falar com PHASMIDES, de daniel steegman-mangrané

crítica/percepção ou conversa publicada no sítio do ateliê397 em 18.11.2015

 

desestruturar-se. confundir-se. corpo que se mistura à lama e opera por associação. sujeito-corpo-ambiente. sequer sujeito, ainda: coisa. objeto que ANIMA. e então bicho. antes, poderia ser uma folha, um pedaço de pau, de árvore. enquanto planta, parte da paisagem; enquanto bicho, predomina? sobressai-se no todo? o animal existe, mas que será essa existência enquanto mundo?

sobressalentes, os modos de sossego que constrói um homem (no masculino, branco, singular) perante a TERRA, a que preço – desnorteia-se uma barragem, e cai sobre as cidades – de erguer os planos. dormentes, altivos, rígidos e retilíneos como nunca será uma planta. arranha-céus, ou sem precisar ir tão longe: de rastejos e lamaçais secos são preenchidas florestas e territórios nomeadamente inférteis – por ações infortunas. prédios, sem mantas. colossais membranas.

em outro canto surge um ramo. quem sabe já não estava lá. por acaso ou persistência floresce, se espalha. rumina. aos poucos se enche de plenitude e não se sabe mais se é bicho ou planta, assunto ou paisagem. engenhosos desenhos na pele de alguns, cadeia sem medos de tantos, acontece. complexas organizações priorizam, a exemplo das formigas e de tudo aquilo que observa, um certo funcionamento que se perpetua. a não ser que – para ver as formigas uns homens derramaram cimento nas frestas de formigueiros, e então formou-se uma escultura da megalópole subterrânea. repentinamente fossilizada. um simples genocídio em nome da ciência.

o que temos aqui é espaço produzido. consumido, pormenorizado, criado aos detalhes de composição. no começo é escuro, cascas de árvores. uma olhadela que espreita e averigua os detalhes da mata profunda, ou um simples jardim. sem verde, é quase tudo marrom. os planos são curtos, terminam antes que sejam decifrados. quiçá, a duração de um rolo de filme, em metros, unidade de medida física da celulose que compõe a matéria, em 16mm. a celulose na tela – as frações de árvores, os papéis. quase tudo compõe. quase tudo escapa.

aos poucos, acontece a fusão. papéis dobrados dividem o espaço com os fragmentos de galhos e folhas envelhecidas. o fundo sombrio dá lugar ao branco. estruturas são erguidas por entre a espécie – os galhos – e a eles almejam. o animal vai esgarçar o limite do entre coisas, do que é nulo, do que se nulifica. do que desaparece.

a um mínimo movimento, se vê patas. enfim, patas! é um bicho, agora. a aparição do mesmo – fasmídeo, palavra irmã de fantasmas – se dá à maneira semelhante ao monge de filmes recentes de tsai ming liang, tais como ‘walker’ (2012) e ‘jornada ao oeste’ (2014). o movimento, mínimo, é suficiente para identificar a ação e distinguir, a partir daquele momento, personagem. na cena seguinte, o mesmo sucede. ele está lá? forma-se um jogo, em tempo lento, episódios.

acrobático, o disfarce do sutil bicho-bailarino forma ângulos, opera por semelhança até mesmo com as geometrias que o envolvem, papéis dobrados que muito se assemelham às construções de lygia clark: bichos, mais uma vez.

será importante essa distinção entre forma e forma, animal ou perfídia? a própria lygia clark nos dá pistas em suas anotações, em especial a partir do ‘caminhando’ (1964), ao buscar uma espécie de dissolução da existência no mundo, em que corpo é também paisagem, atravessada e hibridizada por bichos, frequências, intensidades. “pássaros e leões nos habitam, diz lygia – são nosso corpo-bicho”, traz suely rolnik. da supressão do objeto: “a fantasia do mundo como um grande bicho não percebido pelo homem”.

daniel steegman mangrané, em entrevista a fábio zucker, narra que, conscientemente, não pensou em lygia clark ao construir o ambiente em estúdio no qual caminha o bicho-pau em ‘phasmides’, revelado na sequência final. contudo, em situação posterior, criou um dispositivo arquitetônico que se viu confrontado, em uma exposição, a um dos bichos de lygia e a um metaesquema, de hélio oiticica.

