• eixo (rindo)

    esperar as horas do sossego
    lapidar o canto,
    não pensar no desatino

    não secar as lágrimas
    dançar rodopiar
    em zelo

    aquece
    sou eu mesmo que
    canto

    sou eu mesmo que
    me envolvo num abraço
    na cama

    o suscinto: delírio
    amargo ardor de antes
    já foi,

    esquece
    caminha
    vai embora

    (já fui)

    nessa composição celeste
    somos só nós mesmos a lançar
    num rasgo num só bocejo num vulto

    rápido morcego eu sim
    eu vim
    cá estamos

    rindo

  • parede

    sem lugar para o gosto
    verbo, sem lugar para a dança
    (lugar)

    a-lugar eu faço, a esta hora
    não antes, depois não saberei
    o que seria dos rejuntes sem estes cantos

    (e tantos anos sem ao menos uma linha escrita, aberta)

    fechadas casas são as tuas, apesar de entrar
    conheço tantos meninos com medos
    de serem entrada, passeio, abertura

    não era a tua, mas hoje
    sempre reparo quando falas dos beijos dos outros
    os beijos dos outros não existem seus
    não lá

    (como se negasse uma possibilidade, exame)

    ação que em si mesma é só uma memória enviesada
    recente, confusa,
    clara em linhas retas de parede perfurada
    sem chão

  • cambridge analytica

    quem levanta os montes depois de mortos? quem ergue o eixo que faz respirar? quem derrama suas fezes sobre um povo, corrói seus novelos e ergue um punho

    sobre
    nós

    está ali às cegas
    tateando infinitos em praça pública
    mil sóis em utopias
    e amores

    esmagados,
    sem dó

    DIANTE DO ESCÂNDALO

    há os galhos
    que se embrenham uns
    aos outros
    e sobem
    encostas

    assuntos sinceros, recebidos em ouriço
    asperezas, recusas

    DIANTE DA ARMADILHA

    ergue o espírito em carne viva
    conta da história de seus avós
    seus pais, seus tios

    NÃO HÁ DE CALAR

    chorou
    no meio
    da praça

    caminhos ouvir carimbó

    no meio
    da praça

    DIANTE DO CAOS

    quisera mais vezes findar
    e recomeçar
    sem sentir perder os
    árbitros solfejos
    não encontra

    o nado alicerce que alhures ali almeja
    um navio
    um chão

    dança
    união

    em que país

    COMPÊNDIO DE IDEIAS E COISAÇÃO
    não rasgo

    hei
    de construir

    memória

  • o tanto que fomos,
    o tanto que somos

  • um autômato é o limite da matéria

    um autômato é o limite da matéria. coleta palavras como um gafanhoto nefasto. não as digere. não cria coisa alguma. ele mistura — e nesse sentido, um intelecto animal é capaz de misturar também, com sua sagacidade de contexto e um processo de digestão riquíssimo em olhadelas, vastas borboletas e mudanças.

    não somos autômatos, senhor. lamento. lamento também as vozes que sussurram em vão nesses necrotérios. iriam sonhar em violentar cadáveres, os mesmos juízes que insistem em violentar toda vida que pulse sobre e para além de suas leis estritas. às leis, só cabem invenções espúrias. se põem cada vez mais velozes, com um tino mais gasto, mais amargo a cada dia. se perderão em labaredas, criatura.

    minhas vestes carregam vozes de tantas, tantas vidas atravessadas. somos engraçados, tão caricatos quanto nos tentam compreender. categorias inventadas cheias de preguiça, sem interesse algum. as cinzas desse meio encontramos regurgitando no meio fio, o sol a pino. não seriam mais velozes, esses bufões. mal sabem caminhar.

    peço carona na estrada, eu e tu, seus convivas e nossos agregados: temos umas caras risonhas. me chegam caminhões bradando golfadas de pó e artimanhas. não sustento. podemos seguir por outros trajetos. escolher as companhias, escolher as estradas. nem sempre dá. mas dá pra desviar, refazer, dançar e tecer curvas, malemolentes, calcando firulas. caçoando das neves, das vagens, das estruturas bélicas insistentes e ridículas sem dó. tentar sorrir. balançar, ponderando, cantando.

    não vim caminhar só, meu amigo. tampouco seguir o bando. temos borboletas em nós.

