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    domesticidade selvagem

    pernas

    fôlego

     
     

    talvez o desafio seja tecer uma continuidade

     

    (abrupto)

    (abrupto)

  • estilhaço

    as máscaras se formam no infinito. não têm desenvoltura, são de uma dureza que só. solitárias florestas de nós mesmos; pequenas prisões que fazem abraços, corroem laços, voltam para tecer de novo. pequenos rumos de umas coisas assim tão belas, tão pequeninas, florzinhas a se espalhar no chão e descer ladeiras, e então tudo desmorona. só que nós, aqueles vincos distantes, estaremos já em outro chão, um chão de árvores, um chão sem fundo nem querelas.

    será de abismos composta a história, será de acasos fortuitos que não se sabem abraços, pois terão de aprender tudo de novo. terão de compor as estruturas, aprender a erguer tijolos, a revirar o solo e também a respeitar os seus tempos, os seus enlaces, as suas curvas. e não são simples as curvas, elas são no mínimo do tipo ‘cotovelo’, quer dizer, no mínimo muito inclinadas. milhões de dobrinhas a desvendar a cada movimento.

    e no entanto não existe cansaço, não será sem braços nem ação. se nos cansamos, iremos nos refazer de novo, após uma noite de canto e muitos pés que ritmicamente se revolvem em movimentos fluidos e circulares. sim, círculos e circuitos promovem regeneração de estruturas, ainda que elas mesmas circulares, sempre em curvas correndo em espirais, não apreensíveis posto que se movem e estão sempre a seguir.

    abraços, de que será feita a estrutura. gêneros, curvas, enlaces. ainda que turvas as memórias, ainda que retorcido o movimento, o contexto geral e toda sua dureza de cimento. cinismo aprendemos nas infâncias, o be-a-bá do mundo, para depois revolver-nos em desconstruções, risadas, todos aqueles absurdos que irão compreender mínimos aspectos e enfim a noção de que não há todo a ser visto, senão de outro modo. todos os nós compreendidos em estilhaço, e sim estilhaço, mas ainda curvas, curvas nos salvarão.

    e só nós mesmos, por entre as árvores para inventar costuras e desmembrar as cinzas, todas elas. em múltiplas partes e fragmentos, cientes de seus limites e asfaltos, ainda tecendo curvas sem chão.

  • o tanto que fomos,
    o tanto que somos

  • posição fetal agitando
    um punho um aceno um abraço
    garante que
    ao menos a gente tenha junto
    alguma voz

    um novelo
    e seu bagaço
    encontro da família
    com o asfalto,
    a rua dura

    as legendas dessa cama
    contam com duas ou três arestas
    não doces, não tem vez
    meu corpo
    os mosquitos
    o chão

    o saliente zumbido
    a tua voz
    no celular, àquela altura
    da manhã enviesada
    no rasgo, no sustento
    do que viria a ser
    e do que nunca foi
    e que provavelmente
    encerraríamos aqui mesmo

    o novelo o novelo absinto
    reanimo
    os bichos

  • colagem de chão

    territórios corrompidos, firulas demasiado belas para sobrexistir a qualquer asfáltico caminho, reinvenção.

    em campos de linho-semeadura, durezas vãs e decisões esquivas, além-trópicos ou no planalto central: que haveremos de fazer, que estratégias adotar, que tópicos consternar, que discussões postergar. ligaduras. caminhos. inveja tanta de algo que foi mas nunca fez, vontades, suntuosidades vãs de uma situação que não embeleza, pelo contrário, envereda em redemoinho e sabe-se-lá por onde mais.

    construir! rios, pontes, tessituras? diria mais é observar, observar e respirar, observar e estarmos juntas nesse lugar nenhum. onde colocar os pés, precisamente. da terra cuidar. aquebrantar as migalhas de civilização que nos fundam, que nos constroem, que nos inventam em descartes e poeira, poeira de caminhões. e cigarros.

