chelpa ferro atualiza as curvas da capital portuguesa

relatos e registros da visita do grupo a portugal; artigo publicado na revista da secretaria de estado de cultura do rio de janeiro em 2012

Pela primeira vez em terras lusitanas, o grupo multimídia Chelpa Ferro acaba de expor em Lisboa seu mais recente trabalho, a instalação site-specific Craca, além de se apresentar ao vivo junto ao artista português Pedro Tudela. Formado há 17 anos pelos artistas Luiz Zerbini, Sérgio Mekler e Barrão, o Chelpa Ferro realiza performances, instalações híbridas com dispositivos tecnológicos e lançou três discos, o último recentemente.

Convidado pelo Carpe Diem Arte e Pesquisa, instituição voltada para o campo alargado da arte contemporânea, o grupo preparou uma peça sonora inédita para 18 canais de áudio. Somando uma mistura de instrumentos tradicionais, parafernálias criadas pelos próprios integrantes e recursos eletrônicos, o som gravado chega ao público através de espessos blocos de isopor dispostos em diversos pontos da sala, que interferem na sua emissão. Uma atmosfera composta de ruídos é então gerada, preenchendo o espaço da Sala Azul do antigo Palácio Pombal, no coração histórico de Lisboa. A obra, exposta entre os meses de junho e setembro desse ano no XI Módulo Expositivo do Carpe Diem Arte e Pesquisa, deve ser remontada em breve em outro local da mesma cidade, considerando suas dimensões variáveis.

Materializando um desejo do curador Paulo Reis, falecido em 2011, carioca radicado em Portugal e fundador do Carpe Diem Arte e Pesquisa, Chelpa Ferro e Pedro Tudela realizaram um concerto idealizado há aproximadamente uma década, quando o grupo e o artista tiveram a oportunidade de se conhecer em São Paulo. O improviso foi a chave da apresentação, que ocorreu no Teatro do Bairro, como parte do Programa Próximo Futuro da Fundação Calouste Gulbenkian. Em parceria inédita, os artistas uniram conhecimentos e repertórios oriundos das fontes mais impensáveis, provocando diferentes dimensões auditivas.

Pedro Tudela, assim como o Chelpa Ferro, é artista plástico, se desdobrando desde 1982 entre performances, programas de rádio, discos, concertos de música experimental eletrônica e projetos cenográficos. Os dois eventos, XI Módulo Expositivo do Carpe Diem Arte e Pesquisa e o Programa Próximo Futuro da Fundação Calouste Gulbenkian, de instituições parceiras, tiveram como característica marcante a participação simultânea de artistas brasileiros e portugueses, que se somavam a outros de diferentes nacionalidades.

Ao caminhar pela cidade, as aproximações e intercâmbios se intensificavam: enquanto o Chelpa preparava a exposição no Carpe Diem Arte e Pesquisa, a cantora gaúcha Adriana Calcanhotto fazia um show com um grande fadista português, o grupo almoçava no restaurante que a presidente Dilma Rousseff costuma frequentar, de onde contam a exótica experiência de comer caracóis. Exotismo quase local, se considerarmos todas as nossas heranças históricas, que se misturam de maneira curiosa, gerando comparações que ora nos aproximam, ora afastam.

E é irrevogável a importância desse contato, que ganha tons de humor quando o grupo relata ter visto Portugal ser eliminado da Eurocopa (“viveram esse triste momento”) ou entusiasmo, como quando falam da Galeria Zé dos Bois, misto de espaço de exposições e ações performáticas, com forte pé fincado na música experimental. A presença no espaço se faz fundamental não só pelas atividades previstas, que por si já seriam singulares e aguardadas fazia longo tempo. Mas coisas do acaso, como topar na rua com o grande colecionador de música e galerista Zé Mário, ou encontros fortuitos com artistas com quem podem gerar futuras parcerias, até mesmo comer caracóis, são agentes da nossa cultura antropofágica que vem atualizar raízes, estabelecer contatos, fundar novas buscas.

da relação do som com a tecnologia e a vida urbana

parte 2/3 de artigo apresentado no encontro de música e mídia: e(st)éticas do som, na usp, em 2009

