sobre azuis nessa noite gélida de dois mil e dezesseis.

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(a primeira pessoa do singular se faz plural; quer se desintegrar e se fundir ao vasto mundo múltiplo. o sítio, o sítio viaja e vai ali se reinventar) >>

azuis, um projeto que iniciei em 2013, de início é sobre identidade, sobre existir para além das bordas de instituições e representatividades, existir além-números, para além de rastreamentos e coordenadas, normatizações.

a existência se fortalece ao passo que se ramifica, se fortalece pelas bordas. desenha começos e meios e singularidades não apreensíveis nas superfícies, cria novos mundos, e talvez aí, quando esbarra na necessidade de fazer lugar e abrigo, é que se reconhece: o que acolhe não está normatizado. não segue os padrões da norma, que cada vez mais delira em suas vigilâncias e amortizações, linhas retas e práticas de exclusão.

o que vem da mata cresce em rede, tem ligadura, raízes fortes, micorrizas. surpreende porque não é codificável plenamente nem quer dominar o que está em volta. é natureza e por isso complexa, e por isso múltipla, embate, disputa: selvagem e acolhedora ao mesmo tempo.

penso na necessidade de reconhecimento dessa nossa existência em rede, sistêmica, que busca reentender as melhores maneiras de agir, se integrar e retribuir tudo o que recebemos a esse meio tão devastado, que faz parte de nós, tudo o que ele nos dá. por isso sementes. por isso venho aqui.

[*não é no foicelivros, gente linda. aqui é só eco, espectro. vigoramos noutros campos, em muitos]

falar com PHASMIDES, de daniel steegman-mangrané

crítica/percepção ou conversa publicada no sítio do ateliê397 em 18.11.2015

 

desestruturar-se. confundir-se. corpo que se mistura à lama e opera por associação. sujeito-corpo-ambiente. sequer sujeito, ainda: coisa. objeto que ANIMA. e então bicho. antes, poderia ser uma folha, um pedaço de pau, de árvore. enquanto planta, parte da paisagem; enquanto bicho, predomina? sobressai-se no todo? o animal existe, mas que será essa existência enquanto mundo?

sobressalentes, os modos de sossego que constrói um homem (no masculino, branco, singular) perante a TERRA, a que preço – desnorteia-se uma barragem, e cai sobre as cidades – de erguer os planos. dormentes, altivos, rígidos e retilíneos como nunca será uma planta. arranha-céus, ou sem precisar ir tão longe: de rastejos e lamaçais secos são preenchidas florestas e territórios nomeadamente inférteis – por ações infortunas. prédios, sem mantas. colossais membranas.

em outro canto surge um ramo. quem sabe já não estava lá. por acaso ou persistência floresce, se espalha. rumina. aos poucos se enche de plenitude e não se sabe mais se é bicho ou planta, assunto ou paisagem. engenhosos desenhos na pele de alguns, cadeia sem medos de tantos, acontece. complexas organizações priorizam, a exemplo das formigas e de tudo aquilo que observa, um certo funcionamento que se perpetua. a não ser que – para ver as formigas uns homens derramaram cimento nas frestas de formigueiros, e então formou-se uma escultura da megalópole subterrânea. repentinamente fossilizada. um simples genocídio em nome da ciência.

o que temos aqui é espaço produzido. consumido, pormenorizado, criado aos detalhes de composição. no começo é escuro, cascas de árvores. uma olhadela que espreita e averigua os detalhes da mata profunda, ou um simples jardim. sem verde, é quase tudo marrom. os planos são curtos, terminam antes que sejam decifrados. quiçá, a duração de um rolo de filme, em metros, unidade de medida física da celulose que compõe a matéria, em 16mm. a celulose na tela – as frações de árvores, os papéis. quase tudo compõe. quase tudo escapa.

aos poucos, acontece a fusão. papéis dobrados dividem o espaço com os fragmentos de galhos e folhas envelhecidas. o fundo sombrio dá lugar ao branco. estruturas são erguidas por entre a espécie – os galhos – e a eles almejam. o animal vai esgarçar o limite do entre coisas, do que é nulo, do que se nulifica. do que desaparece.