o contraste entre obras arquitetônicas – e suas suas linhas retas – e a manifestação forte e de caráter englobante do que conhecemos por natureza, floresta e seus habitantes, aparece em grande parte das obras do artista. uma conversa evidente com o legado do concretismo e abstracionismo também se mostra, em que grafismos, construções metálicas e instalações contestam meios de se estar e adentrar lugares, compor formas, assimilar-se.

no contexto da exposição ‘o que caminha ao lado’, com curadoria de isabella rjeille, PHASMIDES se apresenta ao público em uma pequena sala próxima à área de convivência do espaço. as obras dos outros artistas presentes na coletiva evocam, de distintos modos, imagens ou sons de fantasmas, indícios, semelhantes e dessemelhantes, imitações, vultos. o doppelgänger, antigo mito alemão, provoca a evidência do duplo, ou sua alusão, de modo que limites identitários são postos à prova.

dois anos após sua primeira aparição, PHASMIDES, em 2015, conversa com seus duplos adversos, crianças que correm, bichos, outros fantasmas. sobrevivência de corpo em ambiente, existência em estúdio, linhas retas?

as colunas caíram do céu, de luiz zerbini

sobre a instalação de luiz zerbini, exposta no evento luz na cidade, rio de janeiro, 2012

Da obra intitulada “minha última pintura”, 2005, que se desdobrou em outras e reinventou para o próprio artista a ideia e a vontade de pintar – e, porque não, para o público, já que ele também aparece no quadro, refletido – pode-se dizer que ao mesmo tempo ela motivou e fez parte de futuras instalações. Esse movimento, da pintura para a instalação, acontece dentro de uma trajetória em que os trabalhos se complementam, às vezes se misturando ou confundindo.

“Minha última pintura” se faz presente nas paredes de trabalhos anteriores desse mesmo processo, como a instalação “paisagemnaturezamortaretrato”, realizada por Luiz Zerbini em 2008 no Centro Universitário Maria Antônia, CEUMA, em São Paulo. Em “paisagemnaturezamortaretrato”, site-specific, as vigas do teto da própria sala adquiriam cores, ressaltando sua estrutura geométrica.

Em “As Colunas Caíram do Céu”, instalação apresentada no evento Luz na Cidade, diferentemente, a estrutura da obra é auto-portante, construída fora do espaço expositivo e posteriormente transferida para lá. Sob esse ponto de vista, o trabalho funciona como uma escultura de grandes proporções. As vigas coloridas, instaladas abaixo dos lustres da sala, aparecem ‘dissolvidas’ em reflexo, tal como em “paisagemnaturezamortaretrato”. Pretas e luminosas, as paredes cobertas por tinta automotiva nos apresentam uma imagem menos nítida da obra, ecoando tanto as cores das vigas quanto a própria imagem do público.

“Desde que a pintura morreu, não paro de pensar nela”, dizia Luiz Zerbini à época de “minha última pintura”. Em texto sobre a obra, Agnaldo Farias diz que “o tipo de intervenção realizada no espaço expositivo retarda o entendimento dessa confissão, como se tivesse sido sussurrada”. Dos quadros imprevistos e vistos, muitos deles absolutamente figurativos, não raro incorporando diversos elementos gráficos e algumas abstrações, parte também uma reflexão consistente que recai sobre o espaço tridimensional.

Pode-se chamar, talvez, “As Colunas Caíram do Céu” de instalação pictórica, vinda do mesmo movimento que parte do quadro para o espaço real da sala, o qual o público é convidado a percorrer.

confluências, luminâncias, filmes

versão original do artigo publicado na revista overmundo nº1, sem cortes

Como se constrói a partir de uma torrente de ideias, invenção? Fazer um filme pode partir da pureza de uma ideia banal; um lapso de estória capaz de carregar imagens e sons que, orquestrados, funcionem em conjunto. Ou pode ser também uma obra construída durante anos anos a fio, detalhada, narrativa, com estruturas. Seja o que for a reger os minutos da empreitada, é certo que os modos de fazer não só são múltiplos como possíveis, muitos deles. E que quando se pretende abarcar um contexto, ou compreender o que se passa em determinado tempo, em determinadas áreas que têm em comum alguma situação, é bom que se considere os caminhos abertos e as novas soluções que vão se encontrando e se cruzando.

