• as palavras não dão conta de surrupiar os novelos
    ficam assim: pasmas

    e de tantos espasmos, começam a se mover de mansinho
    por entre encostas, espaços abertos esquecidos pelo tempo
    das multidões não mais seremos, até que

    não haverá verbo para cessar os fogos
    se não aquele gesto mínimo, da face
    dos mais próximos

  • escrito para um corpo

    prólogo/

    gosto do não-livro.
    meu corpo é constituído em regimes de atenção.
    de um ponto a outro, não fixo. não lerdo.
    atento, está.
    está sem livro. é leve.
    voa.

    percorre o livro
    vento não é matéria

    *

    1/

    um corpo é feito de cotidiano e memória
    abstração, ato (calor, água)

    meu corpo é estômago e membros.
    centro e arestas
    tanto cabeça quanto pés.

    atento
    regimes de atenção compõem um corpo
    tanto quanto a água, o fluxo
    dos líquidos. correnteza.
    alerta

    acesso-chão
    curte,
    repercute

    *

    2/

    acocorado, as coxas apoiadas em arbustos

    ação: levantar, abrir os braços (sem rosto)

    recorrente (repetição):

    passo, asfalto, chão. passo, asfalto, chão. escada. passo, asfalto. bocejo. coço. cumprimento. passo, asfalto, chão, sala, televisores. máquinas. desligo o ar. abro as janelas. tento sorrir. sentada, bunda, costas. dormente. cabeça, olhos, computador. máquinas. dedilhado, dedos, pensa em música. iria amansar qualquer movimento.

    rumo: ritmo do corpo

    (centro, membros, arestas)

    *

    3/

    rumo: vocação

    (construção de um afeto-memória:
    memória do lugar,
    memória de onde se está)

    de um outro corpo:

    compõe uma lentidão. olha. essa paisagem informe, mata, gana. chão de terra batida, casa de pau-a-pique, onde estão máquinas? como compor uma memória? meus filhos. meus abrigos. as vacas mugem e me olham, eu as abraço.

    cura: gesto que acalenta (assim, com as mãos)

    abraço
    braços ao alto

    ação: pés correndo no chão (produzir vento, ritmo)

    descompasso: ao contrário do corpo em riste, aparece, apruma

    gesto: ritmo do corpo

    (centro, membros, arestas)

  • das muitas esquinas um rasgo; um arroubo um baile alegria

    nós fomos ricos nós fomos serelepes nós fomos turvos nós nos divertimos um bocado nós celebramos nós choramos mas tantas vezes e tantas horas sem saber um ensejo um caminho por onde ir um altiplano uma subida na esquina um cantinho aberto para ver o campo todo sorrindo a galera toda cantando um lugar ao menos sem partir o terreno o suor correndo a memória o desejo tanto sofrendo o amor eu amo derrete

    mijar ali atrás meu encanto vem ser feliz de novo eu disse ela disse gritaram era louco gritaram não dá mais gritaram sem condição alguém lembrou que podia ser diferente e a gente abriu abriu ao largo na história fizeram rodinha fizeram dançar até o chão fizemos abraços múltiplos não é um sonho é construção meu amigo não romantize não tô romantizando tô vivendo amor

    é partilha
    é múltiplo
    é uma torrente de danos que depois de tanta luta meu caro é isso agora não é perfeito é o que há é caminho é luta é disputa é jogo é jogo meu bem não se incendeie mais

    eu incendiei a praça vinte vezes vocês viram?

    eu compus manchas coloridas no chão eram azuis

    pisotearam mil vezes apagou

    o rastro ainda está ali

    na rua naquele beco onde sonhamos era beijo era sonho não

    na beira

    num lapso de segundo

    num cansaço extremo alegria nem sei

    nem por um instante duvido

    do saber

    deste mundo

    é vivo

    é corpo

    é junto

  • greve geral [e consentimento silvestre]

    há algo no consentimento do pulso que não deixa sentir a toda hora
    faz de revéses uma história
    contada a pulsações desconhecidas que um dinossauro antevê

    esse ano contado a dor e anéis é uma afável vindoura
    celebra com vinho o que arquivo se faz
    remexidos, todos eles
    a pingar pelo chão pintando as gazes feito hibisco

    cor
    celebro sozinha no quarto o que se faz coletivo
    lá embaixo, lá na sala
    cozinha que cheira até aqui e penso se
    haverá mundo
    ainda
    a colidir

    dar conhecimento prévio de
    greve geral
    corre lá fora
    corre aqui dentro e faz correria todo o entorno
    modos de

    arrumar a geladeira
    conservar a comida
    cozinhar junto

    modos de
    guardar as roupas
    enfileiradas ou em mistura
    separadas ou conjuntas
    de que modo de

    fúlvias maneiras evocam vulcões enquanto só quero subir uma encosta
    uma encosta somente, poderia ser o morro da urca, facinha
    eterno ensaio para aquelas maiores, que nunca vi
    mas sonho com elas todos os dias
    sonho com as montanhas gigantes enquanto vejo
    países dantescos, distantes e vindouros
    gelados, sim, pois vejo sol
    nos meus sonhos sempre há sol e névoa