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Barbara Barthelmes, em “Music and the City”, fala sobre as maneiras como os sons apreendidos na experiência da cidade ecoam e influenciam peças artísticas. Nesse âmbito, ela cita desde os pintores futuristas do começo do século XX, tais como Marinetti, Boccioni (“Street noise enters the house”, 1911) e Russolo, que falava da rua como microcosmo da cidade, até músicos como Charpentier, Delius e Edward Elgar, que tinham a cidade como objeto de comtemplação (contraposto aos pintores impressionistas, que miravam as paisagens da natureza). Entretanto, pode-se dizer que as contribuições musicais que lidam com as paisagens sonoras urbanas das cidades têm em seu favor um aspecto temporal, uma que vez que a música ocupa, mais que o espaço, o tempo, podendo expressar as variações de eventos ao longo de seu curso. Aqui cabe falar sobretudo em intensidade, mas também em fluxo, densidade. E, de alguma forma, as possibilidades abertas pela reprodutibilidade técnica dos sons acabam por ocupar o eixo central que tornou possíveis tantas experimentações.

Na verdade, não foram só as mídias que vieram possibilitar a reprodutibilidade, transmissão e gravação dos sons. A própria manipulação dos ruídos apreendidos através de sintetizadores e posteriormente das tecnologias eletrônicas transformaram substancialmente a forma como som e música seriam ouvidos, interpretados e apreendidos nas décadas seguintes. Os anos 80 do século passado foram cruciais para que isso se consolidasse, e não é à toa que explodiram tantas bandas que faziam fusão entre rock e ritmos eletrônicos, remetendo diretamente a “Psyché Rock” de Pierre Henry, e na década seguinte ocorreu a grande explosão das raves e da cultura da música eletrônica como um todo.

Paul Théberge argumenta que “a ideia de ‘som’ aparenta ser um conceito contemporâneo que dificilmente poderia ter sido mantido em uma era que não possuísse meios eletrônicos de reprodução” (THÉBERGE, 1997:191). Taylor já apontava para o agenciamento humano em face da tecnologia como questão central, uma vez que era precisamente esse o ponto da discussão e crítica que se fazia sobre a musique concrète. “Novamente”, Théberge continua algumas páginas adiante,

a existência prévia do efeito sonoro é um fator crucial; esses efeitos são ‘descobertos’ quase por acidente, tanto quanto criados pelo usuário individual. Decisões feitas por times de engenheiros nos estágios preliminares do design de um dispositivo de processamento podem portanto ter um impacto profundo não só na competência em se fazer uso desse dispositivo, mas também nas práticas e conceitos musicais/composicionais. (THÉBERGE, 1991:199-200)

A prática da colagem de sons, a partir do uso de samples se tornou comum, assim, em bandas que emergiram a partir dos anos 80, e mais frequentemente em gêneros direcionados às pistas, além do hip-hop. Hoje, apesar da constante batalha pelo acesso a músicas ou trechos de músicas que se trava na internet, para que o alto custo dos direitos autorais não comprometa a viabilidade das produções, mais do que nunca essa estética de apropriação e ressignificação faz sentido não só no campo da música, mas das artes como um todo.

A estética do som é inevitavelmente relacionada ao espaço que ela ocupa, seja em relação ao ambiente multirreferencial externo, seja em relação a espaços fechados. E, na era da reprodutibilidade técnica e mashups, as palavras de R. Murray Schafer no livro The Soundscape: Our Sonic Environment and the tuning of the world sobre espaços acústicos e seu tempo cabem:

A forma e o tamanho dos espaços interiores irão sempre controlar o andamento das atividades dentro deles. Novamente, isso pode ser ilustrado em referência à música. A velocidade de modulação das igrejas góticas ou da renascença é lenta; a dos séculos XIX e XX é muito mais rápida porque ela foi criada para salas menores e estúdios de transmissão. (…) O prédio comercial contemporâneo, que também consiste em pequenos e secos espaços, é similar ao frenesi do trabalho moderno, e assim contrasta vividamente com a temporalidade lenta da missa ou de qualquer ritual pensado para uma caverna ou cripta. Mais uma vez, os efeitos atenuados da música recente parecem sugerir um desejo de desaceleração do ritmo das coisas, exatamente como as músicas de Stravinsky e Webern uma vez prenunciaram a prática empresarial moderna. (MURRAY SCHAFER, 1977:219)

