trans

TRANS-

conceber um SAIR do LUGAR implica sob certo sentido em uma superação. como ir além da experiência anterior; um ponto que impulsionado por MOVIMENTO gera uma outra situação.

transcender um momento disforme, pouco funcional, mambembe. desfazer uma certa dormência, reentender todos os processos. misturar a disposição dos intelectos.

uma bússola revirada, e revigorada.

em viagens recentes fiz questão de carregar uma bússola, companheira tão amiga quanto a lanterna e uma mochila gordinha, um pouco alta. apetrechos úteis, talvez neste caso ainda mais úteis enquanto ideias de viagem, desejos de nomadismo. vontades de incorporar um personagem explorador: expedito azuis, aquele que age, despachado viajante. procura caronas, aprende a voar. povoa de cores e florestas uma paisagem, ela mesma enquanto imagem de sossego e desafios, abrigo, localizada mais DENTRO do que FORA, para falar de coordenadas. desejos, como as praças e os lugares, se confundem. nada é só um mesmo, coisa afável e distinguível das demais.

ir além implica em transitar. na contramão dos engarrafamentos*, caminho sem pressa, atravesso pontes e escalo prédios. se trata de superar expectativas, por adquirir rumos truncados, incertos demais para especular. nada mais que um treino, até que saiba não existir em espera nem planejamentos complexos, mas sim em processo, corrente, que flui e escorre das calçadas, só anda a pé.

de uma precisão de rejuntes: extrair a simplicidade das coisas. descomplexificar, como um processo químico. para tal, é necessário desprogramar, repensar todos os sistemas e métodos vigentes. desordenar. haverá necessidades de; e se fizer de outro modo; se é verdade que preciso tanto; o solo mesmo não se refaz? composição. assimilar as cores do local, a partir dele construir e só. em volta, são tantas as coisas que estimulam a perda sem rumo, o caminho mesmo do cristal, do arranha-céu com tv de plasma e correrias.

transição. transitivo transitar dos entes mistérios, minérios, ritmos próprios constituintes da tábula rasa da monotonia. monotipia, rumos em vão: tantas técnicas e só vejo uma cor. ruído de voltagens, confunde nossos cérebros.

x

trans é um radical queer. que se situa para além dos sistemas, da compreensão costumeira dos entrecoisas. costura bordados e ri do próprio desatino, desconversa, nunca se saberá ao certo onde vai. pode assumir caracteres absurdos, atravessar a amazônia, se transformar.

transtornos são possíveis, aspectos sinceros que vêm à flor da pele, se perdem. água e animais, super gêmeos ativar, sempre outra coisa que não a esperada. x, que não tem gênero nem classe, assume formas variadas de acordo com a situação. estratégia faz parte de sua estrutura desestruturante – preparada para transcender as maiores crises, entrar em transe, alucinar.

*processos lúdicos que implicam em engarrafar carros e pessoas, como consequência de um equívoco histórico. são intensos, memoráveis e até mesmo hilariantes, tão presentes no cotidiano de cidades populosas. paradoxalmente, quando se procura saber a respeito do estado dos engarrafamentos locais, fala-se em informações sobre o TRÂNSITO.

// publicado originalmente no vocabulário político para processos estéticos em 2014.

sair

Inez saiu dizendo que ia comprar um pavio
pro lampião
Pode me esperar Mané
Que eu já volto já
Acendi o fogão, botei a água pra esquentar
E fui pro portão
Só pra ver Inez chegar
Anoiteceu e ela não voltou
Fui pra rua feito louco
Pra saber o que aconteceu
Procurei na Central
Procurei no Hospital e no xadrez
Andei a cidade inteira
E não encontrei Inez
Voltei pra casa triste demais
O que Inez me fez não se faz
E no chão bem perto do fogão
Encontrei um papel
Escrito assim:
– Pode apagar o fogo Mané que eu não volto mais

(adoniran barbosa, apaga o fogo mané, 1974)

 

baratinada, atordoada pelas constantes mudanças e transformações. ao mesmo tempo entusiasta, enxame de possibilidades geradas pelo tempo que abre uma nova camada de espaço/lugar, novos planos, desandos, perambulâncias e afazeres locais.