    como em paranapiacaba
    em que subimos telhados e comemos hortelãs silvestres
    era baixinho
    escondido, quase ao acaso
    ruínas de casa, uma planta
    moramos na planta da casa
    tomada de gramíneas e pequenas ervas cheirosas
    anzóis

    colidir
    como beijo
    que há muito desconhece como se acessa aquela intensidade toda
    que em tempos moveu montes e depois e muito e montes de novo
    amor
    afáveis ligaduras
    amáveis coliduras
    de coligações
    e gestos
    ambição

    de construção conjunta coligada
    como consentir
    sem destruir a memória que a remexidos eclode
    cá, entre nós
    bem dentro da pele
    entre os campos de densidade e subversão

    cidade
    colidura
    vesti entre vezes e não se fiz de abstêmio
    quem viu
    o disco correr na vitrola
    senti tantas vozes partirem que agora já espero que partam
    a toda hora

  • hortíferas

    as celebrações que relegas ao outono
    ao inverno
    às hortas vorazes criaturas antigas
    do condomínio
    do chão

    cultivo de meias-portas
    altivos, saltitantes
    embriagados envoltos em colagens
    turvas, imensidões
    povoamentos silvestres

    familiares mezaninos
    cabides, abraços
    aqueles meninos já grandes
    as suas voltas
    e botas, e cabelos encaracolados

    já não colhem tão sossegos como
    ouvi, uma vez, estive lá
    ficção
    viagem fantástica conto de pandemia
    brechas
    saudosas

    já não sei se
    há caminho
    se quero inventar
    buracos
    no chão
    que não há

    entretanto está
    aqui, diante de mim

    fundamento, ligadura:

     
    um espectro

  • sobre pronomes

    se sou como me vejo

    e o mundo me vê
    rapidamente,
    classificando por padrões

    – aquele, ou aquela
    – (?)
    (gosto tanto mais da confusão)

    a/o

    e – vi o dia em que, sim, alguém
    (no que parece) me vê
    !

    família não
    professores, não muito
    invisíveis pronomes
    coloquei, eu falo, tá lá

    do nome
    ou pelo nome
    apesar do nome
    com o nome
    com meu nome
    (que me deram)
    eu sou?

  • eixo (rindo)

    esperar as horas do sossego
    lapidar o canto,
    não pensar no desatino

    não secar as lágrimas
    dançar rodopiar
    em zelo

    aquece
    sou eu mesmo que
    canto

    sou eu mesmo que
    me envolvo num abraço
    na cama

    o suscinto: delírio
    amargo ardor de antes
    já foi,

    esquece
    caminha
    vai embora

    (já fui)

    nessa composição celeste
    somos só nós mesmos a lançar
    num rasgo num só bocejo num vulto

    rápido morcego eu sim
    eu vim
    cá estamos

    rindo

  • estilhaço

    as máscaras se formam no infinito. não têm desenvoltura, são de uma dureza que só. solitárias florestas de nós mesmos; pequenas prisões que fazem abraços, corroem laços, voltam para tecer de novo. pequenos rumos de umas coisas assim tão belas, tão pequeninas, florzinhas a se espalhar no chão e descer ladeiras, e então tudo desmorona. só que nós, aqueles vincos distantes, estaremos já em outro chão, um chão de árvores, um chão sem fundo nem querelas.

    será de abismos composta a história, será de acasos fortuitos que não se sabem abraços, pois terão de aprender tudo de novo. terão de compor as estruturas, aprender a erguer tijolos, a revirar o solo e também a respeitar os seus tempos, os seus enlaces, as suas curvas. e não são simples as curvas, elas são no mínimo do tipo ‘cotovelo’, quer dizer, no mínimo muito inclinadas. milhões de dobrinhas a desvendar a cada movimento.

    e no entanto não existe cansaço, não será sem braços nem ação. se nos cansamos, iremos nos refazer de novo, após uma noite de canto e muitos pés que ritmicamente se revolvem em movimentos fluidos e circulares. sim, círculos e circuitos promovem regeneração de estruturas, ainda que elas mesmas circulares, sempre em curvas correndo em espirais, não apreensíveis posto que se movem e estão sempre a seguir.

    abraços, de que será feita a estrutura. gêneros, curvas, enlaces. ainda que turvas as memórias, ainda que retorcido o movimento, o contexto geral e toda sua dureza de cimento. cinismo aprendemos nas infâncias, o be-a-bá do mundo, para depois revolver-nos em desconstruções, risadas, todos aqueles absurdos que irão compreender mínimos aspectos e enfim a noção de que não há todo a ser visto, senão de outro modo. todos os nós compreendidos em estilhaço, e sim estilhaço, mas ainda curvas, curvas nos salvarão.

    e só nós mesmos, por entre as árvores para inventar costuras e desmembrar as cinzas, todas elas. em múltiplas partes e fragmentos, cientes de seus limites e asfaltos, ainda tecendo curvas sem chão.

