horizonte

ativar o corpo para remexer o que tanto paralisa. reorganização de práticas, adquirir novas trilhas e novos sustentos, é o que chamo de enviesar. olhar doutros modos, refazer maneiras, procurar.

o que pulveriza por aí que vem em textos acordes almeja uma montanha, um monte, um percurso. é por ora um sopro, às vezes no vendaval. ainda acredito na potência da fala mas sobretudo da fala enquanto solfejo, em que nem toda a forma é apreendida e assim ela de certa forma se defende, não se diz de quê, da apreensão coletiva automática per se. da imediata conclusão. da voz que detona mas não se dá à escuta. e, também, a tudo que se refere a um modo de ler que a tudo já dá por compreendido, como se todas as referências fossem elas mesmas já conhecidas, e não se pudesse crer ou criar.

outra coisa. obviamente que isso não é tudo. há uma beleza, por vezes, e uma beleza lancinante, algo agudo e inexprimível talvez, naquilo que criptografa. no canto do quadro que não podemos ver, na obra que não sabemos acessar, naquela pessoa que tanto nos instiga e fala de mundos desconhecidos ou que se sabem inventos, sustentáveis quiçá, outro chão.

é fato que o mundo saturado de fala e de imagem, muito mais do que é possível uma pessoa absorver e decodificar – e é saliente observar, que por pura repetição e senso de participação são tantas as gentes que sim se habituam a tamanha quantidade, e tamanha qualidade nula que acaba por ecoar destes eixos – esse mundo me cala. provoca uma qualidade paralisante e uma espécie de asfixia não passageira, que em busca de sentido e conexão, começa a destinar-se ao ar ele mesmo, esse que não é nada puro mas espalha asfalto e carbono, combustão.

e então só falo de combustão. observo a matéria de que são feitas as coisas, e isso inclui o meu corpo. começo a pensar sobre práticas cotidianas e as pratico a custo para que sejam reais, para que aconteçam, que não residam somente no discurso.

por vezes acusam isto de gesto extremo, que à cidade tudo se converte, tudo se relativiza. diante do capital tudo se torna flexível, e a ele adentra. a loja mais barata é grande, pertence a um grande bilionário ou até a donos de um conglomerado, desses que são donos de quase tudo, muitas marcas. até da água. mas sim, a água é o primeiro elemento básico a servir à vida, e a vida serve ao dinheiro. para garantir isso devemos nos apropriar da água. para que nenhum corpo, vivo, possa escapar.

um mundo sem volta. é o que dizem uns. pois que descubro que ainda há sim sementes de milho no brasil que escapam à monsanto, que são orgânicas, livres de alterações genéticas e pesticidas – aleluia – e as posso acessar. isso principalmente porque estão justo com aquelas pessoas que a muito custo as distribuem, e as buscam, às vezes viajam para reuni-las. participam da coisa mais bonita, que é o devir comunitário. é a salvaguarda da vida e do sossego, não sem luta. é a comunidade que fortalece. as vidas que se unem e só usam um mínimo do capital para sustento, e sim, participam, mas primeiro se dedicam a existir enquanto organismo, sim com alegria, encontros e coligações.

almoços coletivos, orgânicos, em que cada um lava sua louça e todos se unem para alternar-se entre todas as tarefas, sem que haja empregados, relações trabalhistas, compra e venda e exploração. há o que chamam de comércio justo e solidário, comecei a lhe dar ouvidos, aprendo e vejo. é claro que ao iniciar esta fala corre-se o risco de romantizar, de crer que não haverá relações abusivas, divisões questionáveis de tarefas entre homem e mulher, o peso das tradições, as instituições da família e da propriedade.

no intento da construção de mundos em que se queira habitar e em que respirar não seja um ato sôfrego, que se possa escolher destinos e inventar poéticas com alguma liberdade, é também a construção de um mundo que não esteja aprisionado pelo sustento. que possibilite a criação de asas próprias e que isso não seja uma mera expressão metafórica, tão desgastada e publicizada, nem que venha a ser uma substância comercial a gerar essa sessão de euforia tonal e fugaz, cuidadosamente gourmetizada, artificalizada e em suma, ineficaz.

não existe autonomia que passe pela compra de sensações e de relações de sustento e de ganhos. é preciso cavar mais fundo.

resisto à forma de protesto quase sempre por de novo me sentir tolhida na fala, me fazer também. zumbido na fala, fala demais. e então as polícias de estados absolutamente surdas e gravemente repetitivas continuam a tacar bombas a quem quer que fale, ou quem tenha aparência de, ou simplesmente a quem esteja vulnerável. lidar com o estado vulnerável em público, encontrar uma forma em que se acredite e estar sempre suscetível a ir mais longe no que atos produzem, atos que produzem barreiras. mas também abrem brechas. craquelê.