    é curioso como uma busca de sentido que inauguramos com tanta alegria se perca e se misture a muitas outras lutas, e se torne sim mais complexa a cada dia. obviamente tem um quê de controle nisso, de uma vontade de lugar, de produzir eixo, cabo, chão.

    eu não sei chão, eu sei voltagens. desvencilhar. de último, só peço menos atribulações e tributos durante o percurso, que haverá de se atravessar.

    menos verbo, uma observação de gestos.

    uma dança de gestos. às vezes mais pronunciados ou cada vez mais em meandros, em semilinhas e meias falas, sugeridos, expelidos entredentes.

    não subestimar as ligaduras, ou mais precisamente as invenções de que dispomos, as ferramentas que recebemos.

    o ritmo que imprimimos na dança é o mesmo que irá orientar o percurso. a desenvoltura de perceber os mínimos caminhos e desviar, reestruturar, apresentar por mais óbvia que seja uma solução palpável, alguma que não haverá de rastrear.

    gracejos simples, cachoeira: cuide dos dentes, eu cuido do facão.

    linha escrita, em mãos.

  • fluxo

    onde está uma ventania que se situa exatamente no instante em que a dança começa, uma membrana é posta de lado; cartilagens de baleia formam costelas duras e maleáveis – uma fortaleza que tem meios e barbatanas; pés que correm por entre teias costuradas e que sim! cessam, se fazem percurso no chão; olhos que entre uma atenção e outra formam tecidos inversos, só se sabem em ação; imagens turvas que se formam cada vez mais em campo de letra, sobrepostas, miudinhas e contadas aos baldes para crianças; enxurrada, eu não sei, às vezes durmo; se considero cachoeiras como um aprendizado tão importante quanto bibliotecas; sob esse vínculo, a permacultura se realiza quando os pés se põem a caminhar; a casa então se move e deve aprender a existir desse modo.

  • caos

    ou ordem
    ou risco
    ou padrão

    3 imagens de pesquisa

    caos_enoc
    desenho do enoc, 2 anos
    verso, ao contrário: manchas de caneta (i)
    verso, ao contrário: manchas de caneta (i)
    a máquina gira, a tinta se espalha
    a máquina gira, a tinta se espalha
  • _

    você está
    longe dos hábitos
    que te fazem mover
    longe das múltiplas
    saídas sumir de bicicleta
    correr

    você está há 10 dias em casa
    seria pouco,
    não fosse a memória recente
    da quarentena pandêmica o
    corpo não sustenta isolamento
    e quer encontrar

    a obra que então escrevo
    existe desde fevereiro
    desde 2010
    desde que vivi e não
    contei as memórias em papel

    ou
    sim, mas em outra forma
    compusemos pois em assunto
    vasto
    criança que fazia ali
    um caminho
    poesia

    começo de aventura um sei lá
    eu quero meu solfejo de volta
    minha rua, meu caminhar noturno
    um certo manejo para comparecer
    a eventos e ver
    as pessoas

    a obra
    ela vai hoje, vai
    ainda que o corpo arranque
    um último suspiro do desejo
    de mover
    e libertar o traçado
    a vida possível ela
    não é
    assim

  • postulados de trânsito: afonso pena, no meio do trajeto

    chego sobre rodas, ponho os pés na praça

    pontos a favor em uma cidade última. parar de repetir monumentos.

    o que fazer com as histórias das gentes todas que habitam, como seguem seu ritmo diário, interrompido por fachadas de obras, tristezas, demolições, ruas sem sentido, gente sem ruas, gente sem mala para carregar por aí.

    aceitar mudanças. o que é possível de fazer para que justiças se efetivem nós faremos, mas é fato que há tanto e tão que é feito sem consentimento (das gentes que habitam) e que, ainda de tudo, desejam que fiquem contentes.

    criam mídia brinquedinho, todo tipo de propaganda, que olhos um pouco mais sérios (e nem precisa ser muito) já tiram de campo. só que o campo insiste, é poderoso e tem lugar. convive-se. como é que convive.

    adaptação e derivas noturnas pelo bairro trocado, que por vezes encontram medo, noutras simplesmente nada, ventinho. muito grato fica meu verão com seu ventinho, tijuca.