sair é intimamente ligado a lugar, sair como espécie de fuga premeditada, sair como vontade de sair do lugar (“mexe essa bunda da cadeira”), sair como solução aparentemente fácil (esvair-se da presença, não lidar com); sair é ir, é partir(-se em pedaços? pulverizar), algo referente a circunstância, uma necessidade, um meio.

sair como uma intenção de lugar. realocar o corpo ou um estado, o sujeito, para refazer sua potência, para entender-se de novo, para alhear (imensa necessidade de alheamento, tantas vezes se faz)

sair implica em movimento: mover-se pelas próprias pernas. tomar iniciativa de, encontrar ou procurar um rumo, pôr-se a caminho

(duros empenhos em sair do lugar)

lidar com a hipótese de fuga é de algum modo mais fácil que lidar com a ação. que precisa de tempo para compreensão, implica em processamento (de dados, de mudanças, de estados de corpo e cansaço). zerar as possibilidades é um fetiche que, diante de algo duro, se refaz constantemente.

– e se eu, simplesmente, saísse daqui?

sair como ação impensada, tomada de posição, absurda ação mesma que não se define, como se simplesmente sair se faz

(e então, estado presente que atormenta, algo a que se quer abandonar)

pontapé para o infinito, atadura. semmãos, semmedo, mmordedura. coragem, aquilo de que tanto falam os clássicos romanescos sem era, que se sobrepõem a uma realidade turva, demasiado complexa para nossos contos de fada caninos. anacronismos de infância, maus adestramentos. depois de um tempo, os embalsama todos e transforma em leituras de maniqueísmos diversos, notícias sem profusão nem densidade, as quais só se lê às partes. reitera discursos ou cria coisa alguma, mas segue algum rumo estrito que supostamente se concretiza. ou não, engole a rebelião e bate ponto no escritório, todos os dias, eis o método que seu pai lhe ensinou.

fuga estaria adoecida pela vontade de escapar, impulso dormente que não tem lugar? abstrata palavra sair, enquanto que fuga apresenta forte oposição (como fugir de – ou fuga, substantivo, algo que acontece ou se sucedeu). a fuga antecede a memória, esvazia-se em ato: simplesmente ir, fugir da coisa, sair do sistema, remodelar ou implodir tudo em fato

(esvair-se do sistema é algo absolutamente sedutor e iminente; difícil concretizar)

da vontade de sair e do semmedo da história, da fuga que tem por desejo existir, há em tudo uma propensão a um fora, um desejo de alhear disso que aqui está

(como um estado de coisas que se altera por uma ação, por mais que esta se faça em abandono)

o truncado está aí, pois se sistema nada faria para tornar fáceis as medidas, codificáveis os modos:

– e quiçá existe um fora?

ou o fora ele mesmo já está dentro? faz parte de um comum que a tudo se esquiva e penetra?

entranhas nervuras e atravessamentos, outrora solfejos, coisas que não têm lugar

permeios e sucessões esquivas irá, irá, encontrar um morcego em um lugar sem hora, sem memória, fora de linha e calado de números, talvez,

liberdade turva só acontece quando não se vê, quando alegre mentira costura sossegos onde quer que se vá.

sair, contudo, ainda é um meio que se faz.

nem que seja para alterar lugares, contaminar uns com os outros, colher um a um. e não deixar lugar.

(identitárias vontades explodiram no ar)

// publicado originalmente no vocabulário político para processos estéticos em 2014.

ponte

uma cidade que começa com uma ponte
ligando lugar nenhum a lugar nenhum:
um monumento ao espaço.

ponte venerada por ser matéria; veneração ao concreto.

escavadeiras como veículo “que torna o sonho possível”. é como se a decisão de um fosse de muitos, mas não.

vilarejo pacato com síndrome de auto-depreciação, alumínio.

terras férteis e de bom grado, mas não, escrutínio, quero ser grande, quero ser maior, quero ser super que é para não ter medo, coisificar, tornar planas as montanhas, construir teleféricos inertes, casas sobrepostas – que chique, os arranha-céus!

para onde foram os novelos, os sem medo que tomavam banho de rio até mais tarde, todas as coisas nulas (porque desprovidas de unidade material). valor!

são tão etéreos quanto nossas noites bebum, sentimento construído porque vontade, publicitárias vontades, aspecto vão de um supremo que não acontece.