a um mínimo movimento, se vê patas. enfim, patas! é um bicho, agora. a aparição do mesmo – fasmídeo, palavra irmã de fantasmas – se dá à maneira semelhante ao monge de filmes recentes de tsai ming liang, tais como ‘walker’ (2012) e ‘jornada ao oeste’ (2014). o movimento, mínimo, é suficiente para identificar a ação e distinguir, a partir daquele momento, personagem. na cena seguinte, o mesmo sucede. ele está lá? forma-se um jogo, em tempo lento, episódios.

acrobático, o disfarce do sutil bicho-bailarino forma ângulos, opera por semelhança até mesmo com as geometrias que o envolvem, papéis dobrados que muito se assemelham às construções de lygia clark: bichos, mais uma vez.

será importante essa distinção entre forma e forma, animal ou perfídia? a própria lygia clark nos dá pistas em suas anotações, em especial a partir do ‘caminhando’ (1964), ao buscar uma espécie de dissolução da existência no mundo, em que corpo é também paisagem, atravessada e hibridizada por bichos, frequências, intensidades. “pássaros e leões nos habitam, diz lygia – são nosso corpo-bicho”, traz suely rolnik. da supressão do objeto: “a fantasia do mundo como um grande bicho não percebido pelo homem”.

daniel steegman mangrané, em entrevista a fábio zucker, narra que, conscientemente, não pensou em lygia clark ao construir o ambiente em estúdio no qual caminha o bicho-pau em ‘phasmides’, revelado na sequência final. contudo, em situação posterior, criou um dispositivo arquitetônico que se viu confrontado, em uma exposição, a um dos bichos de lygia e a um metaesquema, de hélio oiticica.

o contraste entre obras arquitetônicas – e suas suas linhas retas – e a manifestação forte e de caráter englobante do que conhecemos por natureza, floresta e seus habitantes, aparece em grande parte das obras do artista. uma conversa evidente com o legado do concretismo e abstracionismo também se mostra, em que grafismos, construções metálicas e instalações contestam meios de se estar e adentrar lugares, compor formas, assimilar-se.

no contexto da exposição ‘o que caminha ao lado’, com curadoria de isabella rjeille, PHASMIDES se apresenta ao público em uma pequena sala próxima à área de convivência do espaço. as obras dos outros artistas presentes na coletiva evocam, de distintos modos, imagens ou sons de fantasmas, indícios, semelhantes e dessemelhantes, imitações, vultos. o doppelgänger, antigo mito alemão, provoca a evidência do duplo, ou sua alusão, de modo que limites identitários são postos à prova.

dois anos após sua primeira aparição, PHASMIDES, em 2015, conversa com seus duplos adversos, crianças que correm, bichos, outros fantasmas. sobrevivência de corpo em ambiente, existência em estúdio, linhas retas?

vulto, melodia

e toda a vontade de
potência dessas matilhas,
subjugadas a sérios
consensos perante a maioria

inhotim mira a classe c

Poderíamos pôr abaixo todos os mistérios, celeumas tristes e demais internos.

Rodo de lugar não tem nome, não tem coisa, é pura função. Das 8 da manhã às seis da tarde nos reunimos, confeccionando aquilo que será exposto no museu dos largos, o parque ouvinte da classe militar.

Nosso grau de indiferença não tem nome, se converte em emaranhados de coisa alguma, fiação. As estruturas não serão visíveis, as estruturas não serão visíveis – permanecem, anulam-se, tão logo adentramos a sala expositiva.

(o convite para a inauguração esqueceram, ou foi visto pela mão de terceiros, à meia voz).

Qual é o corpo que comemora seus doces mistérios cantantes?

São tantas as vozes e mãos habilidosas empenhadas em construir sabe-o-que-isso-venha-a-ser. Entretenimento de pedais celestes, ferradura – mas por que mesmo fomos tornados invisíveis?

O gosto pela função; o amante que se importa mas não é tomado à cena. É visto no barracão da escola, em meio de muitos, e assim se reconhece. A única visão possível é a do ato sem fala (e todo o ruído da sala é vão, inevitável).

Seria doce se não fosse sincero. Meus aplausos aos artistas e seus castelos!

do entorno que nos enleva:

somente a notícia posta sobre
a mesa
ao lado dos livros
e da arte –
para nos lembrar em que
lugar estamos)

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