    um método de conhecimento: primeiro, tem que andar de ônibus. a pé, de ônibus, de trem, de metrô, de carro, de moto, de bicicleta. desses, os principais são os pés, para mapear os arredores mais próximos, conhecer a padaria, a loja de material de construção. o segundo muito útil é bicicleta, para poder ir a porções mais largas do lugar e por exemplo descobrir uma pracinha charmosa, um supermercado maior, até o lugar onde tem mato e escola de artes. conversar com as pessoas – eu não sou daqui – e se apresenta.

    andar de ônibus é importante (se contraposto a meios como carro ou metrô, fique claro, porque de fato os monstrengos engolem a cidade! eles são a cidade, aí é que está) porque deles se vê o trajeto, o meio do caminho entre um lugar e outro. entende por que é que é longe, por onde tem que passar, as ruas sujas ou pretas, o sambódromo. é louco que haja uma cidade com tantos viadutos e contusões, mas há! e muitas, com muito mais. esgoto e terras sujas temos de monte. como é que pode entender o asfalto que se instala nas terras férteis e perfumadas da serra, eu não sei. lá só é bonito porque a estrada é de terra, passa pouco carro, as árvores ainda estão em pé. os vizinhos se visitam e dão carona tranquilamente. e mesmo assim a cidade cresce, quer crescer, copiar nossos industrialismos importados, não vejo motivo.

    o que é curioso do ônibus é que ali se encontram dois ambientes contrapostos – interior e exterior – e um vê ao outro. um ambiente (dentro) é quase tão público quanto o de fora. tudo bem, mas assim é o metrô, que com sua alta voltagem passa batido das leis de trânsito. é um corredor. só que no metrô não há um fora. é primo distante do avião. a sensação de trânsito – de percurso, vivência do caminho, distância – quase se anula nesse dentro/fora que não transparece.

    a bicicleta é o meio máximo de euforia que um cidadão pode chegar, sem gastar um tostão. viajante que se arrisca a meio-mistério, tem turbinas próprias: um mecanismo simples e seu próprio corpo. atravessa montanhas se for persistente. a vida urbana tem seus afagos, e um dos mais subestimados é o potencial do ciclista. carros são da ordem do não fazer esforço, de monstros-máquinas, de posse. até mesmo de segurança, porque isola. há carros que não fazem nenhum sentido de serem tão grandes, soltar tanta fumaça. sem vento no rosto, sem mexer as pernas. não raro ignoram o ciclista como se ele não pudesse estar ali. quanto a isso, suponho que deveríamos difundir melhor algumas ideias básicas de convivência: na rua cabe eu e cabe você. a 1,5m de distância, para não haja feridos.

    //

    dois meses sem bicicleta, com medo do asfalto e do túnel que tem goteiras. irritação contínua com homens que, por puro hábito, só pensam em perpetuar a espécie. você desce da bicicleta e pede informação, te olham de cima a baixo. princesa. deseducação obtusa, delegação. insulto. queria ter um caralho bem grande para bater na cabeça desses homens todos. mas sim, sei, o processo é outro.

    daí que peguei a bicicleta e fui conhecer a praça afonso pena, de perto. antes, só via no trajeto da janela do ônibus. me parecia simpática. decisão, uma regra: pegar a bicicleta, ir até em casa. parar no caminho, pisar na praça. tentativa de entender o percurso, aprender o nome das ruas, somar com mais um rosto entre os passantes.

    escolho uma loja (a cidade nada mais é que um conglomerado de lojas, e ônibus). pizzaria, tem cara de popular, vende fatia. ponto. muito mais barata que qualquer uma das que tem perto de casa. no interior, só vejo velhinhos (uns 3 ou 4) que me estranham a presença, mais uma família com crianças e os funcionários do local (todos homens). assistem televisão. a pizza é boa, marguerita, servida na mesa, com catchup. compro água no bar do lado cujo balconista me diz: todos os caminhos aqui te levam à rua que você procura. que loucura de fácil, não pode ser.