Ou seja, como afirma Murray Schafer em outro trecho, o papel da arquitetura é crucial tanto como elemento que interfere na percepção sonora, e em geral ela é pensada levando em conta esse aspecto. Isso pode ser feito na direção de aproveitar as vantagens que os espaços podem oferecer em termos de apreciação estética, criando experiências realmente belas dentro de catedrais ou mesmo edifícios, mas também pode pretender simplesmente suprimir os ruídos dos ambientes externo e interno e preenchê-los com formas sonoras menos edificantes para os ouvidos. E essa última tem sido a tendência contemporânea. Diz ele:

A arquitetura, assim com a escultura, está na fronteira entre os espaços de visão e som. Dentro e em volta de um edifício existem certos lugares que funcionam como pontos de ação tanto visuais quanto acústicos. (…) Em um mundo quieto, a acústica de edifícios floresceu como uma arte de invenção sônica. Em um mundo barulhento ela se transforma meramente na habilidade de silenciar ruídos internos e isolar incursões do turbulento ambiente além-muros. (MURRAY SCHAFER, 1977:222)

Ainda tendo em vista o espaço, Barthelmes carrega em seu texto uma boa contribuição de dois sociólogos, Hans-Peter Meier-Dallach e Hanna Meier, que falam da cidade como organismo social:

Eles começam com a hipótese de que sons e a paisagem sonora urbana funcionam como signos e se referem a uma relação específica entre as pessoas e o espaço urbano no qual elas vivem. “O som da cidade contém imagens do espaço social e seus ritmos, de acordo com os quais se move a sociedade”. (MEIER-DALLACH e MEIER, 1992:416, apud BARTHELMES, in: BRAUN, 2002:97)

E as sociedades contemporâneas empregam frequentemente a ressignificação das heranças culturais deixadas pelas décadas passadas, as quais comprometem as paisagens sonoras das cidades tanto quanto seus hábitos. Some-se a isso os ruídos provocados pelos carros e demais máquinas, acidental ou intencionalmente, que reverberam nos projetos arquitetônicos os mais diversos e ressoam nos ouvidos dos seus habitantes, somados aos sons de televisões e outros dispositivos midiáticos, e tem-se um vasto repertório de sons com que trabalhar. Melhor dizendo, cada vez mais eles são menos dissociáveis da vida enquanto experiência situada em tempo e espaços.

da relação entre som e espaço e o contexto do pós-guerra

parte 1/3 de artigo apresentado no encontro de música e mídia: e(st)éticas do som, na usp, em 2009

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Fragmentado ou contínuo, dentro ou fora e em diferentes tonalidades, o som reverbera nos espaços cotidianamente. E a relação do espaço com o som é diferente da que este estabelece com as imagens, que estão na outra margem mais evidente dos meios perceptivos. São, efetivamente, meios tanto de percepção quanto de criação, e, portanto, os sons que são absorvidos ao longo da vida nas cidades contribuem para caracterizar aquilo que se chama experiência urbana, junto com outros aspectos que irão compor.

Brandon LaBelle, em Background Noise, diz que, diferentemente da imagem, “o som está sempre em mais de um lugar”. (LABELLE, 2006:x). E completa:

O som, deste modo, age com e através do espaço: navega geograficamente, reverbera acusticamente e estrutura socialmente; o som amplifica os silêncios, contorce, distorce e atinge a arquitetura; escapa salas, faz paredes vibrarem, perturba conversas; ele expande e contrai o espaço acumulando reverberações, reposicionando o espaço para além dele mesmo, carregando-o em sua onda, e habitando sempre mais de um lugar; ele desloca; como os alto-falantes de um carro explodindo em música alta, o som ultrapassa barreiras. Ele é ilimitado por um lado, e site-specific por outro. (LABELLE, 2006:xi)

Este trecho faz lembrar uma entrevista dada por Stockhausen em 1972, na qual ele fala sobre a possibilidade de apreensão dos sons que ouvimos no ambiente e da transformação deles através de alterações no seu tempo, comprimindo-os ou expandindo-os; enfim, pode-se manipular os sons apreendidos na cidade e nos espaços e ressignificá-los, organizando-os e tornando-os composições.

