atravessamentos de lugar, chão: habitação, exílio e afetos

No dia 22 de agosto de 2019, a amiga Laura Burocco convidou a mim e Amanda Costa para uma conversa sobre nossos trabalhos, relacionando-os com as mudanças pelas quais passou a cidade do Rio de Janeiro nos últimos anos. O eixo, ou gancho da conversa, foram as obras do VLT nas zonas portuária e central da cidade, documentadas por Laura e amigos ao longo de algum tempo. Eu e Amanda partilhamos desse processo e trouxemos também outras experiências próximas.

A conversa ocorreu no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, no centro do Rio, no contexto da exposição Gentrilogy, da Laura Burocco, que estava em cartaz.

 

Como parte da programação da Exposição Gentrilogy : Trilogia da Gentrificação convidamos por uma conversa sobre a ação de mapeamento fotográfico do VLT realizada em 2016 dentro do programa do Capacetando : Verão Combustível. Mariana Paraizo realizadora do trabalho BANCO estará conosco por falar sobre o seu trabalho em dialogo com Braamopoly.

A seguir,  Amanda Costa e Inês Nin – artistas que participaram do mapeamento – apresentarão projetos próprios em dialogo com a cidade e experiencia urbana.

15.00 | 16.00 visita da expo + apresentação do Mapeamento do VLT / Capacetando

16.00 | 16.30 BREVIÁRIO

 

 

caminhada pelo percurso do VLT em obras >> fotografias e imagens que produzi no rio ao longo do período estendido do rio de janeiro em obras, de 2013 a 2016, em localidades do centro e da zona norte (praça varnhagen, estácio, manguinhos, carioca) >>

reuni alguns trabalhos que fiz e que surgiram afetados por esse processo de transformação da cidade, gentrificação e desdobramentos, além de alguns textos, dos quais trago pequenos trechos >>

do vocabulário político para processos estéticos, org. cristina ribas, eu escrevi o verbete para a palavra “lugar” – e o livreto da exposição começa com essa palavra >>

as impressões têm um cunho um tanto pessoal, mas são processos atravessados por esses escombros. andei refletindo sobre o que decorre dessas escavações num sentido subjetivo, traçando paralelos >>

falo de uma fuga e de uma volta ao lugar

 

vista do morro da conceição, coletivo ipê, 2011

 

obras na praça varnhagen, 2013

 

obras olímpicas em frente à residência casa comum, estácio, 2016

 

implosão da via perimetral, 2014

 

registros em lomo fisheye das obras do VLT, 2016

 

endereço 04 ou mudanças, obra-processo de 2013

 

still de cena final do filme “Cemitério do Esplendor” (2016) do cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul: entre memórias do lugar, camadas de solo, escavadeiras e futebol, me lembra a cidade do Rio

 

§

me contaram histórias de árvores.

elas esgarçavam suas botas para alcançar o outro lado do oceano. obviamente disse galhos, não botas. espasmódicas botas, digo galhos, costuravam versões de si próprias em novelos, e a cada vez lançavam ao oceano.

lançaram muitas vezes, ao longo dos anos. tantas, que foi formando um monte, depois uma montanha, e então uma ilha, que soterrava baleias por baixo de suas raízes. digo superfície.

o objetivo era chegar na outra margem, e, sem sombra de dúvida, não afundar. mas afundaram até gerar uma outra terra, ainda incógnita e não mapeada por nenhum satélite.

uma proeza, diria. astutos modos capazes de enfim criar algum norte. quase em literalidade.

o próximo passo seria tentar observar de longe para entender suas dimensões. mas não por satélite nem nenhum dispositivo digital ou eletrônico. alçaram lentes inseridas num tubo, disposto em tripé no alto de um longo mastro de navio. que era em si mesmo uma árvore de raízes flutuantes e galhos muito compridos, cuidando de modos de nevegar.

para o alto do mastro, muitas lentes foram coletadas de sucatas, do chão. formaram uma grande luneta, quase um telescópio, e assim enfim pôde bradar-se: terra à vista!

