Essa cidade não te pertence mais. O prefeito mudou as regras, seu bairro ficou distante e há um plano multimilionário já em curso, que começa a mostrar suas garras e destruições. A lógica que vigora é a da substituição – do problema pela maquiagem, sustentada pela propaganda da prosperidade.
O clima de euforia com a perspectiva da vinda de pelo menos dois megaeventos à cidade do Rio de Janeiro – a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016 – tem motivado uma enorme especulação imobiliária, expulsando gradativamente os moradores da cidade para bairros cada vez mais distantes. Numa cidade já conhecida por suas alarmantes diferenças sociais, cujos pontos turísticos mais conhecidos se localizam na área entre a Zona Sul e o Centro, mesma região que concentra comunidades lá presentes há décadas, um projeto de revitalização deveria ter como prioridade o fornecimento de estrutura necessária para os moradores que nela vivem. Isso seria o mínimo. Os planos das parcerias público-privadas firmadas para tal revitalização do terreno, que trazem como seu maior expoente o projeto do Porto Maravilha – a revitalização da Zona Portuária do Rio de Janeiro – têm explicitamente como objetivo aumentar as atrações turísticas na cidade que já se encarrega de acumular todos os clichês brasileiros vendidos lá fora, tratando seus moradores como meros empecilhos para tal empreendimento. Para adivinhar quais os beneficiados, é só pensar nos empresários abastados de nomes mais conhecidos, que viabilizam os empreendimentos mediante a cessão de terras e facilidades pelo governo.
Remoções, desalojamentos, casas que amanhecem marcadas para serem removidas do dia para a noite tal como a marca nazista – mas é a Secretaria Municipal de Habitação! – são os mais alarmantes e evidentes efeitos colaterais previstos por essas reformas. Outras cidades do mundo passaram por processos semelhantes de reestruturação e obras de caráter permanente para abrigar as Olimpíadas, gerando impactos para a população. Mas o que sempre se esquece de levar em conta quando são exportados modelos bonitos e bem apresentados do exterior é o contexto local. Quais ganhos essas obras irão trazer para os moradores da Zona Portuária, por décadas abandonada e esperando receber atenção do Estado? Quando essa enfim chega, é para abrigar os novos usuários (mais que habitantes) da área, obviamente mais abastados financeiramente e muitas vezes visitantes de passagem, expulsando os antigos.
Se engana quem acredita que as remoções que vêm ocorrendo pela cidade se concentram nas ditas “áreas de risco” – ou uma casa fincada no topo do Morro da Providência há aproximadamente cem anos estava em área de risco, e só notaram agora? Não seria mais coerente reconhecer que as ameaças de remoção se direcionam a habitações indesejadas, por estarem na rota traçada pelo projeto de revitalização sem nenhuma participação da população? Cabe dizer ainda que, ao que os fatores indicam, aqueles que não forem expulsos por processos mais explícitos como esses, poderão o ser futuramente pela especulação imobiliária trazida com a euforia pela trasformações na cidade, que traz consigo a valorização do terreno.
Ao caminhar pela Av. Rodrigues Alves no último domingo, partindo da Praça Mauá em direção à rodoviária, o cenário era alegórico de tão discrepante: de um lado, em dois armazéns do Cais do Porto na altura do Pier Mauá acontecia a Art Rio – a primeira edição da feira internacional de arte do Rio de Janeiro, com seus estandes lotados entre turistas e possíveis compradores, alguns sentados em confortáveis sofás sorvendo espumante. Não é a primeira vez que um evento desse tipo acontece no local, por certo. Mas, em tempos em que a ocupação da antiga fábrica de chocolates Bhering por artistas que usam o espaço como seus ateliês é utilizada como parte da campanha do Porto Maravilha como pioneira na revitalização da área, a ocorrência da feira é simbólica, marcando talvez uma posição que certamente não todos os artistas ali presentes gostariam de ocupar.
A Av. Rodrigues Alves tem a visão do céu cortada pelo viaduto da Perimetral, que agora se tornará uma via subterrânea – reforma ainda ancorada prioritariamente no transporte rodoviário, praga da nossa modernidade local. Do outro lado dela, visitamos a ocupação Flor do Asfalto. Diferente da Bhering, eles se autodenominam um squat, no sentido do movimento global de ocupação de prédios abandonados, e são um grupo com uma agenda criativamente ativa nos campos cultural e político. O terreno, outrora da União, é parte das terras cedidas para as obras de revitalização da região. Os incomodantes que se mudem, é a posição do Estado. Não tem conversa.
Escrevo esse texto motivada pelos estudos iniciais feitos por algumas pessoas que têm se movido para tornar esses fatos conhecidos pela população. As mudanças pelas quais está passando a cidade afetam à grande maioria dos que aqui vivem, não são fatos isolados e muito menos distantes. Mesmo que o fossem, processos como esse têm efeitos profundos e demandam a participação dos que nela estão envolvidos: demandam diálogo, e não só festividades e campanhas publicitárias. Quem procura apartamento para alugar ou comprar sabe bem o que se passa, ou quem simplesmente é capaz de observar a alucinante quantidade de obras e as alterações em seu entorno.
O Laboratório de Cartografias Insurgentes, organizado pelo coletivo IP:// (Interface Pública), junto com vários outros coletivos, se encontra no momento em fase de “pré-lab”, com o evento maior agendado para o próximo final de semana, no Morro da Conceição. A proposta é dialogar com a população local e todos os interessados, expondo e problematizando essas mudanças, para discutir juntos alternativas, táticas, modos de fazer e significar, por meio de oficinas diversas. Fica o chamado.