• rapidinha

    inventário na sua boca
    com cheiro de carnaval

  • °

    nadando contracorrente, tranquila, de costas; o fogo aceso; os amigos presentes; a comida farta; o céu estrelado; os livros e projetos em prumo; as estórias; os jogos; as cores; as crianças; o tecido de pendurar; as danças, a rede, sambasadashiva; passado, presente, futuro; björk; os mapas; os tempos porvir; os vínculos alegres; o cultivo; a busca; o cuidado; o carinho; as estradas abertas; os rumos; as bagagens; as cartas; a mata; o rio, o rio, o rio

    foto da Luiza Cilente no canto mágico da Luar, em boas-vindas ao 2020

  • te vi por aí

    a gente tem que colar
    nossos tremores
    e nossos temores
    no tempo

    antes que sejam vãos
    (nunca serão)

    antes que acabem
    em qualquer esquina
    embriagados
    abandonados
    ao relento

    antes que encontremos
    uma desculpa
    estapafúrdia
    pra não se encontrar
    de novo

    as pessoas estão sozinhas
    nas ruas

    mas também estão juntas

    me pergunto se há vida social
    e há

    alguma
    permuta
    possível
    no acaso
    e no endereço

    no amor
    nem pergunto mais
    mas sonho
    sonho
    sonho todos os dias
    vai fazer um ano

    não quero viver
    em estado de sonho
    quero o concreto real
    do sonho vivido
    da rua curtida
    do abraço junto
    carinho

  • combater o deserto com lapadas de ferro, fogo y fumo

    não desertar do desejo

  • enquanto aguardamos a tempestade, um avião cai. nesta semana soube de tantos mortos, afetos de amigos, amigos, afetos, atropelo, atravessamento, suicídio, morte súbita. não tenho todos os nomes, nem todas as informações precisas como se pediria saber, não quero falar sobre morte. estão aí. os acontecimentos.

  • trajeto

    às vezes eu tenho a
    estranha vontade de
    dormir num ônibus
    não que seja confortável
    não que não haja ruído

    é o simples gesto de
    estar em movimento
    ir de um lugar ao outro
    como se com isso –
    transpondo cidades –
    algo pudesse
    transmutar

    constelação vista pela estrada
    ruído de máquinas, parada
    assunto de duas cadeiras à frente
    música
    não gosto, me vejo procurando caronas
    mas quando dizem que – vamos conversar
    agradeço meu direito de permanecer calada
    embarco num ônibus, adormeço entrecostada
    sonhando abruptamente com locais
    um pouco menos vagos

    situações menos gastas
    encontros calorosos e afáveis
    conforto de saudades
    duram dois dias, em média
    no restante temos que trabalhar
    e se algo foge à regra
    posto que situação: viagem
    passeio passeio gana
    perco-me sutilmente
    entre apreços
    e paragens

    o core pede: luta
    concentração faremos
    em que localidade
    em que zelo encontre pela estrada
    uma casa, a que custos
    de frequência e lentidão
    costumeiramente
    saudáveis

  • estilhaço

    as máscaras se formam no infinito. não têm desenvoltura, são de uma dureza que só. solitárias florestas de nós mesmos; pequenas prisões que fazem abraços, corroem laços, voltam para tecer de novo. pequenos rumos de umas coisas assim tão belas, tão pequeninas, florzinhas a se espalhar no chão e descer ladeiras, e então tudo desmorona. só que nós, aqueles vincos distantes, estaremos já em outro chão, um chão de árvores, um chão sem fundo nem querelas.

    será de abismos composta a história, será de acasos fortuitos que não se sabem abraços, pois terão de aprender tudo de novo. terão de compor as estruturas, aprender a erguer tijolos, a revirar o solo e também a respeitar os seus tempos, os seus enlaces, as suas curvas. e não são simples as curvas, elas são no mínimo do tipo ‘cotovelo’, quer dizer, no mínimo muito inclinadas. milhões de dobrinhas a desvendar a cada movimento.