  • fluxo

    onde está uma ventania que se situa exatamente no instante em que a dança começa, uma membrana é posta de lado; cartilagens de baleia formam costelas duras e maleáveis – uma fortaleza que tem meios e barbatanas; pés que correm por entre teias costuradas e que sim! cessam, se fazem percurso no chão; olhos que entre uma atenção e outra formam tecidos inversos, só se sabem em ação; imagens turvas que se formam cada vez mais em campo de letra, sobrepostas, miudinhas e contadas aos baldes para crianças; enxurrada, eu não sei, às vezes durmo; se considero cachoeiras como um aprendizado tão importante quanto bibliotecas; sob esse vínculo, a permacultura se realiza quando os pés se põem a caminhar; a casa então se move e deve aprender a existir desse modo.

  • ia

    org
    órgão
    organiza
    orgia
    ia

  • rompe

    isso que você está sentindo não vai passar. tudo isso que são sintomas do ovo, do ovo que se quebra, da casca melequenta, e do tom esbranquiçado da coça. foi uma coça, cê viu. aquele jumento, monumento que passou e quebrou. a casca. o ovo. a tomba, a tumba do sistema fóssil, aquelas coisas que de vez em quando surtiam efeito, estavam embaixo dos teus pés. um monte de cano, asfalto, veias remelentas de esgoto, que na verdade é muito pior. estrutura de estado, pra quê? não tem. repete? não tem? repete? não tem. não terá. por um tempo.

    a casca. o ovo. quebra. tá ali. vamo se juntar. vão publicar no jornal. vão te monitorar na rede social. estaremos todos sozinhos juntos na rede social. não, pô. vamo se juntar real, pessoa-a-pessoa, lá no lugar onde até outro dia era do ministério. vamo tocar, vamo discutir, fazer barulho, organizar. vamo. vão publicar. vai demorar. a juíza dos horários, vai comer correndo porque tem trabalho. ainda tem trabalho. resolveu fabricar trabalho. inventou um jeito de devolver pra sociedade o que ela te dá. ela te dá? coça. a gente troca, mas não é só isso né? a gente existe e faz. a gente se enreda. e envereda no que dá gosto ou no que a gente consegue visualizar. no que dá pra fazer. e o que dá muda. a gente muda. a gente procura gente pra juntar pessoa-a-pessoa porque precisa, precisa junto, precisa fazer.

    a gente quer estrutura debaixo dos pés. alguma, ou então que não exista nenhuma. que não exista governo. que não se pague impostos para um brutamontes qualquer e sem disfarce pôr seus capatazes a nos decepar direitos e lugares (porque é tão evidente, de uns tempos pra cá tudo tão evidente para as lentes de quem vê — aquelas?).

    esquerdos, direitos. alhures. se juntar.

  • trajeto

    às vezes eu tenho a
    estranha vontade de
    dormir num ônibus
    não que seja confortável
    não que não haja ruído

    é o simples gesto de
    estar em movimento
    ir de um lugar ao outro
    como se com isso –
    transpondo cidades –
    algo pudesse
    transmutar

    constelação vista pela estrada
    ruído de máquinas, parada
    assunto de duas cadeiras à frente
    música
    não gosto, me vejo procurando caronas
    mas quando dizem que – vamos conversar
    agradeço meu direito de permanecer calada
    embarco num ônibus, adormeço entrecostada
    sonhando abruptamente com locais
    um pouco menos vagos

    situações menos gastas
    encontros calorosos e afáveis
    conforto de saudades
    duram dois dias, em média
    no restante temos que trabalhar
    e se algo foge à regra
    posto que situação: viagem
    passeio passeio gana
    perco-me sutilmente
    entre apreços
    e paragens

    o core pede: luta
    concentração faremos
    em que localidade
    em que zelo encontre pela estrada
    uma casa, a que custos
    de frequência e lentidão
    costumeiramente
    saudáveis