bebemos pois a vida é curta e viver é ter força de trabalho incessante, até ver o pôr-do-sol no fim do dia; trabalhar mais, morrer do coração mas não deixar o serviço feito em cima da mesa. o lucro, meu caro, o lucro não é teu, ele é sempre de outrem, outra pessoa, aquela mesma que não dá valor pro teu ônibus ou para as tuas horas livres porque, bem, elxs têm o seu táxi, a sua boa comida, seu apartamento caríssimo em bairro nobre e toda a pompa. eles querem o serviço feito. e de boa vontade, porque tem tanta gente querendo lá fora..

aí você lembra da ponte, sim, a ponte! e não da árvore dócil da sua infância, que caiu num vendaval, dia de chuva furiosa, e tombou no chão.

a ponte é a matéria terrestre, legítima imperatriz do asfalto.. ops, se tornou. você nem lembra mais qual a origem ou o fim do processo, você não tem astúcia, foi se perdendo aos poucos, nos anos que se passaram e foram convertendo, sem que você sentisse, sua sensibilidade em automatismo, docilizando teu corpo e teu cérebro sem que percebesse, até que fosse só isso, corpo e cérebro, mais corpo que cérebro talvez, matéria pura, alheia de si, sem fluxo, sem devaneio.

porque o sangue correndo nas veias era também o teu chão, teu sentimento e pulsão em natureza mais que cíclica, veloz, modulável, rítmica. a pulsão que te fazia ou faria andar foi transformada em valor útil de mercado, tempo, vendido aos outros por um pouco de sossego, expectativa, comida, camisa e filhos, sem que pudesse notar o que acontecia.

teu sangue, meu caro, vale mais que a ponte. teu sossego é um devaneio à beira do rio. antes de virar canal, poluição, ponte.

travesti

travesti é amor. aqui, outros nomes, uma apropriação. mídia travesti de asinhas de fora, se faz de amiga, quer assaltar as máscaras de multidão. violência de estado corrompeu nossas ruas. contação de alertas, gente no chão: pensamento difuso, escreve-se para fagocitar os termos, desentranhar os caminhos por entre as nervuras do acontecimento.

derivaceleste:

saber emaranhar os acasos nas estranhas lágrimas provocadas pelos anteriores.

o medo, a sede, a luta e o sossego se contaminam uns aos outros até não existirem mais.

não há permutas, marmotas, percepções inertes ou qualquer outro sentido além daquele visível, ainda que tão turvo, paspalho:

serão neves, tudo ao inverso. ou talvez não, coisadura. não serão fascistas a nos buscar nas casas, senhora no batente, senhor na multidão (infame ilógica inerte que perdura). enxame de refugiados na tijuca, naquela rua perto do estádio, encurralados no próprio quintal de casa. ninguém entende o assunto em voga, há tanta confusão.

de voz em voz uns tentam pintar as cores todas de verde e amarelo, as janelas de inferno, as lutas de brincadeira e então desvalorizam o todo, a própria multidão. em processos, recessos e mistérios, porque são muitos e mil-ações.

não tem jeito de cessar o grito porque vem de longe, de muitos, muitos anos, adormecido que estava nos pulmões de tantos, expelido enfim por aqueles que puderam se manter vivos de alguma forma. e não é caso de impeachment, sem surto. isso é tudo lorota turva, e muito simples, um caso de apropriação:

(explicaremos primeiro a oposição)

reacionário (adj.) é aquele que é contrário a quaisquer mudanças (sociais e/ou políticas); que se opõe à democracia; antidemocrático. sinônimos: antidemocrático, antiliberal, retrógrado e ultraconservador.

(nada como um be-a-bá das curvas)

tampouco nos iludamos com o liberal (s.m.), isto é, aquele que é partidário da liberdade em matéria política ou econômica. no plano econômico, é um perspicaz enganador, astuto defensor das desigualdades e do dinheiro no bolso dos indivíduos (sic) de bem.

nenhum deles representa um perímetro maior que o próprio umbigo. talvez, e digo sem muita convicção, sejam capazes de estender algum apreço a familiares e uns poucos semelhantes, pelo puro louvor conferido à família e a propriedade, ambas instituições tão intimamente conectadas. compartilham regras, egoísmos e convenções.

campo minado! acabaram nossos montes, direi. poderia ser – a crise já se estende por tanto tempo que mal é possível morar na cidade, e então lembramos de tantos problemas interestaduais e tão mais antigos: a polícia militar.