o próximo passo foi pôr as raízes, de aprendizado elástico, a locomover-se lentamente até esse território sem nome. as árvores assumiram seu caráter de teia, que enevoava-se entre elas a trocar substratos, e em mutirão, transmutaram-se em gigantescas aranhas para conseguir alcançar o navio.

se maior fosse o bando, poderiam mesmo ter criado modos de prescindir da navegação, fazendo de seus galhos e teias uma longa ponte que levasse até a terra inventada. contudo, era um caminho arriscado, pois certamente rastreadores de média capacidade notariam tamanha intervenção. portanto, optaram por lançar-se aos mares.

a árvore é o navio que é a aranha, composta de muitas teias e galhos, alcançando altas dimensões e podendo avistar longas distâncias.

uma lupa, você disse. para criar aproximações.

nenhum dispositivo de alta precisão. nenhum cálculo consciente foi feito. ângulos e indicações das estrelas guiaram o caminho, as árvores resolutas, todo um ecossistema a se criar a bordo.

o objetivo em si era ir ou chegar? o habitar o navio?

não esqueceriam as botas; a essa altura elas já estavam incorporadas. construíam com zelo muitas mantas, e geravam muitos frutos, que seriam colhidos em terra firme.

ali, seria criado um novo eixo para dele se deslocar. uma espécie de centro, em ramificação. acentrado, contudo, em que caminhos teriam de ser tecidos nos emaranhados, e descobertos dentro deles.

as práticas de jogos eram encorajadas, todos deles de bastões, anéis tortos, pedras ou cartas. nada que não fizesse parte da terra seria incorporado, nem exageradamente processado.

somente cortes, anzóis, fermentos e conexões. equilíbrios de cores, composição de zelos e memórias, reunidas conjuntamente.

os silêncios tornaram-se sagrados, um acordo de muitos, assim como as dissonâncias.

ninguém era medo, ninguém era chão. todos seriam navios, podendo lançar-se e laçar-se quando fizesse sentido. inversões celestes e cantos alhures, todas celebravam. e narravam novas histórias, entremeadas. §

pollyana quintella e rafael zacca sobre 9+1 laboratório aberto

9+1 laboratório aberto – primeira experiência

por Pollyana Quintella, Revista Usina

9+1 laboratório aberto é um jogo curatorial proposto por Pollyana Quintella. A primeira situação expositiva aconteceu no dia 27 de junho, num apartamento vazio na Tijuca, com a participação de Aline Besouro, Amanda Rocha, Ana Hortides, Anais-Karenin, Bianca Madruga, Clara Machado, Inês Nin, Leticia Tandeta Tartarotti e Pedro Veneroso, depois de dois dias de ocupação. O texto que segue é a primeira reflexão crítica sobre essa experiência em processo.

Há muitos modos de fabricar encontros improváveis. Há ainda as tentativas de ser pouco profissional. E há, por fim, a vontade de não prever nada e a vontade de ser infantil. Então começou assim: convidei três artistas (Aline Besouro, Bianca Madruga e Clara Machado). Elas deviam convidar artistas que eu não conheço (Inês Nin, Leticia Tandeta e Anais-Karenin) que deviam convidar artistas que elas não conhecem (Pedro Veneroso, Ana Hortides e Amanda Rocha). Lançados os dados do afeto e do acaso, começamos uma relação.

Nossa primeira situação expositiva é a casa. Casa da família da Clara Machado, prédio construído pelo tio tataravó português, a casa é casa antiga, na Tijuca, de taco de madeira, renda, luz amarela quente. Casa onde morou tataravós, bisavós, avós, mães. Pequeno cosmos da Clara. Lá ocupamos por dois dias, no terceiro abrimos, chamamos amigos.

E a casa reage, é certo. Suas portas e janelas rangem. Cai a cortina. As fechaduras assobiam quando manipuladas. As maçanetas estão gastas, buscando adequação na anatomia das mãos. A casa pergunta. Nós, a nova presença estrangeira, respondemos. Damos a ela uma nova forma efêmera, olhamos atentos para suas quinas.

Pendurada na sala de entrada está a agulha de bordado da avó. Escura e pendida pelo fio de barbante, ela nos vigia. E é assim que começamos.

