sustento: folha, linguagem

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A ser executado em sítio específico, no período mínimo de dois meses

: Exploração. O ambiente, em seus aspectos imediatos e naqueles ocultos à primeira vista. Biblioteca, quarto, cama, comida, pessoas, trilhas, percursos, árvores, paisagem, conversas, textos, livros, ar, rotina, história, meios.

: Fabulação. Caminhos por entre as paredes? Antigas formas de comunicação? E se eu subir-? Mistura de tempos, memória evocada em camadas, gerando novas correntes. Fotografias. Desenhos. Vídeos. Colagens. Imersão em textos e caminhos. Criação de agentes; verbos que andam sozinhos, sobre duas pernas.

: Rumo. A experiência de estar em um lugar por um período definido, considerando o antes e o depois. Organização.

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: Vegetação. O primeiro livro de Hilda Hilst com que tomei contato se chama FLUXO FLOEMA. Em “residência” no IPEMA – Instituto de Permacultura e Ecovilas da Mata Atlântica, fiz a conexão. Floema é o tecido das plantas vasculares encarregado de levar a seiva elaborada pelo caule até a raiz e aos órgãos de reserva. Ou seja, a seiva da planta flui pelas veias do floema. Fluxo, como sangue. O nome deriva da palavra grega para casca; o floema é parte do córtex ou casca primária da planta.

Fiquei pensando em cascas. Achei um ensaio do Georges Didi-Huberman que fala um pouco delas, na verdade, ele usa a ideia de casca para se relacionar com um lugar onde muita gente, dentre os quais seus antepassados, foi morta durante o Holocausto. Casca como solo, a última testemunha remanescente de um acontecimento terrível, no caso. A casca é a superfície com a qual nos relacionamos, à qual temos acesso. É permeável, e sujeita às ações do tempo. Assim como a nossa pele. Cascas são interfaces que carregam memória, às vezes se descolam com o tempo.

Curioso pensar sobre os solos. O que se passou por lá, quem passou, o que se sucedeu. Os caminhos e descaminhos que foram trilhados. E como nas cidades o solo primeiro, a terra, é quase sempre oculto, coberto de cimento. Solo de cimento. Solo-cimento é uma técnica de produzir tijolos.

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É possível construir uma casa, plantar comida ou escoar águas de chuvas com um solo de terra, mas por algum motivo (construção política ou regime de poder) eles vêm sendo ocultados. No lugar de solo, ou terra, cimento, que isola o sujeito e complexifica as estruturas. Não mais plantar, comprar. Casas de pau-a-pique são muito simples de fazer e usam terra, mas são proibidas em cidades. Imensos tanques de cimento, construídos com obras caríssimas e uso de escavadeiras, pretendem reunir as águas das chuvas.

Como diz Didi-Huberman: “Nada se parece mais com um chão de cimento do que outro chão de cimento. Mas, como é sabido, o arqueólogo defende outro discurso: os solos falam conosco precisamente na medida em que sobrevivem, e sobrevivem na medida em que os consideramos neutros, insignificantes, sem consequências. É justamente por isso que merecem nossa atenção. Eles são a casca da história.” (retirado de Cascas, ensaio publicado na revista serrote nº 13, março de 2013)

A ideia de estudar permacultura, agroecologia e sistemas agroflorestais, prática que dei início recentemente, deriva justamente dessa relação com o cimento. Antes, fiz uma série de trabalhos baseados em registros de deslocamentos em transportes públicos urbanos (seja de ônibus, trem ou barca). Em geral, eram trajetos casa-trabalho-casa, percursos estendidos e muitas vezes extenuantes. A necessidade de alheamento surge exatamente aí, na fadiga cotidiana dessa rotina que vai do cimento ao asfalto. Para chegar em casa.

Durante esse tempo, fiz diversas anotações sobre trabalho, que vão desde a manipulação de materiais até questões de rotina, cansaço e assuntos entremeados. Pesquei, ao mesmo tempo, relatos de canto de ouvido proferidos por pessoas amigas ou desconhecidos que cruzaram meu caminho. Percebi, também, que tinha diversos registros da ação “trabalho”, em vários modos diferentes. Decidi reunir essa memória, pesquisar outras formas de se relacionar com o termo e a prática, e transformar esse material, do mesmo modo com que procuro transformar a minha vida.

A vegetação de um lugar diz muito sobre ele, assim como os solos. Dado que as noções de “natureza” e “cultura” se confundem tão frequentemente, nos discursos de ontem e de hoje, praticamente pode-se dizer que não existem matas virgens, que não tenham sido manipuladas por humanos. Agri-cultura. A questão é que variam as formas de manipulação, e há algumas que não provocam estragos, ao contrário, recuperam solos, tornando-os mais férteis, e as espécies mais produtivas. Sem o uso de nenhum químico, muito menos queimas. Como as agroflorestas.

Quanto a jardins, sabemos que foram construídos, moldados para o desfrute humano. E também que há diversas maneiras de construir, a exemplo dos que imitam florestas, como o do Parque Lage, no Rio de Janeiro. São da necessidade de ar livre e puro, constraposta à saturação das cidades (em todas as suas instâncias). Por isso, estudar plantas. Encontrar seus fluxos e floemas. Unir plantas e literatura, material fértil, provocando mudanças e devaneios da vontade.

: Linguagem. Folhas, raízes, rios e seus afluentes, raios, e veias por onde passa o fluxo sanguíneo formam fractais, padrões comuns encontrados na natureza. Diversos outros padrões são formados, muitas vezes interpretados por matemáticos e físicos por meio de complexas ou simples geometrias. Números nunca dão conta inteiramente de interpretar a realidade, mas, como qualquer linguagem, produzem uma aproximação, com o fim de entender os meandros e particularidades do que fazemos parte e nos rodeia. Bambus não possuem linhas retas, como gostariam arquitetos de colarinho branco. Mas são maleáveis, formam estruturas.

Exploração da linguagem, unindo dois ou mais ítens nessa etapa. Todas se permeiam. Padrões, números, linguagem codificada. Decodificar membranas como quem transpõe barreiras assimétricas. Codificar de outra maneira, passaporte para percepções variantes.

: Livro. Exploração, fabulação, rumo, vegetação, linguagem. Cinco componentes formam um sexto, um livro, composição fabular a ser costurada à mão, incluindo o material produzido durante a residência, organizado de modo a formar uma unidade maleável.

Escritos, fotografias, percursos, desenhos. Com vários começos, vários fins. Em forma, inspirado em codex e outras anotações e linguagens antigas. Procura por escrita em códigos, jogos de linguagem, formas multilineares de leitura. E cotidiano.

: Além. Outras obras podem acontecer durante o caminho, tais como instalações temporárias, ações, ou vídeo.

 

fevereiro de 2014