re: homem-água e afins

de: inesnin // para: papá f.

oi querida,

estou no tempo lento do observador, que mais observa que anima, que mais caminha que processa, está em si mesmo e não está, por vezes; a cidade ilumina, enerva e preenche tanto desse corpo que ele demora a reanimar (mas anima)

ânimo como existência de chão, de sentido, isso é que sim construir uma percepção de si mesmo, e a partir disso criar suas próprias formas de alheamento, de criação, de modos de agir no mundo, ainda que nem tão diretos (nunca)

quando a mudança é grande, a carroça se bagunça, se reorganiza, leva um tempo próprio para se perceber de novo, e os modos de agir nesse contexto refeito, que está

(mas aprendo, ou sei, também, que o movimento que mais sentido faz é o que é quase reflexo, inconsciência, tão cheio de confiança porque não se percebe como tal, simplesmente se faz)

(e é bobo como pode levar tanto tempo para se dar ao luxo de esquecer de si sabendo – não consciente – e agir, produzir um gesto)

o homem das águas que você ilumina é o que essa terra seria, vejo – fantasio tanto com as terras do pará (nunca vi)

(nasci em casa de cidade menor, mas bem cidade e bem concreto, com escapes, lentos; a floresta é ambiente de todos os meus anseios, onde está o sentido)

ultimamente tenho trabalhado com a ideia de que a floresta está dentro; a floresta é também construção (de si), de um ambiente acolhedor e desorganizado, no sentido que o caos se organiza, que o ritmo próprio está dentro e existe, sem necessidade de nenhuma dessas tentativas surdas de apreensão do espaço, e dos sujeitos, que assistimos (ontem estive numa jam que acontecia numa academia de danças feita em arquitetura corporativa, com câmeras de vigilância, vitrine, algo entre um prédio comercial e uma academia, e fazia tão pouco sentido estar ali, ainda que as pessoas, e os movimentos, fizessem um outro lugar)

talvez também isso, fazemos outro lugar com os gestos

o que é o caracol que carrega a casa? por que isso te interessa? você viu o homem do rio? como chegou ao catador?

curiosidades de pensamento, de escolha, de movimentos

floresta, vou publicar algo em torno disso, estou organizando
tem sido meu eixo entre tantos movimentos, começou bem antes de vir pra cá
rios e ruas, aqui tantas coisas, horta urbana e bons movimentos, acontece
mas rios e floresta, relaciono? outro tempo, tempo úmido, memória (homem-água? eu li)

enfim, um texto genial sobre isso, fonte inspiradora preciosa: http://shikigami.net/forest/introduction-thinking-like-forest/

beijos
quero estar na aula, mas gostaria de algo mais contínuo, me perco
(corpo, os tempos, busca do ritmo onde se está)

coisa

um contador de miniaturas. para poder antever tudo o que se dará, daqui pra frente, nunca atrás.

contável porque coisadura, mercado, minérios, vastidão de mundos domesticada numa única pílula tátil, apartamento.

adentrei o prédio, era possível; o possível que conseguia visualizar diante de tantos desejos de nomadismo e floresta, de construção, viagens. não havia permanência em viagens, nem sustento, somente vontades: braço que não alcança as frutas nos galhos superiores.

necessária suspensão das correntes, ainda que (tanto), furtivos invernos, forjados em verões que voltarão, um dia.

construção. intento de construir uns grandes monumentos, começando por pouco, um espaço, um fluxo de chão. aulas, algo com que sei lidar, aprendo a lidar, lido – está na fala e nos gestos um pouco de imensidão, de conhecimento. aprendizagem é algo que só se faz em curso, assim como mostrar: tornar visíveis processos, saber responder perguntas, localizar as pesquisas e tornar embates as vontades críticas, os permeios do sistema, e uns tantos modos de construir misturas. voluvear.

parede

sem lugar para o gosto
verbo, sem lugar para a dança
(lugar)

a-lugar eu faço, a esta hora
não antes, depois não saberei
o que seria dos rejuntes sem estes cantos

(e tantos anos sem ao menos uma linha escrita, aberta)

fechadas casas são as tuas, apesar de entrar
conheço tantos meninos com medos
de serem entrada, passeio, abertura

não era a tua, mas hoje
sempre reparo quando falas dos beijos dos outros
os beijos dos outros não existem seus
não lá

(como se negasse uma possibilidade, exame)

ação que em si mesma é só uma memória enviesada
recente, confusa,
clara em linhas retas de parede perfurada
sem chão

lugar

1. se existe alto e baixo, direito e esquerdo, frente e verso, existe um lugar. 2. se onde havia uma coisa e existe agora uma outra, existe um lugar. 3. se há um corpo, há um lugar. 4. se cada corpo está situado em um lugar próprio, existe um lugar.