Aline Besouro propõe uma roda de costura. Fazendo da casa o lugar do encontro confortável, ela oferece linha, agulha e tecido. O que permeia a ação são as trocas faladas, os corpos juntos em roda, tecendo bordados e narrativas. A costura, atividade solitária e paciente, da espera e do silêncio, se faz o elo sociável possível, o pretexto da união.

Ana Hortides traz a casa literal. Na escala dos amuletos, brinquedos infantis e objetos afetivos, as pequenas casas exigem a curva do corpo, o apequenar-se, a intimidade primordial. A casa é, por fim, o espaço que cria as raízes do homem, o primeiro lugar de construção da subjetividade, “nosso canto no mundo”, como queria Bachelard. Mas aqui açúcar e vidro despertam sua delicadeza, por vezes fruto do terreno frágil da família e do íntimo, relações que flertam com o vulnerável. Eu não poderia deixar de evocar Raduan Nassar: “(…)bastava que um de nós pisasse em falso para que toda a família caísse atrás; e ele falou que estando a casa de pé, cada um de nós estaria também de pé, e que para manter a casa erguida era preciso fortalecer o sentimento do dever, venerando os nossos laços de sangue, não nos afastando da nossa porta.”

Bastou um dia de exposição para que as casas de vidro se quebrassem com a distração, e a pequena casa de açúcar lascasse seu telhado.

Há, além do conforto, a promessa de sedução. Como na casa de Hilda Hilst (“A minha Casa é guardiã do meu corpo/ E protetora de todas minhas ardências.”) há a casa noturna, negra, oferecendo ao outro a intimidade das gavetas entreabertas, a lascívia dos cômodos vazios de luzes apagadas. A Casa como um convite para conhecer os cantos e quinas do desejo, a pele da mobília e das paredes. É neste momento que talvez a casa seja uma outra casa, de um outro, como aquela de Maria Gabriela Llansol (“É a minha própria casa, mas creio que vim fazer uma visita a alguém”). A casa escura.

O erotismo da Casa está presente nos trabalhos de Clara Machado. Os cabelos, ossos, asas, penas, são rastros que seduzem pelo que escapa, atiçam a curiosidade por investigá-los. Juntos formam uma arqueologia de índices de presença de alguma outra coisa. Os cabelos dourados, como que sagrados, formam um manto simultaneamente sedutor e repulsivo (como em Bataille, a beleza desperta desejo porque traz consigo um aspecto animal secreto, vergonhoso, “as partes peludas”).

Este aspecto também se manifesta no trabalho de Bianca Madruga. O material precário, oxidado, corroído, traz consigo as camadas de saber do tempo, buscando captar a verdade de uma matéria em transição, sua “transparência misteriosa” (aquela notada por Paulo Venancio para tocar o trabalho de Mira Schendel, “quanto mais potencializa sua presentificação, mais afirma sua ausência”).

Há também os ninhos de Bianca, que são ninhos herdados de sua mãe. Ícone do conforto e da segurança, o ninho é a versão da casa macia, o leito fofo, o colo quente, a estrutura que conforma e consola o corpo. O ninho é o impossível. A dimensão absurda do ninho está na série de fotografias ao lado, “Quando os cimos desse céu se unirem, minha casa terá um teto”. A mão tenta costurar o céu a partir de seu reflexo no espelho. O céu, teto e telhado da casa-mundo, é incosturável. Os trabalhos de Bianca operam na categoria do que é inalcançável, mas necessário.

O trabalho de sísifo também aparece no vídeo de Pedro Veneroso. O barco, no mar aberto, navega em loop numa rota em forma de 8 horizontal, símbolo do infinito. Desenhar na água, no entanto, é igualmente impossível, eternamente autoboicotável. Parece a tentativa de demarcar um território inapreensível. O infinito na água é o infinito da impermanência, da insegurança e da vicissitude, o nada replicável, repetível.

No caminho do mundo como ninho impossível segue Inês Nin. Ela espalha fotos pessoais pelos cômodos, numa constelação dispersa, conjugável apenas no conforto da distância, e traz pra dentro da casa a amendoeira de folhas gordas e galhos brutos, incontroláveis – o externo radical. O tronco, que contraria a arquitetura com seu reino de pequenos insetos, marcando a presença do fora em rebeldia, vai aos poucos sendo abraçado pela ficção. A grande árvore se conforma nas paredes, enfim.