  • horizonte

    ativar o corpo para remexer o que tanto paralisa. reorganização de práticas, adquirir novas trilhas e novos sustentos, é o que chamo de enviesar. olhar doutros modos, refazer maneiras, procurar.

    o que pulveriza por aí que vem em textos acordes almeja uma montanha, um monte, um percurso. é por ora um sopro, às vezes no vendaval. ainda acredito na potência da fala mas sobretudo da fala enquanto solfejo, em que nem toda a forma é apreendida e assim ela de certa forma se defende, não se diz de quê, da apreensão coletiva automática per se. da imediata conclusão. da voz que detona mas não se dá à escuta. e, também, a tudo que se refere a um modo de ler que a tudo já dá por compreendido, como se todas as referências fossem elas mesmas já conhecidas, e não se pudesse crer ou criar.

    outra coisa. obviamente que isso não é tudo. há uma beleza, por vezes, e uma beleza lancinante, algo agudo e inexprimível talvez, naquilo que criptografa. no canto do quadro que não podemos ver, na obra que não sabemos acessar, naquela pessoa que tanto nos instiga e fala de mundos desconhecidos ou que se sabem inventos, sustentáveis quiçá, outro chão.

    é fato que o mundo saturado de fala e de imagem, muito mais do que é possível uma pessoa absorver e decodificar – e é saliente observar, que por pura repetição e senso de participação são tantas as gentes que sim se habituam a tamanha quantidade, e tamanha qualidade nula que acaba por ecoar destes eixos – esse mundo me cala. provoca uma qualidade paralisante e uma espécie de asfixia não passageira, que em busca de sentido e conexão, começa a destinar-se ao ar ele mesmo, esse que não é nada puro mas espalha asfalto e carbono, combustão.

    e então só falo de combustão. observo a matéria de que são feitas as coisas, e isso inclui o meu corpo. começo a pensar sobre práticas cotidianas e as pratico a custo para que sejam reais, para que aconteçam, que não residam somente no discurso.

    por vezes acusam isto de gesto extremo, que à cidade tudo se converte, tudo se relativiza. diante do capital tudo se torna flexível, e a ele adentra. a loja mais barata é grande, pertence a um grande bilionário ou até a donos de um conglomerado, desses que são donos de quase tudo, muitas marcas. até da água. mas sim, a água é o primeiro elemento básico a servir à vida, e a vida serve ao dinheiro. para garantir isso devemos nos apropriar da água. para que nenhum corpo, vivo, possa escapar.

    um mundo sem volta. é o que dizem uns. pois que descubro que ainda há sim sementes de milho no brasil que escapam à monsanto, que são orgânicas, livres de alterações genéticas e pesticidas – aleluia – e as posso acessar. isso principalmente porque estão justo com aquelas pessoas que a muito custo as distribuem, e as buscam, às vezes viajam para reuni-las. participam da coisa mais bonita, que é o devir comunitário. é a salvaguarda da vida e do sossego, não sem luta. é a comunidade que fortalece. as vidas que se unem e só usam um mínimo do capital para sustento, e sim, participam, mas primeiro se dedicam a existir enquanto organismo, sim com alegria, encontros e coligações.

    almoços coletivos, orgânicos, em que cada um lava sua louça e todos se unem para alternar-se entre todas as tarefas, sem que haja empregados, relações trabalhistas, compra e venda e exploração. há o que chamam de comércio justo e solidário, comecei a lhe dar ouvidos, aprendo e vejo. é claro que ao iniciar esta fala corre-se o risco de romantizar, de crer que não haverá relações abusivas, divisões questionáveis de tarefas entre homem e mulher, o peso das tradições, as instituições da família e da propriedade.

    no intento da construção de mundos em que se queira habitar e em que respirar não seja um ato sôfrego, que se possa escolher destinos e inventar poéticas com alguma liberdade, é também a construção de um mundo que não esteja aprisionado pelo sustento. que possibilite a criação de asas próprias e que isso não seja uma mera expressão metafórica, tão desgastada e publicizada, nem que venha a ser uma substância comercial a gerar essa sessão de euforia tonal e fugaz, cuidadosamente gourmetizada, artificalizada e em suma, ineficaz.

    não existe autonomia que passe pela compra de sensações e de relações de sustento e de ganhos. é preciso cavar mais fundo.

    resisto à forma de protesto quase sempre por de novo me sentir tolhida na fala, me fazer também. zumbido na fala, fala demais. e então as polícias de estados absolutamente surdas e gravemente repetitivas continuam a tacar bombas a quem quer que fale, ou quem tenha aparência de, ou simplesmente a quem esteja vulnerável. lidar com o estado vulnerável em público, encontrar uma forma em que se acredite e estar sempre suscetível a ir mais longe no que atos produzem, atos que produzem barreiras. mas também abrem brechas. craquelê.