(militar é um órgão capaz de eliminar todos os outros, e, por isso mesmo, deve ter sua existência sumariamente questionada)

e então os bondes, as cores. os trios elétricos que se não estivessem cercados de tantos políciais (e nunca entenderemos tantos policiais) seriam carnavalescos, polivalentes quaisquer-uns com tanto orgulho de enfim existir. sua manifestação nada mais é que uma afirmação da própria existência. decidem ter voz. depois de tanto tempo que não se sabe ao certo de crença forçação velada em crer num sistema de números, morfemas, eixos temáticos e não se sabe ao certo e nunca em quem votar – requisito infame de uma política de delegações.

hannah arendt diz que quando há autoridade, não há ação política: o poder de agir, nesse caso, é outorgado ao governante ou pequeno grupo que governa. pois então expliquemos, para fazer frente os confusos, gente que confunde totalitarismo com revolução (soa surpreendente, mas vive-se num mundo de disfarces, e nem é tão nova a ideia)

desacredita no sistema em ritmo contagiante de alienação // os espaços abertos são ricos em propostas e experimentos // há aqueles (e são muitos) que procuram lideranças/desejam lideranças/querem depor o lugar // me pergunto se precisamos de lideranças em qualquer lugar // o plural é importante // não se trata de verde e amarelo // bandeiras vermelhas representam grandes articulações coletivas por direitos sociais, nunca se esqueça disso // mídia golpista, que termo sensacional // veja, minhas máscaras foram usadas por outrem // ela foi às ruas e não sabia porquê // os discursos mudaram e continuou seguindo a marcha // mudaram o rumo e alguém ficou?

aqueles que pintam de branco são aqueles mesmos que desejarão eliminar todos os que não puderem se vestir da mesma cor.

você quer ser eliminado? ou espera obter uma fatia do bolo?

política de recortes, de cartas marcadas, de confusão. publicidade, política de imagens, vote no cara legal! os códigos binários e seus comandantes esperam somente respostas de sim-ou-não, são surdos de formação. no ministério das cartas altas, há interfaces e intermeios, ideias que protegem outras, surtações sim, mas muita blindagem, tanto de gentes quanto de informação. as curvas se contaminam, se misturam, não existe pureza no sistema: política de disputas, muita gana, fica um lembrete: a política é dura, mas é negociação. é perigo quando não se definem os temas, fica azul de imensidão

(sabe, aquele que preenche as arestas, cega no horizonte e se deixa engolir no sifão)

baderna é nossa aliada mais vasta, sim, posto que: vândalos são os policiais e seus mandantes. mas se nos chamam todos vândalos, se inserem vândalos entre nós, se vandalismo é a última moda da passeata multicolor da esquina, se qualquer passante é um vândalo em potencial, se o opressor é quem tem razão, se dão vazão às armas, tratam rua de cartazes como batalha campal, em suma, se nos bloqueiam, e atacam, seja nas ruas, em casa, em todo lugar, se não pode tanta coisa, se a fifa pode, se os donos podem, se a tevê pode, se o jornal quer convencer a sua mãe do nosso vandalismo, então sim, somos todos vândalos, vândalos venceremos, vândalismo vão de caminhar na rua, correr do gás, cair no chão..

curioso notar que as bandeiras do começo eram pelo pleno direito de circular – de andar! pois se cortam as pernas e cobram caro pelas próteses, cobrem tudo de cimento e aqui só passa carro blindado!

que espaço é esse forjado sobre tanta argamassa de minérios e gente que veio porque acredita que precisa trabalhar, que não come se não tiver sangue pra derramar, massa de manobra e ahhh.

faltam dores cores palavras pra dizer o porque dos tormentos, a coisa é tudo menos plana, vigente mas cheia dos interstícios estelares e sem muitas rotas de fuga (antes houvesse – a rota maior pede uma passagem de volta, pagamento no cartão, endividamento)

roda de chão sem voltagem, rebobina tudo, eu não quero levar porrada de policial.

acordar com helicóptero, quintal de casa como campo de batalha.

celebridades felizes na televisão, todos canarinhos.

esporte é travestimento de exploração.