Esse domínio dos galhos é a transição feita por Anais-Karenin. Senhora das pequenas folhas, ela manipula as ervas, combinando perfumes e odores. Como uma bruxa que domina os saberes da terra, impregna os espaços com névoas de envolvimento, e com os tecidos fabrica novas peles. Anais chama algumas de suas roupas de habitações. São elas que carregam e suportam os corpos, subjetivam-nos. Essa morada, no entanto, longe da habitual, é ritualística. Na ordem do encantamento, próxima aos mecanismos da magia e da mística, seus trabalhos exigem um tempo próprio de apreensão, porque buscam despertar um outro corpo no corpo. Com roupas que são novas camadas de pele, trata-se de perceber que o corpo é a primeira casa e por fim, enxergá-la, desvelar seus segredos, reconstruí-la. Como na “casa é o corpo” de Lygia Clark, é preciso despertar os sentidos para que o sujeito se observe como objeto de si mesmo.

Leticia Tandeta ocupa o banheiro com uma profusão de releituras de Ofélia, também imersas em odores. Afundando entre flores no rio, sem saber se por acidente ou suicídio, a Ofélia de Hamlet enlouqueceu no conflito entre desejo e submissão. Na narrativa de Shakespeare a personagem aparece supostamente inconsciente de sua própria desgraça, cantando fragmentos de velhas canções enquanto sucumbe. A pintura referência para o trabalho de Leticia Tandeta é a de John Everett Millais, ícone que reforça essa ambigüidade. É a controvérsia entre prazer e desespero que Leticia desdobra. A banheira da casa se enche de água e flores, e as artistas são convidadas a experimentá-la. A banheira, lugar dos banhos contemplativos, choros desiludidos e tentativas de suicídio à gillette, é reocupada por mulheres que investigam o encantamento das ofélias em si, numa atualização do arquétipo através do tempo. O banheiro é o canto que oferece a certeza de estar só, o privado da casa compartilhada. Lugar de choro e lugar de gozo.

No vestido de Amanda Rocha cabem dois corpos. Ela convida o outro a habitar a roupa consigo. Durante a ação, é preciso entrar na bacia cheia de hibiscus e o vestido cru vai sendo tingido de vermelho pelo novo repertório de movimentos em conjunto, ali descobertos. Mais a frente, no lavabo, ela constrói uma outra casa na casa. São teias em linha vermelha, velas e uma máquina de escrever. O lavabo é seu casulo, lugar de introspecção e atuação silenciosa. Ali, envolvida pelo ambiente, ela desfruta de alguma solidão guardada pela penumbra.

Forçados pela intimidade da casa, agora seguimos pra longe dela.
Em pesquisa.

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Alguma impressão de 9+1 // laboratório aberto

por Rafael Zacca, Agoragonia

carta para/sobre o trabalho de
Aline Besouro Amanda Rocha Ana Hortides
Anais Karenin Bianca Madruga Clara Machado
Inês Nin Leticia Tandeta Tartarotti Pedro Veneroso
e Pollyana Quintela

Fico pensando no cuidado dos velhos que já perderam quase todos, família e amigos. Sobram dois ou três, que se tratam com silêncio e atenção. E alguma espera. Uma ou nenhuma colher de açúcar, um banho demorado a cada dois ou três dias, que nunca falte água para as plantas. Nada precisa ser dito também. No máximo alguma coisa sobre a temperatura do café, sobre a mancha da colcha que hoje não saiu. Lembro que quando criança gostava da colcha amarela de franjas na casa de minha avó. Hoje me lembrei dela por ter me alimentado mal. A avó fica mexendo as panelas nos intestinos aqui dentro. Por que é que a gente fica pensando nessas coisas depois de encontrar o trabalho de umas pessoas tão novas? À exceção de Letícia, se não me engano, todas passaram há pouco dos 20, 25 anos; e a Letícia tem uma vitalidade que em nada lembra a avó nos intestinos.