Ao falarmos de cinema, em alguns textos, críticas, rememórias e, principalmente, em debates e conversas, é reconhecida uma certa trajetória que vem se criando nos últimos anos em diversas instâncias no Brasil. Já faz parte da história que só tocamos com alguma distância, parcimoniosamente e por meio de resquícios, os tempos em que filmes necessariamente eram peças caras a serem feitas vagarosamente, a duras custas e mediante diversas parcerias. Um intervalo brusco que interrompeu quase que completamente a produção brasileira, durante a era Collor e que culminou com o fechamento da Embrafilme, balançou severamente o contexto local, mas  já podemos falar em mais de uma década após o “cinema da retomada”.

E talvez tenha sido só nos anos mais recentes que começaram a aparecer filmes capazes de destoar bastante das referências mais evidentes do que seria uma tradição nacional. Ainda que indiscutivelmente brasileiros, mesclando referências de um mundo globalizado às quais já nos acostumamos com estórias e modos de ser e fazer tipicamente locais, os filmes não fazem força para pertencerem a este ou àquele lugar; muito menos para reproduzir complexas fórmulas de produção ao modo industrial como outrora.

As facilidades de produzir e criar, vindas com as novas tecnologias – câmeras de vídeo digitais em alta resolução, que se aproximam em muito à qualidade da película em 35mm e que superam infinitamente em facilidade e custos de produção; câmeras de celular e diversas outras para os mais variados gostos, resoluções e texturas emergiram ao mesmo tempo em que a internet despontou como fonte primeira para o acesso a um conteúdo antes restrito a festivais, locadoras e, principalmente, à remessa que o amigo do amigo trouxe da sua última viagem ao exterior. Hoje em dia já é chavão falar de tudo isso, mas ao mesmo tempo o resgate parece indispensável quando se quer entender em que contexto vivemos e como se tornam possíveis certas experimentações e olhares. Sim, porque devido a essa enorme difusão e troca de conteúdo possibilitada pela internet, um cultivo de filmes e diretores de linguagens mais diversas e oriundos de partes do mundo menos participantes da grande mídia pôde ter lugar.

Marcelo Ikeda fala, não sem razão, em seu recém-lançado livro (junto a Dellani Lima) “Cinema de garagem – um inventário afetivo sobre o cinema jovem brasileiro do século XXI”, que atualmente o Ceará pode estar mais próximo de Belo Horizonte, das Filipinas ou de Taiwan que da Bahia, quando se trata de cinema. Novos cruzamentos de ideias e inspirações acontecem, portanto, a partir desse meio que reúne a linguagem e as características de tantos outros – a internet – tanto em termos de comunicação interpessoal quanto de difusão e acesso, propriamente.

Não se pode esquecer, no entanto, da batalha que se trava nesse campo, de um lado estando o direito ao livre acesso à informação e, do outro, os interesses das grandes indústrias decadentes, que se sentem injustiçadas pelas trocas atuais e, principalmente, pelas perspectivas que o futuro lhes reserva. Essa celebração do acesso ao conhecimento não pode, infelizmente, ainda, vir desgarrada de uma militância política pela manutenção e ampliação dos modos de uso e da própria existência do espaço da rede como ele se apresenta no momento.

E quanto à estética, a que maravilhas essas mudanças nos abrem? Pois não são só elas, as tecnologias, mas todo um contexto em torno, gerado por diversas mudanças conjunturais, que torna viáveis empreitadas com praticamente nenhum dinheiro, e que muitas vezes não esperam mais receber qualquer tipo de incentivo governamental ou de empresas. Ainda que, como toda novidade, essas formas emergentes de fazer – que se refletem na própria imagem – ainda não demonstrem inteiramente sua sustentabilidade e não forneçam todas as respostas para o futuro, esse futuro se constrói por meio de presentes um tanto entusiasmantes, desviantes e promissores.

É típico das estruturas canônicas e estabelecidas não querer abarcar pequenas ou grandes incertezas. Como diz Cezar Migliorin em seu crucial ensaio intitulado “O cinema pós-industrial”, publicado na revista eletrônica Cinética e em diversos outros meios pela rede, faz parte da lógica capitalista da grande indústria a estrutura de produção hierárquica, extensa e planejada em seus mínimos pormenores, em que qualquer surpresa ou variação representa um risco ou mesmo uma anomalidade, por não serem suas consequências passíveis de prever.

Nesse ambiente que floresce talvez mais fortemente desde os filmes de Karim Aïnouz, primeiro “Madame Satã” e depois “Um Céu de Suely”, junto ao grande boom de documentários, assistimos, faz pouquíssimo tempo, à emergência de pequenos grupos que começam a produzir artesanalmente seus filmes, e não somente curtas, mas – e a surpresa – também longas! Antes deles, é importante lembrar, o cinema nacional vinha se fortalecendo por outros caminhos, em grande parte pela crítica, que formou sólidos grupos atuantes durante vários anos através de revistas eletrônicas e também de cineclubes.

