contracultura e a música popular brasileira entre os anos 60 e 70

por inês nin, dezembro de 2007

 

Mandei fazer de puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na avenida central
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer

Panis et Circenses
(Caetano Veloso e Gilberto Gil,
interpretada por Os Mutantes)

 

Não, não é uma estrada, é uma viagem
Tão, tão viva quanto a morte
Não tem sul nem norte
Nem passagem

Ferro Na Boneca
(Paulinho de Boca de Cantor e Morais Moreira,
interpretada pelos Novos Baianos)

Introdução e breve histórico

O lançamento da bomba atômica pelos EUA nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, em 6 de Agosto de 1945, deu início a um período histórico conhecido como Guerra Fria, gerando conseqüências extremas para qualquer lado que se procurasse. Na verdade, a partir de então, qualquer dissidência entre ideias se tornava rivalidade mortal, e quaisquer ideais em que se acreditasse se tornariam imediatamente ameaças ao seu oposto, ou mesmo seriam considerados conspirações. Isto, é claro, caso não seguissem estritamente as regras da ordem dominante.

À esfera mundial foi imposta uma divisão rigorosa entre dois pólos – os que eram e os que não eram; os fascistas e os socialistas; os dominantes e os que deveriam ser dominados. Tudo isto motivado pela ameaça de uma guerra nuclear, uma vez que era fato conhecido que pelo menos cinco países haviam produzido bombas atômicas, e os outros procuravam investir em pesquisas nucleares, configurando desta forma uma corrida armamentista.

Ken Goffman e Dan Joy, no recém-publicado no Brasil Contracultura Através dos Tempos – do Mito de Prometeu à Cultura Digital, dizem que “no dia seguinte à ‘bomba’ o discurso intelectual e a mitologia popular se concentraram na aniquilação em massa. O niilismo era inevitável.” (GOFFMAN, Ken e JOY, Dan, 2007, p. 250).

No livro, eles consideram como contraculturais mesmo personagens míticos arcaicos, como Abraão e Prometeu, por se encaixarem em uma determinada maneira de pensar que, contrária às ordens então vigentes, pode torná-los atores sociais participantes da construção de contraculturas. Entretanto, é somente a partir da segunda metade do século XX, era de extremos, velocidade e “fusão entre tempo e distância” (GOFFMAN, Ken e JOY, Dan, 2007, p. 251) que se estabelecem as contraculturas tais como as procuramos (re)conhecer hoje.

Retornando à perspectiva histórica que começamos a situar, em se tratando dos aspectos locais, no Brasil não foi diferente: o país estava inserido no contexto do mundo polarizado, ainda que não como um dos agentes centrais da cena. Desde o momento pós-bomba atômica e início da Guerra Fria, durante o primeiro governo Vargas (1930 – 1945), o Brasil se aproximou das idéias anti-comunistas dos EUA e seus aliados. Posteriormente, Eurico Gaspar Dutra em seu governo (1946 – 1951) rompe relações diplomáticas com a URSS. Depois disso, Getúlio Vargas reassume o poder, desta vez por voto popular e “nos braços do povo” e dá continuidade à sua política populista. Em seguida, depois do suicídio de Vargas, Juscelino Kubitschek se torna presidente (1956 a 1961), tendo como sucessores Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961 – 1964), cujas idéias (“Plano Trienal”), não podendo ser levadas adiante, abrem espaço para as reivindicações de uma esquerda cada vez mais radical e, conseqüentemente, para uma direita radical que deseja se impor. A situação tem seu apogeu na ocorrência do golpe militar de 1964, que destitui os cidadãos brasileiros da liberdade de voto e de outras liberdades que viriam a ser cerceadas, censuradas e aniquiladas nos anos que viriam pela frente.

A música popular brasileira engajada

A MPB como a conhecemos hoje surge nos anos 60. Identificada prioritariamente com a bossa nova, a qual, se colocando em oposição à popular jovem guarda, agregava elementos do jazz norte-americano (em especial o bebop e o cool jazz), do samba e de outros ritmos como a valsa, o baião e mesmo o bolero.

Artistas como João Gilberto, Vinícius de Moraes e Tom Jobim, bossanovistas, encontraram aceitação e sucesso em especial perante à crítica e ao público considerado mais exigente; não necessariamente aquele popular, mas um mais sofisticado e que podia ver no minimalismo no qual as canções se estruturavam uma beleza, uma estética simples que combinava muito bem com as areias de Ipanema, no Rio de Janeiro, ou mesmo com a desaceleração das praias do litoral baiano.