a céu aberto

adquire uma espécie de pausa. ou não, isso não me serve: troca de camisa (como substitui cidades ou ambiências – em roupão). pensa em plantas, emaranhados de constelações e só três coisas a realizar por vez,

o que acontece é que pelo acúmulo dos anos das firulas amargas e dobraduras, aquilo que resta não mais compete aos ricardos, notívagos alegres ou quem sabe ninguém; míngua de jeito que resta, e mesmo está;

como faz com essa coisa que não simplifica, se atola em redes sobre redes sobre membranas sobre as quais fica ali só observando, não conhece os universos, o caminho apresentado é um só:

– arranja um emprego, paga tuas contas. forja esse espaço em construção, adestra os intelectos, faz brotar um referente anônimo, entre as pernas

– criei azuis bocados sem medos de errar, pois de erros já estávamos fartos (e lá no porto eu deixei minhas últimas convicções)

se deixa de construir não atrai.

quadrado de exercício para o braço, para as pernas (e no total somam três, assim mesmo assimétricos, posto que a mão esquerda foi deixada de lado;

quantas oportunidades mais vai deixar de acontecer (por pura agrura, incerteza, isso depois de concluir que sem certezas não se faz nada na vida

– cria blocos por entre as membranas
– para quê
– para ter sobre o que andar (seriam aves, pátinas, andaimes suspensos que iriam pretender sustentação
– de asfaltos, de agruras?
– não, tudo menos isso! menos o que há agora, sonhos perdidos numa desmemória, engarrafamento de sensações. não há nada se não há sossego, força, um pouco de construção.

CONCEBER TEREM ACABADO OS ESPAÇOS DE CONVIVÊNCIA

(sócrates grita lá no fundo)

SUBIR EM PAREDES E PAGINAÇÕES

(constelação)

CONCURSO PÚBLICO, MINHA FILHA…

(cons-ter-na-ções)

SEMMAIS SEMMEDO A CÉU ABERTO

(comofaz)

A CÉU ABERTO

rumo

1_semmedo

compreender o sossego por entre as curvas. sim, é essa a tarefa suprema a realizar.

como proceder? digo, conheço uma penca de procedimentos, talvez não aplicáveis a todas as instâncias. primeiro tem de compreender a fissura, olhar entre as bordas dos cadarços e cada modo de lidar com os ambientes. não se faz a novela como coisa pronta, tem de aprender a ver.

pois que lide com o processo, seus não-lugares e trejeitos incômodos.

talvez, o único jeito voraz de superar os acasos, aqueles que se convertem em desgostos, sem rapidez (como hão de admitir os jovens, vez ou outra).

é preciso um plano. talvez?

pontapé para o infinito, atadura. semmãos, semmedo, mmordedura. coragem, aquilo de que tanto falam os clássicos romanescos sem era, que se sobrepõem a uma realidade turva, demasiado complexa para nossos contos de fada caninos. anacronismos de infância, maus adestramentos. depois de um tempo, os embalsama todos e transforma em leituras de maniqueísmos diversos, notícias sem profusão nem densidade, as quais só se lê às partes. reitera discursos ou cria coisa alguma, mas segue algum rumo estrito que supostamente se concretiza. ou não, engole a rebelião e bate ponto no escritório, todos os dias, eis o método que seu pai lhe ensinou.

o herói não compreende seus trejeitos, seu namorado no masculino como não poderia imaginar. e depois a família toda vê a foto, porque não a imaginava tão visível, todas as membranas da vida se sobrepondo, como cadáveres. é tudo tão transparente que dói, no semmesmo da estória. compõe de palavras e imagens uma contação sem fim de protestos, amores e títulos de algozes. todos estudantes e ansiosos por se formar.

feitura

esse texto não é meu.

a reclusão não foi premeditada.

férias é comum, quase todo mundo tira. mudar de espaços é normal.

procurar ordenação no caos, todo mundo faz. melhor que jogar pela janela (e se janela houvesse para).

não pode parar e procurar tudo de novo, achar que com vazio reconstrói tudo? talvez. mas é difícil que dói.

– se doía antes!

– sim, doeu.

joalheria. cor de joelhos e açúcar e lentidão.

– tem amigos artistas, mas se é artista?

– tudo questão de concepção.

– assim como conceito?

– como conceitura, de feitura, processo.

– ah.

– você não entendeu.

– como você sabe?

– dá pra ver.

– tura. tinha um parágrafo grande do cortázar sobre as turas. eram muitas. grandiloquentes. importantes pra vida. talvez inevitáveis. olha, estou relendo cortázar.

