derrida e o labirinto do livro: primeira volta

por inês nin, março de 2013

 

“Estranha a serenidade de tal retorno. Desesperada pela repetição e contudo alegre por afirmar o abismo, por habitar o labirinto como poeta, por escrever o buraco, ‘o destino do livro‘ no qual só nos podemos enfiar, que devemos guardar ao destruí-lo. Afirmação dançante e cruel de uma economia desesperada. A habitação é pouco acolhedora por seduzir, como o livro, num labirinto. O labirinto é aqui um abismo: penetramos na horizontalidade de uma pura superfície, representando-se a si própria de meandro em meandro.”

(Jacques Derrida, A Escritura e a Diferença)

 

De um lado a linguagem ordenada e dura das intituições, da teoria que se pretende firme, e, de outro, uma possibilidade de “abertura” à vastidão do mundo, o qual adquire sentido somente quando este lhe é atribuído (um movimento posterior, portanto, que exige em si algum esforço em sua execução). Como diz Derrida, em A Escritura e a Diferença:

Aqui ou ali, discernimos a escritura: uma partilha sem simetria desenhava de um lado o fechamento do livro, do outro a abertura do texto. De um lado a enciclopédia teológica e segundo o seu modelo, o livro do homem. Do outro, uma rêde de traços marcando o desaparecimento de um Deus extenuado ou de um homem eliminado. A questão da escritura só se podia iniciar com o livro fechado. A alegre errância do graphein era então impossível. A abertura ao texto era a aventura, o gasto sem reserva. (DERRIDA, 1971, p. 73)

Não cabe, nessa leitura, qualquer vontade de plenitude, de “dar conta de”, de apreender um conceito. Os “quase-conceitos” de Jacques Derrida podem funcionar, em um primeiro momento, como tentativa ou porta de acesso a um texto que tanto rodeia, se perde em labirintos, evoca funções que lhe fogem à palavra, à presentificação de sentido que de alguma forma procuramos. Busca que de vez em vez retorna, talvez por vício de leitura, de linguagem, mas também por vontade de compreensão, de apreender de um sentido que insiste em escapar a todo momento (e, talvez, justamente por isso, se mostre mais maduro, seguro de suas incertezas).

E contudo não sabíamos nós que o fechamento do livro não era um limite entre outros? Que é apenas no livro, voltando constantemente a êle, tirando dêle todos os recursos, que nos seria necessário indefinidamente designar a escritura de além-livro? (ibid., p. 74)

“Eu perguntava a você por onde começar e você me encerrou em um labirinto”(1), protesta Henri Ronse ao entrevistar Derrida. Não se pode encarar uma obra sua como primeira, situada linear e claramente em algum ponto de um percurso trilhado, pois os caminhos são vários, e se permutam, se deixam corromper.

O retorno que em forma elíptica tende a um retorno ao texto, à origem que não é primeira, mas já é ela repetição em si. Uma espécie de paixão pela origem faz a escritura, “uma origem pela qual nada começou”. Dela só se encontra rasto, mas “não é ausência em lugar da presença”, pois ela nunca esteve presente. “Longe de se deixar oprimir ou envolver no volume, esta repetição é a primeira escritura”(2). Repetir é mistificar, criar a linha na qual se desdobra o pensamento, portanto leitura de algo que o antecede.

Se a linha é mistificação, o livro é o labirinto. “É infinita a hesitação entre a escritura como descentramento e a escritura como afirmação do jôgo.” (ibid., pp. 77-78). Descentramento porque não é possível formar um centro, completar o círculo, centralizar. A cada retorno a linha se modifica, é repetição e no entanto já não é a mesma. Esse lapso, intervalo impossível de captar, é em si variação. A repetição produz diferença. “O outro está no mesmo”(3), diz Derrida.

Encontrar o centro não seria a morte do texto? O centro seria o apaziguamento da escritura, onde não acontece. Onde não há mais jogo e não mais se produz diferença. Derrida diz que o centro é o mesmo que a morte, talvez situado no deslocamento da pergunta. É o inominável, o poço sem fundo fora do alcance. O desvio do processo, do jogo do devir, da transformação. “O centro é o luto”(4), diz o rabino.