À bossa nova seguiram diversas críticas acerca de suas temáticas, que falavam de flores, sorrisos, amores e moças bonitas, temas que poderiam ser considerados alienantes para uma parcela dos críticos e da população. De fato, o resultado ameno das canções bossanovistas, que mais combinavam com fins-de-tarde de sol regados a caipirinha e um violão desplugado, não mais se conectavam com o momento histórico e político no qual o Brasil entrou a partir de meados dos anos 60, com o golpe militar de 64 e o momento de guerra fria que explodia em movimentos pacifistas marcados por atitudes extremas em diversos países do mundo. Teve início, então, uma certa crise no conceito de MPB em seu sentido estrito e clássico, mas foi uma crise criativa, representada especialmente pela tropicália.

Os tropicalistas faziam parte de um movimento de vanguarda que ultrapassava os limites da música, compreendendo também as artes plásticas (Hélio Oiticica, em especial), o teatro e o cinema (sendo influenciado mutuamente pelo cinema novo de Glauber Rocha). Como maiores expoentes no campo da música podemos citar Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes, que agregavam em suas composições influências da Antropofagia de Oswald de Andrade, de vanguardas artísticas como a Pop Art e o Concretismo e da música mundial, como o rock’n’roll dos Beatles e dos Rolling Stones.

As canções tropicalistas são marcadamente políticas, em sentindo amplo, fazendo o uso de linguagem subjetiva e diversas metáforas para falar de alienação (Panis et Circensis), sofrimento (Mamãe, coragem) e de outros temas, sempre de forma irreverente e extremamente criativa.

No início dos anos 70, durante a fase mais dura do regime militar (pós-AI-5), os mais conhecidos artistas ativos brasileiros – dentre eles músicos como Caetano Veloso, Chico Buarque e Geraldo Vandré – se encontravam exilados fora do país, em cidades como Londres ou Paris. O início do governo Médici significou, de um lado, repressões mais violentas àqueles que se opusessem ao regime de qualquer forma considerada suspeita, e de outro, uma política voltada em direção à conquista do apoio da classe média, através de políticas de estímulo ao consumo e propagandas acerca do crescimento econômico do país.

De acordo com Marcos Napolitano (NAPOLITANO, 2001, pp. 83 – 84),

Para o jovem com mentalidade crítica que vivia no início dos anos 1970 restavam três opções: a resistência democrática em pequenas ações no seu cotidiano; a clandestinidade da guerrilha ou o chamado desbunde e a busca por uma vida ‘fora’ da sociedade estabelecida. (…) As comunidades hippies protagonizavam uma nova forma, não comercial, de viver a cultura, baseada na prática do artesanato, na diluição das fronteiras entre vida e arte e na busca de novos valores morais e na busca de um novo comportamento sexual, com base no chamado ‘sexo livre’.

Inserido nesse contexto de tão poucas possibilidades, momento de extremos e severidade da parte do governo, e acima de tudo de ausência de expectativas, se destaca o grupo Novos Baianos, representante da cultura do desbunde que marca este momento histórico. As características híbridas constituintes da canção brasileira (NAPOLITANO, 2003) presentes de forma bem explícita nas canções tropicalistas, se verificam também nas composições dos Novos Baianos, como influência (muito forte, no início).

O grupo, formado por Luiz Dias Galvão, Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor, Baby Consuelo e, durante algum tempo, o bailarino Gato Félix, vivia em uma casa situada na Zona Oeste do Rio de Janeiro que funcionava como uma comunidade hippie. O som do grupo agrega, além das influências tropicalistas, ritmos como o frevo e o rock, e, a partir do disco Acabou Chorare, que conta com a parceria de João Gilberto, também elementos da bossa nova.

O contexto político, neste momento, já não compreendia mais espaço para alguma manifestação de esperança, ainda que irreverente, como havia na tropicália. As canções deste momento já passam para um patamar além da crítica política explícita ou não, para temas que vão do nonsense puro e simples (Ferro Na Boneca, do disco homônimo), como um divertimento, a temas pessoais (Baby Consuelo) ou referentes à cultura brasileira (Brasil Pandeiro, de Acabou Chorare).