– reconstrói e relê cortázar?

– reedito vídeos também. ou melhor: reedito ideias antigas em vídeo. às vezes nao sei se elas querem ser vídeo ou outra coisa. mas tento vídeo, que como texto pareciam ter menos dimensão. existiam, lá, na página do caderno. se uma ideia é boa ela merece talvez mais que uma página de caderno, não acha?

– depende do caderno.

– com certeza, mas é uma questão de dimensão. e de envergadura, de quanto tempo eu passo olhando para ela, até que se transforme em outra coisa.

– parece que é importante construir esses espaços de visibilidade, não é?

– sim, mas, também, de certa forma já houve o tempo (esses primeiros meses) para se dedicar às aspirações, contornos e toda essa papucaia. em suma, à hibernação. com ela vieram uma série de coisas, que talvez pareçam inconclusas à quem primeiro ver. pois não é melhor aceitar logo duma vez que todas as coisas sofrem de incompletude, em maior ou menor grau? porque podem sempre prolongar uma membrana, deixar nascer mais um elefante entre os dedos. se faz mal? pode fazer, depende de como você ordenar. como um enxerto de planta. se mistura, tem que cuidar pra não corromper. senão, o braço cai.

**

e outro dia alguém me pergunta:

– você nunca fez chá de fita, inês?

– …

que coisa é essa que faz a gente decretar abandono de umas coisas frágeis que um dia fizeram parte do que somos? pois se ainda somos, ainda fazem parte. talvez umas coisas com imagem, travessuras, modismos e construções. sim, é isso: você de repente se dá conta de que precisa construir, e para isso invariavelmente irá deixar de lado algumas coisas. curadoria, seleção. com justificativa e conceito, que vai se formando. procura uma imensidão em coisas súbitas, se traveste, muda de grupos, joga tudo o que tem no quarto fora. precisa viajar pra saber ver de novo, para saber ouvir. precisa chorar distante, às vezes, precisa pegar um avião e dar umas boas gargalhadas, se sentir leve outra vez.

– ver nuvens e malhas molhadas. nunca me esqueço de veneza, vista do avião. umas terras alagadas. as pessoas falam, é claro, mas ver de perto é outra parada. eu fui lá, pôr o pé numas terras alagadas. vinha dos países baixos, que também têm uns tantos canais e se constróem em artifício sobre um terreno que é abaixo do mar. que loucura, esses artifícios. no meio do caminho atravessei as planícies enquanto lia moinhos de vento pela janela, e minha carona que só tinha sorrisos para comunicar. foi bem feito, 10 horas de trajeto porque tinha trânsito, e possivelmente a única viagem de carro da minha vida em que não enjoei. e nem podia, não tinha curvas! que loucura, esses países de planícies sem curvas. concluí que burger king devia ser o graal de lá.

– esses seis meses eu vou viajar bastante. não sei manter esses fios tortos abaixo dos pés – faz sentido?

– se faz. e você pode viajar?

– como disse: é uma questão de envergadura. preciso dar dimensão. tem vezes em que as distâncias daqui ficam curtas, dóem demais porque perderam o traço ao caminhar. dureza de transportes, de decidir, de coisa morta. círculos concêntricos que me medem as pernas, às vezes caem. daí que é só mover uma folhinha amarela que pronto, talvez assim a máquina volte a funcionar.

**

para participar da representatividade das coisas sólidas, apareço. talvez só seja possível o jogo dentro dos espaços, mesmo que – mesmo que tudo. fincamos o pé, não se sabe por quanto tempo, para mais um rolê dos espasmos coletivos. entre vozes alertas e absortas, inundados de travessuras e comércio.

postulados de trânsito: afonso pena, no meio do trajeto

chego sobre rodas, ponho os pés na praça

pontos a favor em uma cidade última. parar de repetir monumentos.

o que fazer com as histórias das gentes todas que habitam, como seguem seu ritmo diário, interrompido por fachadas de obras, tristezas, demolições, ruas sem sentido, gente sem ruas, gente sem mala para carregar por aí.

aceitar mudanças. o que é possível de fazer para que justiças se efetivem nós faremos, mas é fato que há tanto e tão que é feito sem consentimento (das gentes que habitam) e que, ainda de tudo, desejam que fiquem contentes.