Você chega num prédio antigo na Tijuca, esse bairro de jesuítas – não sabe dos persas, não sabe do tráfico de elefantes, não sabe ainda que a curadoria é um modo de educar a vista para os objetos de todos os dias, basta aprender uma ou duas letrinhas novas, alguma sintaxe – e entra por uma sala tímida. Vazia. Em um pequeno ponto, uma casa em miniatura aguarda as formigas (foi fabricada de açúcar). Uma gota de vidro ameaça pingar do teto, lembrança de limo – com qualquer material se faz o limo na imaginação, e não sei porque infância agora. Uma fotografia antes da porta, tímida. Uma janela virtual se abre para um barco a motor que está só, no oceano. Você cumprimenta os seus amigos. Eles sorriem, e parecem bem cuidados. Alimentados. Poderiam ser meus netos, você pensa. Você está velho, muito velho. Antes você se despedira de um casal, pareciam tão sozinhos.

Pelos quartos, uma cabana de lençóis, galhos, linhas, cabelos embolados, talvez costurados, plantas, você cheira os esparadrapos na cozinha que guardam ervas, enquanto duas meninas estão dentro de uma camisa que se tinge aos poucos de vermelho-hibisco que repousa na bacia. Elas se cuidam. Parecem também sozinhas. A porta da cozinha está aberta, atrás de você alguém tira fotografias, o amigo oferece mais uma cerveja, pergunta como você está de grana, alguém fala das horas. As meninas seguram a maçaneta da porta, ficam tentando abrir, mas a porta já está aberta. A curadora olha com amor, como se visse – talvez visse – aquela cena pela primeira vez. Penso no hibisco que escala o trapo branco muito devagar, e lembro do vermelho incêndio de Goya, que mergulha negro na negritude da fuligem nas cidades.

Chiaroscuro. Penso que depois das guerras (…)

No banheiro um cheiro violentamente fresco. Você abre, e é uma profusão de plantas. Como em um terreno baldio que alguém esquecesse mudas, que a chuva e um jardineiro fantasma cuidaram crescer. Você lembra da cozinha, onde o tanque cheio aguardava uma gota por minuto. Onde a pia entupida segurava pequenas fotografias. Você precisa fazer xixi, mas só consegue se sentir desamparado. É claro: só pode cuidar e ser cuidado quem está desamparado. Você pensa em Haneke, você pensa no solar da Água Santa, onde muita gente repousa com um sorriso alaranjado. A dedicação daquelas três mulheres ao irmão, que teria sido um gato, que teria sido um atleta… Você não quer pensar nisso, volta a olhar o banheiro, está de novo na casa.

A maioria das experiências da casa te empurram pra dentro, te chamam pra cama. Em 9+1 é diferente. Quase tudo te força pra rua. Bianca mostrou uma coleção sua de ninhos, no chão. Se você põe os ninhos no ouvido, você ouve a rua? Esqueci de perguntar, de tentar. Agora não me lembro se Aline estava no chão fazendo coisas com crianças, se costurava, se falava de signos e esses mistérios, ou se sonhei. Entrar em uma casa, e não em uma galeria, te deixa mais desprotegido, as imagens penetram com mais facilidade – e violência – as tuas impressões. De qualquer forma, lembro de uma criança que parecia sozinha.

Todos pareciam sozinhos. E era bonito como se cuidavam. Um terreno baldio generalizado. Parecia, na casa, que as coisas cresceram sob o cuidado de fantasmas, entidades, coisas desaparecidas. De tal modo orgânicas ficaram as obras sob essa curadoria, que a casa se tornou, ela mesma, objeto de um olhar. Essas janelas estavam aí antes da exposição? A mangueira sob a pia? O galho sobre o lustre? As conchas, o toco, essas linhas na saboneteira?

E você não sabe se faz uma carta ou um relato. Um amigo propõe a carta como ensaio, como crítica. Boto fé.