O hedonismo e a negação à sociedade tal como ela estava estruturada, com todos os seus problemas e complexidades, é expresso tanto nas letras quanto no modo de vida dos membros do grupo (e de outras comunidades hippies da época). E este estilo de vida se comunica diretamente com a temática abordada em filmes como Hair, de Milos Forman (1979), ou Bem-vindos (Tillsammans), de Lukas Moodysson (2000).

A contracultura hippie dos anos 60 e 70

De acordo com o dicionário britânico Oxford, contracultura se define por:

counterculture. noun [c, u]. a way of life and set of ideas that are opposed to those accepted by most of society; a group of people who share such a way of life and such ideas: the anti-military counterculture of the 1960s.

Essa definição nos ajuda a situar o contexto com o qual dialoga o filme Hair, de Milos Forman (1979). Originalmente uma peça de teatro, que começou off-Broadway e terminou por fazer tanto sucesso na própria Broadway que foi levado ao cinema, o musical retrata de forma bem-humorada o encontro de um grupo de amigos hippies durante os anos 60 com um futuro voluntário da guerra do Vietnã. O espaço é Nova York, Estados Unidos.

Apesar do universo alegre e multicolorido que era a contracultura hippie e pacifista dos anos 60 (identificada com a hoje emblemática expressão peace & love e o movimento flower power), que ganha um tom reforçado por se tratar de um musical (logo, danças coreografadas repentinas e músicas hilárias que fazem parte da história), a película tem um desfecho trágico, contado da forma mais direta mas também delicada, através de imagens permeadas por uma música que é, então, triste e melódica.

O final não poderia ser diferente quando se fala de um momento histórico tão tenso e polarizado como era aquele, representado de um lado pelo rapaz que vem de Oklahoma, típico estado de interior de forte influência religiosa e moralista dos EUA, e se alista para a guerra, acreditando que com isso cumpre um dever para com o seu país; e de outro aquele bando de hippies, de roupas estampadas e alegres – quando as usam –, que vivem não se sabe exatamente como, preenchendo seus dias com drogas para expansão da mente, amor livre e demais formas de liberdade (da forma como a entendiam).

Existe, ainda, um terceiro personagem (encarando assim o grupo como um, pelo lugar que ocupa), que é a moça de família rica e tradicional que se interessa pelo futuro militar, aproveitando ainda para demonstrar uma espécie de dicotomia entre a sua vida pública de colunável certinha e os reais interesses da moça.

Hoje um clássico, Hair é um perfeito exemplo desta contracultura que se localiza temporalmente, identificada com os anos 60 e aquele determinado momento histórico que se vivia nos EUA, no Brasil e no mundo. Os Novos Baianos e as práticas relacionadas ao desbunde, no Brasil, se identificam genericamente com os mesmos ideais e atividades que o grupo de personagens do filme; aqui, ao invés da guerra do Vietnã, vivia-se sob o regime militar.

Em Bem-Vindos a situação é um pouco diferente: apresentando uma postura crítica e bem-humorada acerca dos valores e costumes hippies e convencionais dos anos 70, eles, quando postos em confronto, acabam por encontrar, incrivelmente, um denominador comum entre ambas as partes. O filme se passa em 1975 na comunidade hippie Together, na qual seus membros atravessam mudanças em suas vidas a partir da chegada da irmã de um dos moradores, que vem de um casamento tradicional. Logo passam a fazer parte da vida dela atitudes feministas e “livres”, enquanto que seus filhos têm que encarar uma nova forma de lidar com o conceito de família, seus hábitos e costumes.

Tanto em Hair, em Bem-vindos ou no caso dos Novos Baianos, encontramos representada, seja em ficção ou realidade, o que foi a contracultura hippie de finais dos anos 60 e início dos anos 70. A partir de então, o estilo de vida ligado ao amor livre, a não violência e os respectivos protestos e manifestações entrou em declínio, o hedonismo mais que nunca imperava, pois os ideais com bases sessentistas não mais faziam sentido.

Conceitos de contracultura e a perspectiva temporal

A contracultura também pode ser encarada como um conceito genérico que possui determinadas características, identificadas em variados períodos da história. A respeito disso, Ken Goffman e Dan Joy dizem que

as contraculturas são movimentos de vanguarda transgressivos. O apego contracultural à mudança e à experimentação inevitavelmente leva à ampliação dos limites da estética e das visões aceitas.