criam mídia brinquedinho, todo tipo de propaganda, que olhos um pouco mais sérios (e nem precisa ser muito) já tiram de campo. só que o campo insiste, é poderoso e tem lugar. convive-se. como é que convive.

adaptação e derivas noturnas pelo bairro trocado, que por vezes encontram medo, noutras simplesmente nada, ventinho. muito grato fica meu verão com seu ventinho, tijuca.

um método de conhecimento: primeiro, tem que andar de ônibus. a pé, de ônibus, de trem, de metrô, de carro, de moto, de bicicleta. desses, os principais são os pés, para mapear os arredores mais próximos, conhecer a padaria, a loja de material de construção. o segundo muito útil é bicicleta, para poder ir a porções mais largas do lugar e por exemplo descobrir uma pracinha charmosa, um supermercado maior, até o lugar onde tem mato e escola de artes. conversar com as pessoas – eu não sou daqui – e se apresenta.

andar de ônibus é importante (se contraposto a meios como carro ou metrô, fique claro, porque de fato os monstrengos engolem a cidade! eles são a cidade, aí é que está) porque deles se vê o trajeto, o meio do caminho entre um lugar e outro. entende por que é que é longe, por onde tem que passar, as ruas sujas ou pretas, o sambódromo. é louco que haja uma cidade com tantos viadutos e contusões, mas há! e muitas, com muito mais. esgoto e terras sujas temos de monte. como é que pode entender o asfalto que se instala nas terras férteis e perfumadas da serra, eu não sei. lá só é bonito porque a estrada é de terra, passa pouco carro, as árvores ainda estão em pé. os vizinhos se visitam e dão carona tranquilamente. e mesmo assim a cidade cresce, quer crescer, copiar nossos industrialismos importados, não vejo motivo.

o que é curioso do ônibus é que ali se encontram dois ambientes contrapostos – interior e exterior – e um vê ao outro. um ambiente (dentro) é quase tão público quanto o de fora. tudo bem, mas assim é o metrô, que com sua alta voltagem passa batido das leis de trânsito. é um corredor. só que no metrô não há um fora. é primo distante do avião. a sensação de trânsito – de percurso, vivência do caminho, distância – quase se anula nesse dentro/fora que não transparece.

a bicicleta é o meio máximo de euforia que um cidadão pode chegar, sem gastar um tostão. viajante que se arrisca a meio-mistério, tem turbinas próprias: um mecanismo simples e seu próprio corpo. atravessa montanhas se for persistente. a vida urbana tem seus afagos, e um dos mais subestimados é o potencial do ciclista. carros são da ordem do não fazer esforço, de monstros-máquinas, de posse. até mesmo de segurança, porque isola. há carros que não fazem nenhum sentido de serem tão grandes, soltar tanta fumaça. sem vento no rosto, sem mexer as pernas. não raro ignoram o ciclista como se ele não pudesse estar ali. quanto a isso, suponho que deveríamos difundir melhor algumas ideias básicas de convivência: na rua cabe eu e cabe você. a 1,5m de distância, para não haja feridos.

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dois meses sem bicicleta, com medo do asfalto e do túnel que tem goteiras. irritação contínua com homens que, por puro hábito, só pensam em perpetuar a espécie. você desce da bicicleta e pede informação, te olham de cima a baixo. princesa. deseducação obtusa, delegação. insulto. queria ter um caralho bem grande para bater na cabeça desses homens todos. mas sim, sei, o processo é outro.

daí que peguei a bicicleta e fui conhecer a praça afonso pena, de perto. antes, só via no trajeto da janela do ônibus. me parecia simpática. decisão, uma regra: pegar a bicicleta, ir até em casa. parar no caminho, pisar na praça. tentativa de entender o percurso, aprender o nome das ruas, somar com mais um rosto entre os passantes.

escolho uma loja (a cidade nada mais é que um conglomerado de lojas, e ônibus). pizzaria, tem cara de popular, vende fatia. ponto. muito mais barata que qualquer uma das que tem perto de casa. no interior, só vejo velhinhos (uns 3 ou 4) que me estranham a presença, mais uma família com crianças e os funcionários do local (todos homens). assistem televisão. a pizza é boa, marguerita, servida na mesa, com catchup. compro água no bar do lado cujo balconista me diz: todos os caminhos aqui te levam à rua que você procura. que loucura de fácil, não pode ser.