eletrônica Cinética e em diversos outros meios pela rede, faz parte da lógica capitalista da grande indústria a estrutura de produção hierárquica, extensa e planejada em seus mínimos pormenores, em que qualquer surpresa ou variação representa um risco ou mesmo uma anomalidade, por não serem suas consequências passíveis de prever.

Nesse ambiente que floresce talvez mais fortemente desde os filmes de Karim Aïnouz, primeiro “Madame Satã” e depois “Um Céu de Suely”, junto ao grande boom de documentários, assistimos, faz pouquíssimo tempo, à emergência de pequenos grupos que começam a produzir artesanalmente seus filmes, e não somente curtas, mas – e a surpresa – também longas! Antes deles, é importante lembrar, o cinema nacional vinha se fortalecendo por outros caminhos, em grande parte pela crítica, que formou sólidos grupos atuantes durante vários anos através de revistas eletrônicas e também de cineclubes.

Faz sentido pensar que essa movimentação vinda de muitos lados – universidades, cineclubes, festivais, revistas de crítica e uma crescente produção de curta-metragens, em grande parte identificada com realizadores que assinam sozinhos ou em duplas – possa ter motivado a criação de grupos ou coletivos que produzem de forma independente e colaborativa. Não busco aqui qualquer sentido lógico, mas uma maneira de pensar frente ao contexto que se delineia.

É comum, cada vez mais, também nas artes plásticas, hoje chamadas visuais ou simplesmente artes, que as pessoas procurem se organizar através de coletivos para produzir trabalhos muitas vezes mais anárquicos ou somente diferentes de seus projetos pessoais. Ao mesmo tempo, nesse sentido, também se mantém no campo das artes cada vez mais forte um foco na figura do autor destacado individualmente como criador, assinando as obras de maneira que seu nome frequentemente acabe ganhando mais visibilidade que o próprio trabalho. Não sei se isso pode ser chamado de contrafluxo ou somente uma evidência de que ali pode haver um acirramento de uma lógica anterior, por um lado, e de outro uma inspiração de ordem mais diversa e particular, focada em pequenos grupos e ideias que se relacionam não por questões locais ou por fazerem parte desse ou daquele movimento, mas por motivos puramente estéticos ou políticos num sentido muito mais amplo – em escala global, ainda que em certa instância horizontalizada.

Gostaríamos de falar aqui de um grupo em especial, que tem chamado a atenção em alguns festivais e mostras pelo Brasil e no exterior por sua próspera produção nos anos recentes, o Alumbramento. São cinco longas finalizados – sendo um de fato uma reunião de curtas em torno de um tema, chamado “Praia do Futuro” – e 29 curtas, feitos entre 2007 e 2011. A produtora, grupo ou coletivo Alumbramento teve origem na primeira turma do extinto projeto Escola do Audiovisual, formação com duração de dois anos promovida pela Prefeitura de Fortaleza a partir do ano de 2006, na época em que Beatriz Furtado era Secretária de Cultura. O curso, pensado em formato inovador, com professores diferentes trazidos a cada semana de várias partes do país, teve problemas de verbas logo no começo de 2007. Em tempos em que não havia ainda o curso de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Ceará, iniciado em 2010, a ameaça de interrupção motivou uma ocupação feita pelos alunos durante duas semanas no local onde eram ministradas as aulas, de maneira a garantir que as mesmas continuariam.

Findo o curso, foi formada a Alumbramento. O que de mais importante notamos naquela que mais tarde viria a se tornar uma produtora de fato, é a aparente ausência de hierarquia entre seus membros, que chamam a si mesmos de “família” e trabalham frequentemente uns nos filmes dos outros, alternando funções de acordo com o projeto. Outros grupos têm surgido pondo em prática formatos parecidos, como a Teia, baseada em Belo Horizonte, ou até a Duas Mariola, de Felipe Bragança e Marina Meliande, do Rio de Janeiro, ainda que nesta última o grupo de amigos – somente 6, mais alguns parceiros – mantenha em geral mais ou menos fixas as funções de cada um dentro dos filmes.

Os filmes da Alumbramento são tão diversos quanto podem ser as ideias de seus membros; não existe unidade organizada que determine uma orientação estética específica para os filmes. Mesmo assim, como todo grupo de amigos que se reúne em torno de ideias e vontades comuns, é possível notar semelhanças, ainda que porventura vagas, entre um filme ou outro, além de diálogos estabelecidos com os trabalhos de outros cineastas. Estes têm em comum frequentemente o modo simples de produzir, o experimentar, além de filmes e diretores de referência.

É possível citar alguns filmes que ganharam destaque recentemente, sobre os quais os holofotes incidem mais ou menos junto a um barulho alavancado quase em toda sua totalidade dentro do campo do cinema: primeiro pelo Festival de Tiradentes, ocorrido no fim de janeiro desse ano, e mais tarde na Mostra do Filme Livre, que se extendeu ao longo do mês de março. De lá pra cá, os espaços têm sido abertos cada vez mais para uma crescente politização dos debates em torno da cultura, suas formas de produção e acesso, em grande parte motivada pelas mudanças no cenário global da cultura digital e pelas alterações políticas pelas quais vem passando o Brasil nesse momento, com a mudança de governo.