[sim, aristóteles. recorrer às bases, mesmo que as sobrescreva depois.]

artefato. povo construído. lugar errante.

de imensidão só lhe restam as botas, de tantas viagens por aí que gastas as lembranças fico, paro com o intuito de me recompor.

imaginar um terreno que não seja matéria de composição mas desastre, atraso, atalhos mesmos que furtivos só guardo em memória. as técnicas de sobrevivência variam tanto. o lido com os lugares, o tratamento, o embate cotidiano e as danças.

é de madeira o chão, telhado inclinado, construído com as próprias mãos. prever o mínimo de interferência no ambiente, de verdade. floresta quando penetra a casa e transforma ela mesma em um labiríntico desafio que traz conforto, diverte. põe para secar ao sol o que sobrou de antemão, enche de água o que se quer cultivar. observa.

para os estoicos, o problema do lugar está ligado ao problema do movimento. um lugar é concebido pela transição dos corpos que por ele passam. tal como em aristóteles.

( )

delimitações. um lugar é um intervalo? uma posição.

territorialistas dirão, este é o meu lugar. distinção por entraves, catracas, limites desenvolvidos arbitrariamente, gerando a noção de propriedade. lugar tem dono?

diria a terra. um pedaço de terra, um lugar. matéria pura, compreendida em consonância com o que há em volta. música. estrutura, movimentos sistêmicos que cumprem rotas em variação, caminhos, danos, elevação. cíclicas voltagens, antes mesmo de construir.

do limite surge o referencial. talvez, de um terreno preciso. para ele são traçadas rotas, mapas, são criados mitos, memórias. formam-se famílias, redes e articulações organizadas por sistemas de parentesco, continuidades. talvez então isso: ao invés de cercas, noções de assimilação em grupo. contiguidades, modos de fazer e habitar.

um dia, emitem um protocolo, pisam em qualquer noção de hábito, mesmo cuidados. alheios são aqueles, os que não decidem os rumos do lugar. montantes outorgam demolição do terreno, inventam de substituir as construções. dizem: “é a modernidade!”. despropositadas ferraduras, racham o chão.

os sem medo, enfrentam. “é por uma noção de pertencimento, pelo direito que chutam a pontapés. e onde construir, então?” umas vidas. uns sossegos. uns hábitos, que elétricos, flutuam. atravessam paredes, rompem territórios, emanando flores por onde passam.

// publicado originalmente no vocabulário político para processos estéticos em 2014.

trans

TRANS-

conceber um SAIR do LUGAR implica sob certo sentido em uma superação. como ir além da experiência anterior; um ponto que impulsionado por MOVIMENTO gera uma outra situação.

transcender um momento disforme, pouco funcional, mambembe. desfazer uma certa dormência, reentender todos os processos. misturar a disposição dos intelectos.

uma bússola revirada, e revigorada.

em viagens recentes fiz questão de carregar uma bússola, companheira tão amiga quanto a lanterna e uma mochila gordinha, um pouco alta. apetrechos úteis, talvez neste caso ainda mais úteis enquanto ideias de viagem, desejos de nomadismo. vontades de incorporar um personagem explorador: expedito azuis, aquele que age, despachado viajante. procura caronas, aprende a voar. povoa de cores e florestas uma paisagem, ela mesma enquanto imagem de sossego e desafios, abrigo, localizada mais DENTRO do que FORA, para falar de coordenadas. desejos, como as praças e os lugares, se confundem. nada é só um mesmo, coisa afável e distinguível das demais.

ir além implica em transitar. na contramão dos engarrafamentos*, caminho sem pressa, atravesso pontes e escalo prédios. se trata de superar expectativas, por adquirir rumos truncados, incertos demais para especular. nada mais que um treino, até que saiba não existir em espera nem planejamentos complexos, mas sim em processo, corrente, que flui e escorre das calçadas, só anda a pé.

de uma precisão de rejuntes: extrair a simplicidade das coisas. descomplexificar, como um processo químico. para tal, é necessário desprogramar, repensar todos os sistemas e métodos vigentes. desordenar. haverá necessidades de; e se fizer de outro modo; se é verdade que preciso tanto; o solo mesmo não se refaz? composição. assimilar as cores do local, a partir dele construir e só. em volta, são tantas as coisas que estimulam a perda sem rumo, o caminho mesmo do cristal, do arranha-céu com tv de plasma e correrias.

transição. transitivo transitar dos entes mistérios, minérios, ritmos próprios constituintes da tábula rasa da monotonia. monotipia, rumos em vão: tantas técnicas e só vejo uma cor. ruído de voltagens, confunde nossos cérebros.

x

trans é um radical queer. que se situa para além dos sistemas, da compreensão costumeira dos entrecoisas. costura bordados e ri do próprio desatino, desconversa, nunca se saberá ao certo onde vai. pode assumir caracteres absurdos, atravessar a amazônia, se transformar.

transtornos são possíveis, aspectos sinceros que vêm à flor da pele, se perdem. água e animais, super gêmeos ativar, sempre outra coisa que não a esperada. x, que não tem gênero nem classe, assume formas variadas de acordo com a situação. estratégia faz parte de sua estrutura desestruturante – preparada para transcender as maiores crises, entrar em transe, alucinar.