 

 

vox

para alocar a esquiva da fala, crio vox. os campos desarrumados, descontínuos porque transversais. de tempos assíncronos, porém menos mundo que isto aqui. mais presente que ahora, mas ainda negando as simultaneidades construídas. mundo de avessos, travessuras y trejeitos internos.

assista.

sustento: folha, linguagem

bambu0001

A ser executado em sítio específico, no período mínimo de dois meses

: Exploração. O ambiente, em seus aspectos imediatos e naqueles ocultos à primeira vista. Biblioteca, quarto, cama, comida, pessoas, trilhas, percursos, árvores, paisagem, conversas, textos, livros, ar, rotina, história, meios.

: Fabulação. Caminhos por entre as paredes? Antigas formas de comunicação? E se eu subir-? Mistura de tempos, memória evocada em camadas, gerando novas correntes. Fotografias. Desenhos. Vídeos. Colagens. Imersão em textos e caminhos. Criação de agentes; verbos que andam sozinhos, sobre duas pernas.

: Rumo. A experiência de estar em um lugar por um período definido, considerando o antes e o depois. Organização.

luz

: Vegetação. O primeiro livro de Hilda Hilst com que tomei contato se chama FLUXO FLOEMA. Em “residência” no IPEMA – Instituto de Permacultura e Ecovilas da Mata Atlântica, fiz a conexão. Floema é o tecido das plantas vasculares encarregado de levar a seiva elaborada pelo caule até a raiz e aos órgãos de reserva. Ou seja, a seiva da planta flui pelas veias do floema. Fluxo, como sangue. O nome deriva da palavra grega para casca; o floema é parte do córtex ou casca primária da planta.

Fiquei pensando em cascas. Achei um ensaio do Georges Didi-Huberman que fala um pouco delas, na verdade, ele usa a ideia de casca para se relacionar com um lugar onde muita gente, dentre os quais seus antepassados, foi morta durante o Holocausto. Casca como solo, a última testemunha remanescente de um acontecimento terrível, no caso. A casca é a superfície com a qual nos relacionamos, à qual temos acesso. É permeável, e sujeita às ações do tempo. Assim como a nossa pele. Cascas são interfaces que carregam memória, às vezes se descolam com o tempo.

Curioso pensar sobre os solos. O que se passou por lá, quem passou, o que se sucedeu. Os caminhos e descaminhos que foram trilhados. E como nas cidades o solo primeiro, a terra, é quase sempre oculto, coberto de cimento. Solo de cimento. Solo-cimento é uma técnica de produzir tijolos.

solocimento

É possível construir uma casa, plantar comida ou escoar águas de chuvas com um solo de terra, mas por algum motivo (construção política ou regime de poder) eles vêm sendo ocultados. No lugar de solo, ou terra, cimento, que isola o sujeito e complexifica as estruturas. Não mais plantar, comprar. Casas de pau-a-pique são muito simples de fazer e usam terra, mas são proibidas em cidades. Imensos tanques de cimento, construídos com obras caríssimas e uso de escavadeiras, pretendem reunir as águas das chuvas.

Como diz Didi-Huberman: “Nada se parece mais com um chão de cimento do que outro chão de cimento. Mas, como é sabido, o arqueólogo defende outro discurso: os solos falam conosco precisamente na medida em que sobrevivem, e sobrevivem na medida em que os consideramos neutros, insignificantes, sem consequências. É justamente por isso que merecem nossa atenção. Eles são a casca da história.” (retirado de Cascas, ensaio publicado na revista serrote nº 13, março de 2013)

A ideia de estudar permacultura, agroecologia e sistemas agroflorestais, prática que dei início recentemente, deriva justamente dessa relação com o cimento. Antes, fiz uma série de trabalhos baseados em registros de deslocamentos em transportes públicos urbanos (seja de ônibus, trem ou barca). Em geral, eram trajetos casa-trabalho-casa, percursos estendidos e muitas vezes extenuantes. A necessidade de alheamento surge exatamente aí, na fadiga cotidiana dessa rotina que vai do cimento ao asfalto. Para chegar em casa.

Durante esse tempo, fiz diversas anotações sobre trabalho, que vão desde a manipulação de materiais até questões de rotina, cansaço e assuntos entremeados. Pesquei, ao mesmo tempo, relatos de canto de ouvido proferidos por pessoas amigas ou desconhecidos que cruzaram meu caminho. Percebi, também, que tinha diversos registros da ação “trabalho”, em vários modos diferentes. Decidi reunir essa memória, pesquisar outras formas de se relacionar com o termo e a prática, e transformar esse material, do mesmo modo com que procuro transformar a minha vida.