“Estrada para Ythaca”, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti (Alumbramento); Desassossego – Filme das Maravilhas”, obra coletiva composta de fragmentos com diversos diretores, em projeto concebido por Felipe Bragança e Marina Meliande (Duas Mariola, Teia, Blum Filmes, Alumbramento, Filmes do Caixote, Karim Aïnouz, Gustavo Bragança, Arissas Multimídia); “O Céu Sobre os Ombros”, de Sérgio Borges (Teia); “Os Monstros”, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti (Alumbramento), dentre outros, compõe esse rol bem diverso de filmes que tem ganhado atenção.

Não se pode dizer que os trabalhos abordem, diretamente, qualquer questão política evidente. Não são nem de perto panfletários e sequer tratam de assuntos grandiosamente históricos – muito pelo contrário. Há uma fala que resume um dos caminhos tomados, retirada do catálogo de um cineclube que exibia curtas de diretores de origens semelhantes (Luisa Marques, Leonardo Amaral e Sérgio Borges, de novo):

Deve haver algo de sintomático de um estado das coisas nesses filmes que abandonam a construção de grandes narrativas, vontades de simbologia e preferem se recolher ao mínimo, à narração do quintal ao invés do país, nessas sinopses de uma única linha. O mundo é possível demais, múltiplo demais. Ideologias não servem, políticas não satisfazem, teorias e instituições não dão conta. Diante disso, resta se recolher às suas certezas mais acessíveis: eu, minha casa, minha rua, meus amigos e parentes. Diante da estafa de as mãos poderem abraçar muitos quilômetros, agarra-se o que se tem à vista e a história a ser contada é a sua própria, e os fatos são reles e quase cinzas. Um cinema que, por trás de toda a ternura de suas imagens, revela um certo desalento contemporâneo: as câmeras tentam agarrar cada pequeno momento, como se, diante de tudo, só nos restasse nos abraçar, silenciosamente. (Affonso Uchoa, Cineclube Curta Circuito, BH, junho de 2010)

Ofuscando a melancolia impressa nessas palavras, Felipe Bragança surge, em dois textos publicados recentemente – “Óvnis, fantasmas e cinema”, O Globo, Caderno Prosa & Verso, 26 de junho de 2010 e “Meu último texto de cinema”, que aparece encurtado na versão online do mesmo caderno, em 12 de março de 2011 – defendendo um escopo bem maior de filmes possíveis que começam a existir e ganhar espaço.

De fato, se o texto de Uchoa procurava nortear a presença dos três filmes, juntos, no cineclube, ele também aponta para uma variação possível no campo da narrativa num sentido mais amplo. A imagem que sai por aí à procura, mas que, por caminhos obscuramente bonitos consegue apresentar um mundo particular àquele que assiste, mesmo que esse mundo apareça esquisito, incerto, contendo rasgos muitas vezes incorporados à imagem como parte dos arranhões inevitáveis a qualquer tomada de riscos. As palavras de Uchoa me recordam o entusiasmo transmitido pelas palavras de Deleuze quando falava do cinema de Godard e de outros nos 60, que corajosamente se dignificavam a buscar, em caminhos nunca dantes trilhados, sentidos outros para a imagem que então construíam.

Bragança, por sua vez, aponta justamente para estranhezas: ao invés de procurarmos um cinema coeso, de podermos falar em “cinema brasileiro” querendo compreendê-lo em sua integridade, ou ainda de cobrarmos dos filmes que atendam às nossas expectativas de olhares viciados, podemos procurar ver as exuberâncias errantes que vão começando a emergir, ousadas e imperfeitas, mas belas! E de lugares que nos são próximos, mesmo cheias de desafios a serem trilhados.

Portanto, é digno que sejam reconhecidos esses caminhos experimentais, trilhados ora com mais ou menos dúvidas ou certezas, mas propondo-se a lançar-se em novas aventuras “monstruosas” o quanto puderem ser. O modo de fazer contamina os filmes, que por sua vez são contaminados pelo terreno em volta, pelas trocas entre amigos, festivais e demais festividades – não sem seriedade, não sem zelo. Mas a cautela excessiva, ou, pior, a crítica que poda mais que estimula à criação, buscando os filmes “certos”, efeitos precisos e cobrando até mesmo um distanciamento histórico para que se possa falar do que vê em volta… Limita mais do que expande, cobrando contenção.

É louvável que se procure reconhecer os próprios pés, percorrer os próprios caminhos e encontrar confluências, formando redes que possam se diferenciar de suas antecessoras. Em suma, arriscar, gerando significâncias. Sem o risco, e sem agarrar as oportunidades conquistadas em um cenário emergente, corre-se o risco de virar cinza. E nem pó: cimento, que engessa a terra fértil por baixo dos pés.