Alguns artistas têm de fato feito experimentações nesse sentido, e, dentre esses, são sempre muito lembrados Pierre Schaeffer e Pierre Henry da musique concrète francesa, que desde o fim dos anos 40, mas mais enfaticamente a partir das décadas de 50 e 60 do século XX, vêm produzindo peças sonoras que desafiam limites do que até então se conhecia por música, incorporando a ela diversos sons apreendidos do ambiente. O contexto do pós-II Guerra mundial favoreceu experimentações nesse sentido, porque, com o boom tecnológico que adentrava a vida das pessoas, surgiram também novidades como sintetizadores e novas técnicas de gravação e reprodução, como as fitas magnéticas. A música eletrônica dava então seus primeiros passos, sendo Henry, que fazia uso de loops e samples e suas obras, posteriormente reconhecido por DJs e produtores de techno, drum’n’bass e outros gêneros como seu precursor em muitos sentidos.

As composições de musique concrète foram das primeiras a incluir ruídos diversos capturados no ambiente, misturados a barulhos, vozes e instrumentos musicais dispostos em estruturas que exploravam, dentre outras variações, a espacialização das peças sonoras, como se verifica em “Symphonie pour un Homme Seul”, de 1951, de Schaeffer e Henry.

Pierre Schaeffer, diferentemente de Henry, não seguiu produzindo música depois da dissolução do movimento conhecido por musique concrète, cujo manifesto aponta para a observação de cada som em sua particularidade. Através do distanciamento desse som de seu contexto original, o artista poderia rearranjá-lo e reordená-lo de modo a torná-lo composição. Ainda assim, críticos* da musique concrète apontavam como ponto fraco desta o fato de não alterarem significativamente a natureza dos sons, questionando assim até que ponto os músicos teriam real controle de suas obras. De qualquer modo, ficou claro, como aponta Timothy Taylor em “Post-war Music and the Technoscientific Imaginary” (de Strange Sounds, 2001) que a Schaeffer interessava mais os experimentalismos em música e sonoridades, influenciando em grande parte o que hoje é chamado de sound art, enquanto que Henry nunca perdeu de vista os potenciais do som enquanto forma de linguagem e comunicação, mais que de prática artística.

John Cage, outro importante artista a se destacar no pós-guerra, pesquisou amplamente formas de audição, ruído e composição; atuou junto ao movimento Fluxus nos anos 60 e expandiu suas práticas para os dominíos da escrita – crítica ou poética – e para as artes visuais e happenings, junto a outros artistas tais como Allan Kaprow. O que interessava a ele era procurar no ambiente, enquanto espaço auditivo, uma estrutura musical não-intencional. Contexto e audiência, portanto, desempenham papéis determinantes em seu trabalho, pois, ao interferirem no ambiente, transformam-se em material de composição.

Ao comparar os artistas da musique concrète a Cage, LaBelle diz que

A diferença entre o objeto material de Cage e o objeto sonoro de Schaeffer é uma diferença de contexto e procedimento: para Cage, o mundo em si paira dentro e por trás do trabalho musical, como uma presença material e espaço de liberdade individual, no qual a vida comum toma forma; em contraste, para Schaeffer o objeto sonoro em si oferece o potencial de realização de uma experiência musical alterada e esclarecida, determinada por uma paleta expandida de detalhes sonoros exposta através de manipulações eletrônicas. (LABELLE, 2006:32-33)

A conhecida obra 4’33”, de Cage, é talvez o mais interessante exemplo para ilustrar como, em seu modo de perceber, os ruídos do ambiente interferem e constituem verdadeiramente a composição. E, coerentemente, LaBelle completa dizendo que o movimento Fluxus, de uma certa maneira, é sobre percepção. Mais ainda, ele argumenta que tanto a estética musical, relacionada à musique concrète, quanto a observação das sonoridades do ambiente, de Cage, são conceitos possíveis de se complementar. Em ambos pode-se notar interpretações e modos de lidar com os sons encontrados no mundo. Assim sendo, em última instância, todas essas interferências, seja no caso do acoustic design, instalações sonoras ou quaisquer obras que pensam a relação do espaço com o som, todas elas necessariamente irão se relacionar com a arquitetura, essa que permeia o espaço urbano.

* Taylor cita especificamente Pierre Boulez, músico francês contemporâneo a eles e ainda vivo, além de artistas da Elektronische Musik alemã, que compunham canções puramente eletrônicas a partir de sons sintetizados.