Os autores colocam ainda que, de modo geral, as contraculturas se caracterizam pelas “rupturas radicais em arte, ciência, espiritualidade, filosofia e estilo de vida; diversidade; comunicação verdadeira e aberta (…); perseguição pela cultura hegemônica de subculturas contemporâneas e exílio ou fuga.”

Para Stewart Home, autor de Assalto à Cultura, os movimentos contraculturalistas (ou samizdat, como ele escolhe chamar), em conjunto, compõem uma tradição dissidente. O livro possui um enfoque maior nas vanguardas das artes plásticas, ainda que também fale do movimento punk, mais conhecido por sua expressão musical. Assim como o punk, outros não raro extrapolam seus limites e influenciam a música produzida no mesmo espaço e tempo dos quais participam, ou mesmo em outros espaços. Home acrescenta que

enquanto os movimentos sobre os quais estou escrevendo situam-se em oposição ao capitalismo consumista, eles também emergiram de sociedades baseadas em tal modo de organização, e assim não escapam inteiramente da lógica de mercado. (…) No entanto, (…) (eles) nem sempre falham em romper com a ideologia da sociedade reinante.

As características de ruptura, rebeldia, subversão e criação de novas formas de vida e de arte seriam, afinal, os principais pontos em comum entre os movimentos hippies dos anos 60 e 70, o flower power e o desbunde, a tropicália e os Novos Baianos, dentre todos os outros, inclusive o punk que viria em seguida. Todos eles se unem dentro do que seria essa tradição dissidente; possuem um olhar diferente sobre a realidade, a iniciativa de criar a sua própria e a de combater quaisquer formas de cerceamento à liberdade empreendidas em seu momento histórico.

Os movimentos contraculturalistas, que encontram na música uma das suas principais formas de expressão, podem ser considerados os novos ares necessários a respirar por uma sociedade sufocada em regras, dogmas e circulos viciosos, o que invariavelmente acaba por acontecer. Pois as inovações, embora não raro rejeitadas em princípio, logo tentem a ser assimiladas pela lógica da mesma (a de mercado, no caso do sistema capitalista) e então novas formas de subversão e movimentos de ruptura irão surgir. E as sociedades precisam deles para que possam se renovar.

O filme Edukators (Die Fetten Jahre sind vorbei), de Hans Weingartner (2004), fala desse assunto muito bem. Em formato de ficção e situado no momento contemporâneo, ele retrata um grupo de jovens alemães que acredita em ideais anárquicos e se envolve em ações encaradas pelo Estado como ilegais, mas que pretendem fazer os outros (no caso, milionários) refletirem sobre a sua situação perante à sociedade. Também fazem uso de drogas ilícitas, se divertem e acabam por formar um triângulo amoroso.

Jovens, cheios de ideias e esperanças, acabam por se encontrar confrontados com um homem de meia-idade, então milionário, que também na juventude participou de movimentos contraculturalistas em fins dos anos 60. Agora ele é um senhor conformado, complacente com a lei, reacionário, que passa suas noites solitárias contando seus milhões em sua mansão, enquanto degusta um whisky importado.

Invariavelmente notamos que os principais agentes de movimentos contraculturalistas são jovens que assumem para si um papel transformador, aceitando correr riscos para que possam catalizar novas formas de vida. Ainda que suas transgressões, uma vez assimiladas, assumam cores mais brandas ou mesmo cheguem a perder o sentido quando deslocadas de seu contexto, os registros de seus atos possibilitam o acesso a algo do que um dia foram, podendo influenciar gerações vindouras e sedentas por mudanças.

Referências

NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira – utopia e massificação (1950-1980). Contexto, 2001.

NAPOLITANO, Marcos. A Canção engajada nos anos 60. In: CAMBRAIA NAVES, S. & DUARTE, Paulo Sérgio (orgs.) Do Samba-canção à Tropicália. RJ: Relume Dumará, 2003.

GOFFMAN, Ken e JOY, Dan. Contracultura Através dos Tempos – do Mito de Prometeu à Cultura Digital. Ediouro, 2007.

OXFORD Advanced Learners Dictionary, International Student’s Edition. Oxford University Press, 2001.

HOME, STEWART. Assalto à Cultura – utopia subversão guerrilha na (anti) arte do século XX. Conrad, 2005.