‘transformação do silêncio em linguagem e ação’

amar sem ser em silêncio.

preciso cutucar os silêncios antes que virem pedra, e nos afundem mais fundo. eu, aquilo que me compõe, e eu componho com o verbo. com a garganta. é fundo.

releio meus escritos antigos e vejo como eu escrevia tanto. ao longo dos anos, venho me silenciando. a insurreição reflectiva – e extremamente melancólica – que eu construía à base de criação e deriva foi dando lugar, pouco a pouco, a um esmagamento de rotina quando tinha emprego, e a um desespero silenciador quando não tinha. pagar as contas. eu acho que é isso, é tudo do que consigo me lembrar

a experiência recente de passar por um editor de livros ao, pela primeira vez, tentar publicar meus poemas, estendendo ao longo de um dolorido ano um processo excruciante de publicação – ou não sei se chamo o ano de excruciante e a edição do livro de dolorida, escolham – tem sido difícil, consideravelmente penosa e broxante quando visualizamos o suposto entusiasmo que rodeia uma primeira publicação. mas. tudo bem. algo aconteceu ali. preciso trazer os escritos a público, mesmo que poucos leiam e haja embates de pontuação.

agora mesmo, quando enfim escrevo depois de tanto – e um pouco oscilar se não ia para o papel, num momento em que não sei se a bagunça nos meus hds-computadores é maior ou menor que a dos meus cadernos, me lembro que os arrumaria “em breve” – me sinto roubando tempo das coisas que preciso fazer, como escrever ao orientador (mais um que de tanto demoro quase me esquece), pensar nos trabalhos remunerados e no portfolio refeito. na busca de casa. novelas que se repetem, e progredimos aos poucos. sim, progredimos!!!

amor ainda é, de verdade, uma das emoções que mais me ocupam e atravessam todo e qualquer fazer cotidiano. quando na forma de entusiasmo, troca, é um furor magnífico que de fato torna tudo mais tolerável e encantador. quando silencia, ou trava, ou encontra descaminhos, recusas, é uma dor contínua que se propaga em ondas, às vezes recorrendo aos recursos místicos que supostamente nos ajudam a antever o que se passa. e eles parecem falar comigo de verdade, mas sei que preferem uma dinâmica moderada, sem abusos. o anseio por respostas me torna compulsiva. quero cambiar esse gênero na fala e é me é difícil.

eu me lembrei, aqui, e me pareceu importante no sentido de causa maior em acontecimentos y ideias vir registrar, ou melhor, refletir por escrito para que não esqueça: “a transformação do silêncio em linguagem e ação”, da audre lorde, não só me tirou do poço profundo que foi o final de 2018, e me lembra constantemente de me aprofundar na obra da poeta, como é um mantra, uma máxima a lembrar com frequência, trazer para o mundo e para si de espírito e voluptuosidade. erotismo também é audre lorde. erotismo somos nós que vamos.

eu vivi muitos amores em silêncio. praticamente toda uma vida. trinta e seis anos, me dei conta de que há 20 fiz sexo com a minha melhor amiga e assim teve início a minha vida sexual. conversando com uma pessoa transfeminina esses dias, das que toma hormônios, fala do quanto quer que seus peitinhos recém-nascidos sejam tocados, e eu me recordo de que entre os 12 e os dezessete anos, os meus não o teriam sido também. opa: a antes melhor amiga os tocou, eu lembro. devia ter uns 13. ou 16 ou por certo algo no meio disso. lembro quando escrevo aqui: reescrever toda a minha história, ainda e mais uma vez,
sem que omita o que cai fora do padrão heterossexual? e ainda, com clareza, reescrever a minha história para que o episódio tão recorrente do amor não declarado não se repita?

já levei susto e depois dissabor ao ouvir de alguém com quem eu não tinha tido nada, nem dado um beijo, de dizer que gostava de mim, ou me amava ou algo do tipo. amor não vivido, que o diz a título de propriedade, não me interessa. será isso? acho que ao dizer à pessoa que amo que eu a amo, eu só quero dizer “olha, podemos ser abertos com sentimentos (?), será que rola caminhar junto, tentar ver no que pode dar esse encontro?”

eu já disse isso de inumeráveis formas contornando a palavra e os desejos, cortando frases pela metade, dizendo “escrevi um poema” e nunca enviando (tanto), porque se expor sem que seja mútuo não é desejável. estar vulnerável só vale se for compartilhado. não interessa estar nu diante daquele que se arma. ponto. é isso.

e todo mundo vive armado há muito, o tempo todo e até os dentes, escapando e dissimulando, e isso bem antes do governo totalitário que zomba da nossa vida, hoje. vulnerabilidade é a moeda que não quer se difundir. feminina, será? mas e se nem pessoas não-binárias ou transfemininas podem lidar com ela, quem irá? sem fantasiar sobre a vulnerabilidade, sem se atirar a um poço sem medo (já o fiz, provável). não falo de masoquismo, falo de confiança mútua quando algo de bonito e surpreendente acontece entre duas pessoas. medo, terror? carinho, amor?