lybia, minha avó, e os finais terrestres

confusão nos territórios terrestres, ela se foi.

tirei uma foto só do cemitério pra mostrar como não é bonito. e tem mosquitos. em casa, depois, meu pai concordou com a sensação de sujeira que fica depois, vontade de lavar a roupa toda, os cabelos, desinfetar. é como nos filmes de zumbi ou do tarantino, só que escondem e maquiam pra você acreditar que aquilo que resta, algo como um animal empalhado, é aquela pessoa que te carregava no colo quando você era pequena. e se despedir.

minha outra avó já estava longe, mas tão longe quando foi embora, e eu nem vi. a família pareceu ainda mais confusa nessa distância, não entendi convite para a despedida, não vivi. de certo modo ainda parece estranho que não existe mais.

em terra, ainda defendo constantemente que as pessoas devem ser felizes no matter what. não consigo ver gente sofrendo da mesma forma que não suporto mentiras e situações forçadas. são substitutos da verdade, qualquer que ela seja. a verdade deve ser algo do plano sentimental, mas tão volúvel a questões de cunho prático. a vida não é prática, ela simplesmente acontece. a gente busca ordem, disciplina, porque precisa de trabalho e precisa viver no mundo tal como ele é. mas as coisas, elas simplesmente existem ou não existem, deixam de existir, escorrem no tempo e às vezes perecem. muitas pessoas não cuidam, muitas delas mereceriam estar nos filmes de zumbi.

o amor que ficou depois que ela foi embora foi tão intenso. a gente podia procurar escondê-lo tirando fotos de turista no cemitério, afinal, naquele monte de concreto imprimiram a assinatura da carmem miranda em dourado e fizeram uma bela montanha em miniatura – que mais se assemelha a um prédio comercial pomposo – para os restos do santos dumont. é um corredor de celebridades, de certa forma, um desfilar de famílias burguesas que cuidam ou não dos seus túmulos. as crianças corriam como sempre correm, riam como sempre riem e a gente riu também, depois. ali eu só tinha minha câmera e meu sorriso sem jeito, abobalhado, além dos abraços. “é tanta gente pra beijar”, eu disse, logo antes de lembrar mais uma vez do dinheiro e da moral cristã na inscrição da plaquinha (que me recorda obras de arte, facto): “os serviços religiosos são grátis”. grátis estava destacado em vermelho.

de fato é tudo tradição, costume. você bota a pessoa no hospital porque é the place to be quando se está doente e não se sabe que tipo de medida emergencial tomar. ela vai pra uti porque o hospital supostamente julga que os bombeiros ali, trabalhadores da emergência, vão poder ter os cuidados necessários. coisa de louco, hospital. pouca gente deve concordar que o lugar inspira saúde, suponho. e no entanto, todos estamos sujeitos às leis, aos contratos, aos hospitais e ao comércio, tendo um destino praticamente comum que é o cemitério. aquela biblioteca de famílias combinadas, posta em concreto e com ecos muito distante de vida. dela, ali, só ficam os nomes.

todas as vezes em que questiono esses padrões da sociedade meu pai demonstra seu mais resignado desinteresse: “as coisas são assim mesmo, minha filha, é a cultura em que a gente vive”. ora, pois sim, mas as práticas se justificam? não se pode pensar sobre elas? o piloto automático da nossa vida corrente diz pra crescer, parar de estudar, arrumar um emprego rotineiro para pagar contas, comprar muito, assinar muitos contratos, achar solidão ruim e então arrumar alguém pra fazer sexo e companhia, ter filhos, beber, fumar, eventualmente frequentar hospitais, talvez igrejas ou templos, e então, depois que tudo acaba, ir lá para aquele depósito de concreto, encomendado a deus, o todo poderoso o qual devemos temer, pelos serviços religiosos grátis.

uma vontade há muito posta de lado se concretizou no depois imediato: a família toda reunida. pode parecer banal ou dizer que isso ocorre nas datas festivas como natal ou casamentos. mas não. daquele jeito nunca mais se viu entre os guedes pereira e seus descendentes. minha avó era fernandes braga, na verdade, mas tem essa coisa de marido. depois, “ela” vai lá pra joão pessoa, onde tem um lugar mais digno no meio da biblioteca de passados e restos orgânicos da família do meu avô.

pois então, me vi de súbito rodeada de bebês. uma alegria inacreditável, igualmente inevitável. todo mundo se mostrava surpreso e ligeiramente constrangido com a situação, mas não tinha como não aproveitar o momento para conversar sobre como andam as coisas e tirar muitas fotos. a maioria foi na câmera da minha mãe, a anfitriã do momento fúnebre, na qual também tinham umas da minha avó ainda viva com hematomas, que pretendia denunciar pro hospital. depois da causa perdida, tornou-se em vão. queremos lembrar dela bonita, é claro. e era mesmo muito bonita.

nesse ponto de vista, foi quase uma festa particular da minha mãe. compareceram amigas dela em número expressivo, ela falava “lybia” a cada lacuna que se apresentava nos votos religiosos da sorridente mulher que os recitava. votos de submissão repletos de certezas. não consigo comprar o pacote.

a wania estava tão confusa e empenhada pra deixar transparecer uma emoção mais dela. era explícito, é claro, que estava abatida, além de muito de sono. mas receber pessoas é sua especialidade, assim como cuidar delas. ela faz isso com um prazer que eu não me lembro de ter visto em outro lugar. estava de branco, com um vestido longo até os pés e um xale também branco. alguém disse que era a melhor cor. e sobre isso posso dizer: ela ama os rituais, mas procura fazer tudo diferente.

a festa de família foi leve e intensa. não vi brigas, só vi gente cochichando problemas em um canto, como aliás sempre acontece. fala-se de trabalho e filhos, sem muitas anedotas. os bebês e as crianças promovem alegrias às quais é impossível recusar; surge minha mãe de banho tomado e com cara de moleca pra tirar a famosa foto dos quatro irmãos: era desejo da minha avó, que já cantava o próprio filho por não acreditar que aquele senhor de cabelos brancos tinha nascido dela.