A vegetação de um lugar diz muito sobre ele, assim como os solos. Dado que as noções de “natureza” e “cultura” se confundem tão frequentemente, nos discursos de ontem e de hoje, praticamente pode-se dizer que não existem matas virgens, que não tenham sido manipuladas por humanos. Agri-cultura. A questão é que variam as formas de manipulação, e há algumas que não provocam estragos, ao contrário, recuperam solos, tornando-os mais férteis, e as espécies mais produtivas. Sem o uso de nenhum químico, muito menos queimas. Como as agroflorestas.

Quanto a jardins, sabemos que foram construídos, moldados para o desfrute humano. E também que há diversas maneiras de construir, a exemplo dos que imitam florestas, como o do Parque Lage, no Rio de Janeiro. São da necessidade de ar livre e puro, constraposta à saturação das cidades (em todas as suas instâncias). Por isso, estudar plantas. Encontrar seus fluxos e floemas. Unir plantas e literatura, material fértil, provocando mudanças e devaneios da vontade.

: Linguagem. Folhas, raízes, rios e seus afluentes, raios, e veias por onde passa o fluxo sanguíneo formam fractais, padrões comuns encontrados na natureza. Diversos outros padrões são formados, muitas vezes interpretados por matemáticos e físicos por meio de complexas ou simples geometrias. Números nunca dão conta inteiramente de interpretar a realidade, mas, como qualquer linguagem, produzem uma aproximação, com o fim de entender os meandros e particularidades do que fazemos parte e nos rodeia. Bambus não possuem linhas retas, como gostariam arquitetos de colarinho branco. Mas são maleáveis, formam estruturas.

Exploração da linguagem, unindo dois ou mais ítens nessa etapa. Todas se permeiam. Padrões, números, linguagem codificada. Decodificar membranas como quem transpõe barreiras assimétricas. Codificar de outra maneira, passaporte para percepções variantes.

: Livro. Exploração, fabulação, rumo, vegetação, linguagem. Cinco componentes formam um sexto, um livro, composição fabular a ser costurada à mão, incluindo o material produzido durante a residência, organizado de modo a formar uma unidade maleável.

Escritos, fotografias, percursos, desenhos. Com vários começos, vários fins. Em forma, inspirado em codex e outras anotações e linguagens antigas. Procura por escrita em códigos, jogos de linguagem, formas multilineares de leitura. E cotidiano.

: Além. Outras obras podem acontecer durante o caminho, tais como instalações temporárias, ações, ou vídeo.

 

fevereiro de 2014

i

atores mesmos são eles gestos. vozes que não se misturam, vazios intelectos, atos que vão seguindo pontos, dançando pontos, se perdem.

escandalosa miragem permanece forte na rua. quer invadir atos, vontades, mas só atinge a coisa mesma, sem nexo. é raso. ricocheteia nos prédios, nas pessoas, não vaza em ninguém.

conversa de bar que escorre e praticamente não existe. só imagens, sorrisos, rumos difusos e repetições. às vezes música, som alto vindo das vozes, subterrâneo de atividades sonoras, efeitos químicos. nada mais que urgência, não é importante.

converso no lugar, me junto, perco o dito das coisas e enfim faz sentido! entre perambular pelos escambos, pelas brechas, acessos à cultura e à imagem por um pouquinho de escape. mundos pequenos que apresentam eixos universos.

do verbo que ainda não existe, acontece.

situação simples que inverte, alimento, torna energia o fluxo. rodopia, cumpre, faz girar.

quase sem nada, meio sem nada, por isso lá.

sobre métodos

essa poesia de malas pesadas, de coisadura e já sabe que não espera e faz

º

azuis ainda carrega uma relação com o mundo real, objetivo e nada discreto: o furtivo implementado, a obrigação do caráter, o assumir os caracteres próprios das coisas.

mostrar-se ou não deveria ser algo facultativo. cadastros em geral. fluxos e caminhos desviantes, um direito em si, embora a própria noção de direito esteja calcada em uma certa ordem das coisas.