No pequeno texto com que lidamos, que trata da elipse, Derrida parte do Livre de Questions, de Edmond Jabès, composto de sete tomos em torno “daquilo que não pode ser dito”, isto é, o Holocausto, ou a própria literatura. A relação com esse descentramento, com essa busca, torna-se visível ao ler Derrida sobre suas obras:

Pode-se tomar a Gramatologia como um longo ensaio articulado em duas partes (cuja soldatura é teórica, sistemática e não empírica), no meio do qual se poderia inserir A escritura e a diferença. … Inversamente, pode-se inserir a Gramatologia no meio d’A escritura e a diferença, uma vez que seis dos textos dessa obra são anteriores, de fato e de direito à publicação. … Mas as coisas não se deixam reconstituir, como você pode imaginar, tão simplesmente. (2001, p. 10-11)

Quanto título A voz e o fenômeno, Derrida diz que “sem dúvida, eu poderia tê-lo anexado, como uma longa nota, a qualquer das duas outras obras.” (ibid., p. 11). Publicados no mesmo ano (1967), os três livros se complementam e permitem atravessamentos que se dão por diferentes caminhos.

Há outras obras de Derrida sobre as quais se debruçar, sem dúvida, mas ao que essa resposta serve de exemplo é justamente à questão de como adentrar esse texto, que é, também (por vezes mais ou menos explicitamente) leitura de outros. Sem que com isso se atenha a uma tradição específica na qual o poderíamos encerrar. Como diz o próprio: “Tento me manter no limite do discurso filosófico” (ibid., p. 12), operando em um duplo gesto que aponta para fora(5) dessa estrutura, desse “sistema de constrições fundamentais, de oposições conceituais” que é a filosofia.

Por meio do que ele chama de “rasura”, a leitura das funções obliterantes presentes no interior desse sistema se torna possível, “inscrevendo violentamente no texto aquilo que buscava comandá-lo de fora” (ibid.). E avança, no que contribui para a apreensão de um quase-conceito importante em seu trajeto:

“Desconstruir” a filosofia seria, assim, pensar a genealogia estrutural de seus conceitos da maneira mais fiel, mais interior, mas, ao mesmo tempo, a partir de um certo exterior, por ela inqualificável, inominável, determinar aquilo de que a história foi capaz – ao se fazer história por meio dessa repressão, de algum modo, interessada – de dissimular ou interditar. Nesse momento produz-se – por meio dessa circulação ao mesmo tempo fiel e violenta entre o dentro e o fora da filosofia (quer dizer, do Ocidente) – um certo trabalho textual que proporciona um grande prazer. (ibid., p. 13)

Haddock-Lobo, em sua tese de doutorado, aponta que “o deslocamento da desconstrução se dá quando, ao mesmo tempo, se respeita e se desordena a ‘ordem interna’ de um texto” (2007, p. 88). Segundo o autor,

Este é o “trabalho” e o “amor” de Derrida. Desconstruir. Só se desconstrói o que se ama, diz ele em O monolingüismo do outro. Isso porque este é o desejo de Derrida, o desejo de fazer justiça à alteridade mesma, a este outro que sempre escapa e que sempre foi apreendido, compreendido, preso pela tradição filosófica. (ibid.)

Apontando para uma direção distinta de Caputo, Haddock-Lobo destaca que o “amor a esse outro” não se dá através de uma “hermenêutica radical”, como diria Caputo, implicando, de todo modo, em um pensamento que se pauta por antagonismos como dentro/fora, presença/ausência, véus/desvelamento, o que não parece combinar com os quase-conceitos que operam em Derrida. O texto de Caputo se ampara em uma vontade de real ou de presença que se imporia na relação com esse outro. Caputo identifica em Derrida o que chama de “hiper-realismo”:

O hiper-realismo de Derrida deve ser pensado como um realismo além do realismo, um ‘realismo sem realismo’, de acordo com a lógica do sans, tal como a encontramos na sua “religião sem religião” (2002, p. 41).