Faz sentido pensar que essa movimentação vinda de muitos lados – universidades, cineclubes, festivais, revistas de crítica e uma crescente produção de curta-metragens, em grande parte identificada com realizadores que assinam sozinhos ou em duplas – possa ter motivado a criação de grupos ou coletivos que produzem de forma independente e colaborativa. Não busco aqui qualquer sentido lógico, mas uma maneira de pensar frente ao contexto que se delineia.

É comum, cada vez mais, também nas artes plásticas, hoje chamadas visuais ou simplesmente artes, que as pessoas procurem se organizar através de coletivos para produzir trabalhos muitas vezes mais anárquicos ou somente diferentes de seus projetos pessoais. Ao mesmo tempo, nesse sentido, também se mantém no campo das artes cada vez mais forte um foco na figura do autor destacado individualmente como criador, assinando as obras de maneira que seu nome frequentemente acabe ganhando mais visibilidade que o próprio trabalho. Não sei se isso pode ser chamado de contrafluxo ou somente uma evidência de que ali pode haver um acirramento de uma lógica anterior, por um lado, e de outro uma inspiração de ordem mais diversa e particular, focada em pequenos grupos e ideias que se relacionam não por questões locais ou por fazerem parte desse ou daquele movimento, mas por motivos puramente estéticos ou políticos num sentido muito mais amplo – em escala global, ainda que em certa instância horizontalizada.

Gostaríamos de falar aqui de um grupo em especial, que tem chamado a atenção em alguns festivais e mostras pelo Brasil e no exterior por sua próspera produção nos anos recentes, o Alumbramento. São cinco longas finalizados – sendo um de fato uma reunião de curtas em torno de um tema, chamado “Praia do Futuro” – e 29 curtas, feitos entre 2007 e 2011. A produtora, grupo ou coletivo Alumbramento teve origem na primeira turma do extinto projeto Escola do Audiovisual, formação com duração de dois anos promovida pela Prefeitura de Fortaleza a partir do ano de 2006, na época em que Beatriz Furtado era Secretária de Cultura. O curso, pensado em formato inovador, com professores diferentes trazidos a cada semana de várias partes do país, teve problemas de verbas logo no começo de 2007. Em tempos em que não havia ainda o curso de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Ceará, iniciado em 2010, a ameaça de interrupção motivou uma ocupação feita pelos alunos durante duas semanas no local onde eram ministradas as aulas, de maneira a garantir que as mesmas continuariam.

Findo o curso, foi formada a Alumbramento. O que de mais importante notamos naquela que mais tarde viria a se tornar uma produtora de fato, é a aparente ausência de hierarquia entre seus membros, que chamam a si mesmos de “família” e trabalham frequentemente uns nos filmes dos outros, alternando funções de acordo com o projeto. Outros grupos têm surgido pondo em prática formatos parecidos, como a Teia, baseada em Belo Horizonte, ou até a Duas Mariola, de Felipe Bragança e Marina Meliande, do Rio de Janeiro, ainda que nesta última o grupo de amigos – somente 6, mais alguns parceiros – mantenha em geral mais ou menos fixas as funções de cada um dentro dos filmes.

Os filmes da Alumbramento são tão diversos quanto podem ser as ideias de seus membros; não existe unidade organizada que determine uma orientação estética específica para os filmes. Mesmo assim, como todo grupo de amigos que se reúne em torno de ideias e vontades comuns, é possível notar semelhanças, ainda que porventura vagas, entre um filme ou outro, além de diálogos estabelecidos com os trabalhos de outros cineastas. Estes têm em comum frequentemente o modo simples de produzir, o experimentar, além de filmes e diretores de referência.

É possível citar alguns filmes que ganharam destaque recentemente, sobre os quais os holofotes incidem mais ou menos junto a um barulho alavancado quase em toda sua totalidade dentro do campo do cinema: primeiro pelo Festival de Tiradentes, ocorrido no fim de janeiro desse ano, e mais tarde na Mostra do Filme Livre, que se extendeu ao longo do mês de março. De lá pra cá, os espaços têm sido abertos cada vez mais para uma crescente politização dos debates em torno da cultura, suas formas de produção e acesso, em grande parte motivada pelas mudanças no cenário global da cultura digital e pelas alterações políticas pelas quais vem passando o Brasil nesse momento, com a mudança de governo.