*processos lúdicos que implicam em engarrafar carros e pessoas, como consequência de um equívoco histórico. são intensos, memoráveis e até mesmo hilariantes, tão presentes no cotidiano de cidades populosas. paradoxalmente, quando se procura saber a respeito do estado dos engarrafamentos locais, fala-se em informações sobre o TRÂNSITO.

// publicado originalmente no vocabulário político para processos estéticos em 2014.

sair

Inez saiu dizendo que ia comprar um pavio
pro lampião
Pode me esperar Mané
Que eu já volto já
Acendi o fogão, botei a água pra esquentar
E fui pro portão
Só pra ver Inez chegar
Anoiteceu e ela não voltou
Fui pra rua feito louco
Pra saber o que aconteceu
Procurei na Central
Procurei no Hospital e no xadrez
Andei a cidade inteira
E não encontrei Inez
Voltei pra casa triste demais
O que Inez me fez não se faz
E no chão bem perto do fogão
Encontrei um papel
Escrito assim:
– Pode apagar o fogo Mané que eu não volto mais

(adoniran barbosa, apaga o fogo mané, 1974)

 

baratinada, atordoada pelas constantes mudanças e transformações. ao mesmo tempo entusiasta, enxame de possibilidades geradas pelo tempo que abre uma nova camada de espaço/lugar, novos planos, desandos, perambulâncias e afazeres locais.

sair é intimamente ligado a lugar, sair como espécie de fuga premeditada, sair como vontade de sair do lugar (“mexe essa bunda da cadeira”), sair como solução aparentemente fácil (esvair-se da presença, não lidar com); sair é ir, é partir(-se em pedaços? pulverizar), algo referente a circunstância, uma necessidade, um meio.

sair como uma intenção de lugar. realocar o corpo ou um estado, o sujeito, para refazer sua potência, para entender-se de novo, para alhear (imensa necessidade de alheamento, tantas vezes se faz)

sair implica em movimento: mover-se pelas próprias pernas. tomar iniciativa de, encontrar ou procurar um rumo, pôr-se a caminho

(duros empenhos em sair do lugar)

lidar com a hipótese de fuga é de algum modo mais fácil que lidar com a ação. que precisa de tempo para compreensão, implica em processamento (de dados, de mudanças, de estados de corpo e cansaço). zerar as possibilidades é um fetiche que, diante de algo duro, se refaz constantemente.

– e se eu, simplesmente, saísse daqui?

sair como ação impensada, tomada de posição, absurda ação mesma que não se define, como se simplesmente sair se faz

(e então, estado presente que atormenta, algo a que se quer abandonar)

pontapé para o infinito, atadura. semmãos, semmedo, mmordedura. coragem, aquilo de que tanto falam os clássicos romanescos sem era, que se sobrepõem a uma realidade turva, demasiado complexa para nossos contos de fada caninos. anacronismos de infância, maus adestramentos. depois de um tempo, os embalsama todos e transforma em leituras de maniqueísmos diversos, notícias sem profusão nem densidade, as quais só se lê às partes. reitera discursos ou cria coisa alguma, mas segue algum rumo estrito que supostamente se concretiza. ou não, engole a rebelião e bate ponto no escritório, todos os dias, eis o método que seu pai lhe ensinou.

fuga estaria adoecida pela vontade de escapar, impulso dormente que não tem lugar? abstrata palavra sair, enquanto que fuga apresenta forte oposição (como fugir de – ou fuga, substantivo, algo que acontece ou se sucedeu). a fuga antecede a memória, esvazia-se em ato: simplesmente ir, fugir da coisa, sair do sistema, remodelar ou implodir tudo em fato

(esvair-se do sistema é algo absolutamente sedutor e iminente; difícil concretizar)

da vontade de sair e do semmedo da história, da fuga que tem por desejo existir, há em tudo uma propensão a um fora, um desejo de alhear disso que aqui está

(como um estado de coisas que se altera por uma ação, por mais que esta se faça em abandono)

o truncado está aí, pois se sistema nada faria para tornar fáceis as medidas, codificáveis os modos:

– e quiçá existe um fora?

ou o fora ele mesmo já está dentro? faz parte de um comum que a tudo se esquiva e penetra?

entranhas nervuras e atravessamentos, outrora solfejos, coisas que não têm lugar

permeios e sucessões esquivas irá, irá, encontrar um morcego em um lugar sem hora, sem memória, fora de linha e calado de números, talvez,

liberdade turva só acontece quando não se vê, quando alegre mentira costura sossegos onde quer que se vá.

sair, contudo, ainda é um meio que se faz.

nem que seja para alterar lugares, contaminar uns com os outros, colher um a um. e não deixar lugar.

(identitárias vontades explodiram no ar)

// publicado originalmente no vocabulário político para processos estéticos em 2014.