E completa, mais adiante:

O hiper-real, o real para além do real, o que se encontra mais fora de nosso alcance, o mais além de tudo, é o que está por vir, o que esperamos, oramos e vertemos lágrimas para que venha, com o coração inquieto de um Agostinho judeu. … No hiper-real, a realidade é sempre abundante em expectativas. O mundo é o objeto não tanto de nossa percepção, mas de nossas orações e lágrimas. (ibid., p. 47)

Pois, nas próprias palavras de Derrida, “Não se poderá afirmar a não-referência ao centro em vez de chorar a ausência do centro? Por que razão se faria luto pelo centro?” (DERRIDA, 1971, p. 77). A interpretação de Caputo parece deslizar: topa com Santo Agostinho e verte-se em ansiedade. Haddock-Lobo observa que, para o autor, essa “coisa mesma que sempre nos escapa” nada tem a ver com orações e lágrimas. Ao contrário, diz ele que

O amor de Derrida é o amor pela partição no interior da coisa mesma, é o amor pela tensão, pelo quiasma, pela indecidibilidade mesma do real. E é esse amor que nos faz desconstruir, inclusive e sobretudo, o real, não para mostrar que existe um real mais real do que o real, mais real do que o rei, mas sim para mostrar que o real é multifacetado, diverso. (2012, pp. 7-8)

Aceitar essa impossibilidade de apreensão completa do todo é o ponto de partida para pensar qualquer diferença. O outro ou diferente que se coloca ao mesmo tempo como espelho e figura indecifrável, do qual o sentido, sempre insuficiente para dar conta de sua existência, se sobrepõe a ele enquanto leitura. A parcialidade implícita nesse contato é turva, mas é justamente isso o que seria o “amor” de Derrida, residir e lidar com essa indecidibilidade – e não procurar resistir a ela, orar para que ela se presentifique.

Retornemos ao inominável. Aos signos que se repetem indefinidamente, variando e gerando emaranhados, labirintos. Em Derrida, “pensar é estar diante do impossível”. É preciso assumir essa arbitrariedade do pensamento e do outro, como a reação de estranhamento do gato(6) diante de uma ação humana, mantendo-se no limiar das coisas. Para Derrida, “o real se mostra no ‘branco’ do discurso, no não-dito do texto.”

 

Notas

(1) DERRIDA, J. Posições, p. 11.

(2) DERRIDA, J. A Escritura e a Diferença, p. 74.

(3) DERRIDA, J. A Escritura e a Diferença, p. 76.

(4) DERRIDA, J. A Escritura e a Diferença, p. 77.

(5) Derrida chama a atenção para uma tensão permanente entre o “dentro” e o “fora”, que não estão em absoluto distantes, ao contrário, se contaminam… Nesse lugar do “entre” está o indeterminável, zona de contaminação, que nada mais é que uma fina camada como o tímpano de um ouvido: permeável, que pode ser rompido. E que escuta, tem acesso a ambas extremidades.

(6) DERRIDA, Jacques. O Animal que Logo Sou. São Paulo: Unesp, 2002.

 

Referências

CAPUTO, John. Por amor às coisas mesmas: o hiper-realismo de Derrida. In: DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar (org.). Às Margens – A propósito de Derrida. Rio de Janeiro: Editora PUC, 2008.

DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971.

___________ O Animal que Logo Sou. São Paulo: Unesp, 2002.

___________ Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

HADDOCK-LOBO, Rafael. O “hiperrealismo” de John Caputo e a desconstrução do real de Jacques Derrida. Texto apresentado no GT Desconstrução, Linguagem e Alteridade no XII Encontro Nacional da ANPOF, entre os dias 22 e 26 de outubro de 2012.

___________ Para um pensamento úmido – A filosofia a partir de Jacques Derrida. Tese (Doutorado em Filosofia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.