“Estrada para Ythaca”, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti (Alumbramento); Desassossego – Filme das Maravilhas”, obra coletiva composta de fragmentos com diversos diretores, em projeto concebido por Felipe Bragança e Marina Meliande (Duas Mariola, Teia, Blum Filmes, Alumbramento, Filmes do Caixote, Karim Aïnouz, Gustavo Bragança, Arissas Multimídia); “O Céu Sobre os Ombros”, de Sérgio Borges (Teia); “Os Monstros”, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti (Alumbramento), dentre outros, compõe esse rol bem diverso de filmes que tem ganhado atenção.

Não se pode dizer que os trabalhos abordem, diretamente, qualquer questão política evidente. Não são nem de perto panfletários e sequer tratam de assuntos grandiosamente históricos – muito pelo contrário. Há uma fala que resume um dos caminhos tomados, retirada do catálogo de um cineclube que exibia curtas de diretores de origens semelhantes (Luisa Marques, Leonardo Amaral e Sérgio Borges, de novo):

Deve haver algo de sintomático de um estado das coisas nesses filmes que abandonam a construção de grandes narrativas, vontades de simbologia e preferem se recolher ao mínimo, à narração do quintal ao invés do país, nessas sinopses de uma única linha. O mundo é possível demais, múltiplo demais. Ideologias não servem, políticas não satisfazem, teorias e instituições não dão conta. Diante disso, resta se recolher às suas certezas mais acessíveis: eu, minha casa, minha rua, meus amigos e parentes. Diante da estafa de as mãos poderem abraçar muitos quilômetros, agarra-se o que se tem à vista e a história a ser contada é a sua própria, e os fatos são reles e quase cinzas. Um cinema que, por trás de toda a ternura de suas imagens, revela um certo desalento contemporâneo: as câmeras tentam agarrar cada pequeno momento, como se, diante de tudo, só nos restasse nos abraçar, silenciosamente. (Affonso Uchoa, Cineclube Curta Circuito, BH, junho de 2010)

Ofuscando a melancolia impressa nessas palavras, Felipe Bragança surge, em dois textos publicados recentemente – “Óvnis, fantasmas e cinema”, O Globo, Caderno Prosa & Verso, 26 de junho de 2010 e “Meu último texto de cinema”, que aparece encurtado na versão online do mesmo caderno, em 12 de março de 2011 – defendendo um escopo bem maior de filmes possíveis que começam a existir e ganhar espaço.

De fato, se o texto de Uchoa procurava nortear a presença dos três filmes, juntos, no cineclube, ele também aponta para uma variação possível no campo da narrativa num sentido mais amplo. A imagem que sai por aí à procura, mas que, por caminhos obscuramente bonitos consegue apresentar um mundo particular àquele que assiste, mesmo que esse mundo apareça esquisito, incerto, contendo rasgos muitas vezes incorporados à imagem como parte dos arranhões inevitáveis a qualquer tomada de riscos. As palavras de Uchoa me recordam o entusiasmo transmitido pelas palavras de Deleuze quando falava do cinema de Godard e de outros nos 60, que corajosamente se dignificavam a buscar, em caminhos nunca dantes trilhados, sentidos outros para a imagem que então construíam.

Bragança, por sua vez, aponta justamente para estranhezas: ao invés de procurarmos um cinema coeso, de podermos falar em “cinema brasileiro” querendo compreendê-lo em sua integridade, ou ainda de cobrarmos dos filmes que atendam às nossas expectativas de olhares viciados, podemos procurar ver as exuberâncias errantes que vão começando a emergir, ousadas e imperfeitas, mas belas! E de lugares que nos são próximos, mesmo cheias de desafios a serem trilhados.

Portanto, é digno que sejam reconhecidos esses caminhos experimentais, trilhados ora com mais ou menos dúvidas ou certezas, mas propondo-se a lançar-se em novas aventuras “monstruosas” o quanto puderem ser. O modo de fazer contamina os filmes, que por sua vez são contaminados pelo terreno em volta, pelas trocas entre amigos, festivais e demais festividades – não sem seriedade, não sem zelo. Mas a cautela excessiva, ou, pior, a crítica que poda mais que estimula à criação, buscando os filmes “certos”, efeitos precisos e cobrando até mesmo um distanciamento histórico para que se possa falar do que vê em volta… Limita mais do que expande, cobrando contenção.