    e no entanto não existe cansaço, não será sem braços nem ação. se nos cansamos, iremos nos refazer de novo, após uma noite de canto e muitos pés que ritmicamente se revolvem em movimentos fluidos e circulares. sim, círculos e circuitos promovem regeneração de estruturas, ainda que elas mesmas circulares, sempre em curvas correndo em espirais, não apreensíveis posto que se movem e estão sempre a seguir.

    abraços, de que será feita a estrutura. gêneros, curvas, enlaces. ainda que turvas as memórias, ainda que retorcido o movimento, o contexto geral e toda sua dureza de cimento. cinismo aprendemos nas infâncias, o be-a-bá do mundo, para depois revolver-nos em desconstruções, risadas, todos aqueles absurdos que irão compreender mínimos aspectos e enfim a noção de que não há todo a ser visto, senão de outro modo. todos os nós compreendidos em estilhaço, e sim estilhaço, mas ainda curvas, curvas nos salvarão.

    e só nós mesmos, por entre as árvores para inventar costuras e desmembrar as cinzas, todas elas. em múltiplas partes e fragmentos, cientes de seus limites e asfaltos, ainda tecendo curvas sem chão.

  • onde está

    quem iria dizer
    que o invólucro iria se rasgar
    espalhando pela rua
    (mais uma vez)

    parece que os rastros
    foram todos coletados
    (ao menos isso)
    que sirvam a alguéns

    as ruínas
    e também os amados
    objetos costuras rabiscos
    revistas livros

    colchão
    esteira
    estante
    gavetas

    tudo isso na rua
    num alvoroço que fez quebrar
    o filtro
    de barro lindo posto na esquina

    (penca que sobrava de 2017,
    penúria, que vá em paz
    essa retranca,
    a ajuda que se faz rebuliço)

    as famílias enviesadas
    batendo cartão, cortadas
    abraçadas esfiapadas afiadas
    eu me desfaleço

    e esvaneço
    reinvento memórias
    encontro outro nome

  • olhos caídos em dezembro

    uma festa que não deu certo. um desejo contido. sufocado entre quatro paredes.

    duas imagens:

    (1) um quadro triangular, em 4:3, dentro dele uma escada velha de madeira, à esquerda. ao fundo, uma parede desgastada pelo tempo.

    (2) menina vai ao banheiro e ouve uma senhora falar. sai da cabine e continua a ouvir, ela fala de estrelas e lugares perdidos. e completa dizendo que os jovens tendem a confundir fantasia e realidade, o que pode ser perigoso e a preocupa. finaliza com uma satisfação: admira o trabalho dos jovens, e é tudo graças à tecnologia. À TECNOLOGIA.

    **

    o tempo me pede para escrever sobre o tempo que me consome e o tempo vasto que se perdeu nas memórias e que se sente na música que faz parar o tempo e bailar em voltas em saias que se confundem com meias que se confundem com beijos na boca. o tempo futuro é o que eu não sei mas os livros todos eles especulam, eles falam de crenças perdidas e espaçonaves, de andróides e mentes fora do corpo, os anos oitenta foram tanto. só suprimiria todos aqueles exageros banhados em laquê e centropeitos e mesmo alguns sintetizadores.

    o tempo em que durmo é que é passado em bocados, horas não sentidas, sussuros, cafunés-em-mim-mesma. acordo de lentes – que é pra inaugurar estas novas – e logo percebo; o quanto em vão, quantas vontades, e atropelos.

    resolução de fim de ano dá nisso, eu não ia fazer uma. eu precisava discorrer sobre o tempo e seria tão bom falar desse farfalhar das árvores daqui do bairro ainda que com o sol TÃO forte; do canto das cigarras não só ao entardecer mas várias vezes por dia. tem som de silêncio.

    falar sobre a aceleração neste fim de ano que é tão acelerado; na pressa se perde o sentido, na pressa as coisas vão caindo pelo caminho. dezembro cheira a nada, eu insisto mas não consigo, só tem som de cigarras porque eu ignoro os carros agitados e as compras intensas. por toda a volta.

    caio no mar. dou meia volta.