por Inês Nin
para Festival Dança Em Trânsito, Atelier Escrita sobre Dança, 2022
Em 2022, o festival itinerante Dança em Trânsito chega à sua vigésima edição, circulando por diversas cidades do Brasil e uma do exterior. Neste ano, a Vitrine Brasileira de Dança Contemporânea ocupa quase integralmente a programação do “Circuito 3”, que ocorre entre os dias 3 e 7 de agosto, no Rio de Janeiro. E, se a dança está em trânsito, o público também transita pelos diferentes espaços nos quais ela acontece.
Situado no prédio da antiga TV Manchete, na Glória, e reinaugurado em 2019, o Teatro Prudential – Sala Adolpho Bloch, projetado por Oscar Niemeyer e com paisagismo de Burle Marx, traz um palco externo, ambiente ventilado de caráter mais livre, que se permite atravessar pelo céu, pela rua. Do lado de dentro, o teatro clássico, de 359 lugares, e um palco italiano de 140m² de estrutura modernizada, hermeticamente fechado. As apresentações do festival se dividem, ora ocupando o palco externo, ora o teatro. Há, ainda, no último dia, apresentações realizadas na rua, em frente ao Museu do Amanhã, na Praça Mauá, recanto histórico e recentemente revitalizado da cidade. Todos os espetáculos convivem, assim, de maneira ou outra com uma bagagem histórica de ressignificação dos espaços, em constante movimento.
Da diversidade apresentada nos trabalhos, chama a atenção um expressivo número de solos, muitos deles masculinos, criados em tempos de isolamento social provocado pela pandemia da COVID-19. Se aproximando da performance, no palco externo do dia 4 se destaca “Blanc”, de Cie Arrangement Provisoire / Vania Vaneau, deixando o público sem ar. Emoções: do sorriso nasce o choro que nasce o afeto. Rotatória, bobina, movimentos repetitivos, circulares. Os adereços espalhados pelo palco são vestidos um a um, evocando rituais, como se fosse possível simultaneamente vestir todas as culturas do mundo. E então despir-se delas, como uma lagarta que abandona seu casulo de borboleta.
“Ubirajara, uma cantoria”, de Soraya Ravenle, no palco externo, surpreende com uma apresentação que beira a stand-up comedy, em que tudo é aparentemente realizado pela artista. Eis que ela, após cânticos, contações de histórias de pandemia e danças, apresenta sua equipe, apontando para pontos vazios no local. Trata-se de uma banda invisível, mas muito presente. A solidão compartilhada. “Registro vivo de um corpo após experienciar o isolamento” é a forma como se introduz “Couraça”, de Leônidas Portella, no catálogo do evento. Caracterizado com chifres, pintura e lantejoulas na pele, o bailarino incorpora uma versão contemporânea de Bumba-meu-boi, em referência à vertente maranhense da tradição popular. Acompanhado de um cortejo com percussão ao vivo, vem abrindo caminhos, propondo ao público atravessar os espaços e seguir junto. Assim, vai-se do externo ao interno, para ter o com o boi e vê-lo brilhar com suas danças. O teatro já não é mais clássico.
A sisudez da tradição também é cutucada da maneira sagaz pela Clarin Cia de Dança, que abre sua eletrizante apresentação de “Ou 9 ou 80” com Beethoven, no canto esquerdo do palco, dançado à moda do “quadradinho”, como é conhecido o movimento orquestrado dos glúteos na cultura do funk carioca. Das margens para o centro, naquele momento uma surpresa, seguida de outras, e outras. Se o passinho predomina, há um rompante de vogue, da cultura queer ballroom, e um misto de danças urbanas. Questões de violência e diversidade de gênero, de liberdade dos corpos, ali são problematizadas da forma mais explícita e contundente, costuradas junto ao espetáculo. Este que é dançado com excelência, público e os próprios dançarinos vibrando. Cada novo gesto provoca um acontecimento, do qual todos saem arrebatados.
A temática da violência urbana também está presente em apresentações de outras cias, como em “Vertigem”, da Cia Gente, na qual os bailarinos dançam com camisas de escola pública do Rio de Janeiro, uma delas manchada de sangue, remetendo a uma das muitas crianças negras mortas em decorrência da violência policial. Já a discussão sobre gênero ressurge, meio do nada e de maneira empobrecida, equivocada, em “O Vestido”, de Rosa Antuña, um ponto baixo do festival.
Não deve passar despercebido o espetáculo “Mão”, do coletivo homônimo, realizada no “palco” da Praça Mauá. “Translação da casa pela paisagem”, informa o texto sobre o trabalho, a respeito de uma apresentação inclassificável, em que o público, descontraído, composto de famílias, crianças e cães, assiste à montagem de uma estrutura/escultura que oscila entre o lúdico e o laboral, a partir zero. Obras, lona de proteção e gazes coloridos, nada seria mais familiar ao local.
As rotatórias retornam com força e continuamente no forte espetáculo de encerramento, “Set of Sets”, de GN, MC Guy Nader e Maria Campos, unindo dança contemporânea e técnicas acrobáticas a uma sonorização com bateria e sons eletrônicos ao vivo. O teatro é tomado por giros e alternâncias que não parecem ter fim, como fossem de aviões fazendo piruetas no ar. Fôlego, densidade. O tempo é um continuum. Ou, como diz Daniel Calvet do Ateliê do Gesto num alumbramento em “Dança Inacabada”: “a dança não acaba”.