É louvável que se procure reconhecer os próprios pés, percorrer os próprios caminhos e encontrar confluências, formando redes que possam se diferenciar de suas antecessoras. Em suma, arriscar, gerando significâncias. Sem o risco, e sem agarrar as oportunidades conquistadas em um cenário emergente, corre-se o risco de virar cinza. E nem pó: cimento, que engessa a terra fértil por baixo dos pés.

a gentil e a rua

testemunho de rua do rio, publicado no overmundo no calor das festividades que abriam 2011

Um pré-carnaval manifesto, alegria de rua e exposição de artes. Dois movimentos foram necessários até que eu chegasse às incríveis aberturas da galeria A Gentil Carioca, no Centro do Rio. O primeiro diz respeito a conhecer o circuito e as festas de artes, sempre multicoloridas e abertas às mais diferentes pessoas. Não sei se foram os muitos anos frequentando noites de rock e algumas de eletrônica pela vida que trouxeram esses pensamentos, mas a mim esses eventos se assemelham a algo como um mundo paralelo. No que todos os outros campos buscam uma espécie de norma ou padrão que unifique a “cena”, o paradigma dominante nas artes parece ser da ordem da variação e do diferente, permitindo a uns e outros apresentarem-se quase ao modo que desejarem.

O outro movimento se relaciona com o espaço da cidade e o aderir às cotidianas celebrações de rua. É de fato muito próprio da cultura local reunir-se nas calçadas e ambientes públicos, mesmo que nos últimos tempos as alienígenas iniciativas do choque de ordem, da prefeitura, pretendam coibir a prática. São tão poucas as opções de lugares fechados para sair na cidade que em dias de chuva parecem se extinguir praticamente todas as opções. Claro que as temperaturas elevadas contribuem para hábitos como esse, mas o fenômeno também se relaciona com o estilo de vida impregnado pelos hábitos de praia e com a informalidade que consegue juntar pessoas diferentes num mesmo canto, geralmente pulverizadas na mesma medida que as latas de cerveja.

Sendo assim, as festas da Gentil têm sido, nos últimos tempos, sob um certo ponto de vista, o melhor oásis encontrável nas manifestações festeiras locais. Há outras celebrações de ordem similar, como as tardes promovidas no gramado do Museu de Arte Moderna, mais intensamente em um mês que passou, mas que contam hoje quase constantemente com ensaios da Orquestra Voadora aos domingos. Muitos desses eventos fazem parte do calendário de verão, que impulsiona eventos ao ar livre, gratuitos e que de algum modo se relacionam com o carnaval que se aproxima. Mal começava o ano e já foi decretada a abertura não-oficial do carnaval de rua carioca, nas imediações da praça XV, no Centro…

As festas da Gentil podem vistas num sentido culturalmente amplo: são celebrações feitas na rua, agregando convidados, transeuntes e afins; mas também relativamente restrito, por se tratarem de eventos do circuito de artes, com toda a fama/tradição elitista que este carrega. Pois uma versão local e aberta de um evento inicialmente específico e restrito como se supõe que seja uma vernissage é produzida com esmero: é bonito de ver o grande fluxo de pessoas passar de um canto ao outro, subir, ver uns trabalhos, beber cerveja na rua, caminhar até o outro centro cultural e literalmente se acabar dançando no meio da rua até por volta de meia-noite. A região é, durante o dia, parte do centro de comércio popular conhecido como Saara, próxima à praça Tiradentes, que por sua vez, carrega uma história construída por teatros e prostitutas.

No último sábado, dia 5 de fevereiro, A Gentil Carioca, o Centro Cultural Hélio Oiticica e suas imediações sediaram a sétima edição do evento Abre Alas, exposição coletiva que dessa vez mais que nunca transbordou o espaço de uma única galeria de arte. Em tudo, foi mais especial ainda que de costume: todo o espaço da escada que dá acesso à Gentil foi pintado de dourado, com purpurinas espalhadas pelo chão. Da performance do artista Siri com seus tambores eletrônicos ao desfile organizado por Bruna Lobo e Liza Machado, intitulado “Acervo de Afetos”, todos os trabalhos expostos emitiam uma espécie de brilho e exuberância. As pessoas circulavam com as roupas no meio de todos, não havia separação, palco, nada. Como se fizesse sentido separar um ou outro na mistura. O bonito estava ali, em ver e fazer parte daquilo tudo.