uma problemática talvez é que o discurso de crítica se faz ainda dentro das coisas, se insere no sistema para a partir dele propor outros caminhos. sobretudo, utiliza os mesmos códigos binários para dizer que são binários, ou refaz paralelos caminhos errantes como forma de chamar a atenção para aquilo que se faz. a linguagem permanece dura, atenta, aberta a infusões.

tormenta o imperativo de comunicar, concatenar bem as palavras de forma inteligível. a pobreza da forma é de algum modo o risco, no asfalto, no sincero cinzeiro tão cotidiano de coisas faz, e vai podando os sossegos, tentando furtivamente errar, tecer outros meios, fincar o pano em algo que vá além.

fustigar os sistemas, furtar o meio e o fim do veículo inerte, em todas as dimensões.

se o processo se inicia em um rio, rio acima irá, contracorrente. para adentrar as matas é preciso primeiro se perder. os modos de percorrer qualquer coisa são imensos, de muitos mundos e variáveis. eu nem matematizo, eu vivo. matemática é da ordem de uma objetividade que não me contempla. ao contrário: ajuda as mesmas coisas sãs como sãos são os dias corridos, as ordenações de trampo, o calendário.

a floresta está dentro, o curioso lá está. procura, desorienta, adquire métodos para o corpo externo sedimentar. não são mais que carcaças a conhecer o intelecto, roupa que veste algo incerto, curva dos dias que se ramifica por entre as frestas.

floresta

ponte

uma cidade que começa com uma ponte
ligando lugar nenhum a lugar nenhum:
um monumento ao espaço.

ponte venerada por ser matéria; veneração ao concreto.

escavadeiras como veículo “que torna o sonho possível”. é como se a decisão de um fosse de muitos, mas não.

vilarejo pacato com síndrome de auto-depreciação, alumínio.

terras férteis e de bom grado, mas não, escrutínio, quero ser grande, quero ser maior, quero ser super que é para não ter medo, coisificar, tornar planas as montanhas, construir teleféricos inertes, casas sobrepostas – que chique, os arranha-céus!

para onde foram os novelos, os sem medo que tomavam banho de rio até mais tarde, todas as coisas nulas (porque desprovidas de unidade material). valor!

são tão etéreos quanto nossas noites bebum, sentimento construído porque vontade, publicitárias vontades, aspecto vão de um supremo que não acontece.

bebemos pois a vida é curta e viver é ter força de trabalho incessante, até ver o pôr-do-sol no fim do dia; trabalhar mais, morrer do coração mas não deixar o serviço feito em cima da mesa. o lucro, meu caro, o lucro não é teu, ele é sempre de outrem, outra pessoa, aquela mesma que não dá valor pro teu ônibus ou para as tuas horas livres porque, bem, elxs têm o seu táxi, a sua boa comida, seu apartamento caríssimo em bairro nobre e toda a pompa. eles querem o serviço feito. e de boa vontade, porque tem tanta gente querendo lá fora..

aí você lembra da ponte, sim, a ponte! e não da árvore dócil da sua infância, que caiu num vendaval, dia de chuva furiosa, e tombou no chão.

a ponte é a matéria terrestre, legítima imperatriz do asfalto.. ops, se tornou. você nem lembra mais qual a origem ou o fim do processo, você não tem astúcia, foi se perdendo aos poucos, nos anos que se passaram e foram convertendo, sem que você sentisse, sua sensibilidade em automatismo, docilizando teu corpo e teu cérebro sem que percebesse, até que fosse só isso, corpo e cérebro, mais corpo que cérebro talvez, matéria pura, alheia de si, sem fluxo, sem devaneio.

porque o sangue correndo nas veias era também o teu chão, teu sentimento e pulsão em natureza mais que cíclica, veloz, modulável, rítmica. a pulsão que te fazia ou faria andar foi transformada em valor útil de mercado, tempo, vendido aos outros por um pouco de sossego, expectativa, comida, camisa e filhos, sem que pudesse notar o que acontecia.

teu sangue, meu caro, vale mais que a ponte. teu sossego é um devaneio à beira do rio. antes de virar canal, poluição, ponte.