versão original do artigo publicado na revista overmundo nº1, sem cortes
Como se constrói a partir de uma torrente de ideias, invenção? Fazer um filme pode partir da pureza de uma ideia banal; um lapso de estória capaz de carregar imagens e sons que, orquestrados, funcionem em conjunto. Ou pode ser também uma obra construída durante anos anos a fio, detalhada, narrativa, com estruturas. Seja o que for a reger os minutos da empreitada, é certo que os modos de fazer não só são múltiplos como possíveis, muitos deles. E que quando se pretende abarcar um contexto, ou compreender o que se passa em determinado tempo, em determinadas áreas que têm em comum alguma situação, é bom que se considere os caminhos abertos e as novas soluções que vão se encontrando e se cruzando.
Ao falarmos de cinema, em alguns textos, críticas, rememórias e, principalmente, em debates e conversas, é reconhecida uma certa trajetória que vem se criando nos últimos anos em diversas instâncias no Brasil. Já faz parte da história que só tocamos com alguma distância, parcimoniosamente e por meio de resquícios, os tempos em que filmes necessariamente eram peças caras a serem feitas vagarosamente, a duras custas e mediante diversas parcerias. Um intervalo brusco que interrompeu quase que completamente a produção brasileira, durante a era Collor e que culminou com o fechamento da Embrafilme, balançou severamente o contexto local, mas já podemos falar em mais de uma década após o “cinema da retomada”.
E talvez tenha sido só nos anos mais recentes que começaram a aparecer filmes capazes de destoar bastante das referências mais evidentes do que seria uma tradição nacional. Ainda que indiscutivelmente brasileiros, mesclando referências de um mundo globalizado às quais já nos acostumamos com estórias e modos de ser e fazer tipicamente locais, os filmes não fazem força para pertencerem a este ou àquele lugar; muito menos para reproduzir complexas fórmulas de produção ao modo industrial como outrora.
As facilidades de produzir e criar, vindas com as novas tecnologias – câmeras de vídeo digitais em alta resolução, que se aproximam em muito à qualidade da película em 35mm e que superam infinitamente em facilidade e custos de produção; câmeras de celular e diversas outras para os mais variados gostos, resoluções e texturas emergiram ao mesmo tempo em que a internet despontou como fonte primeira para o acesso a um conteúdo antes restrito a festivais, locadoras e, principalmente, à remessa que o amigo do amigo trouxe da sua última viagem ao exterior. Hoje em dia já é chavão falar de tudo isso, mas ao mesmo tempo o resgate parece indispensável quando se quer entender em que contexto vivemos e como se tornam possíveis certas experimentações e olhares. Sim, porque devido a essa enorme difusão e troca de conteúdo possibilitada pela internet, um cultivo de filmes e diretores de linguagens mais diversas e oriundos de partes do mundo menos participantes da grande mídia pôde ter lugar.
Marcelo Ikeda fala, não sem razão, em seu recém-lançado livro (junto a Dellani Lima) “Cinema de garagem – um inventário afetivo sobre o cinema jovem brasileiro do século XXI”, que atualmente o Ceará pode estar mais próximo de Belo Horizonte, das Filipinas ou de Taiwan que da Bahia, quando se trata de cinema. Novos cruzamentos de ideias e inspirações acontecem, portanto, a partir desse meio que reúne a linguagem e as características de tantos outros – a internet – tanto em termos de comunicação interpessoal quanto de difusão e acesso, propriamente.
Não se pode esquecer, no entanto, da batalha que se trava nesse campo, de um lado estando o direito ao livre acesso à informação e, do outro, os interesses das grandes indústrias decadentes, que se sentem injustiçadas pelas trocas atuais e, principalmente, pelas perspectivas que o futuro lhes reserva. Essa celebração do acesso ao conhecimento não pode, infelizmente, ainda, vir desgarrada de uma militância política pela manutenção e ampliação dos modos de uso e da própria existência do espaço da rede como ele se apresenta no momento.
E quanto à estética, a que maravilhas essas mudanças nos abrem? Pois não são só elas, as tecnologias, mas todo um contexto em torno, gerado por diversas mudanças conjunturais, que torna viáveis empreitadas com praticamente nenhum dinheiro, e que muitas vezes não esperam mais receber qualquer tipo de incentivo governamental ou de empresas. Ainda que, como toda novidade, essas formas emergentes de fazer – que se refletem na própria imagem – ainda não demonstrem inteiramente sua sustentabilidade e não forneçam todas as respostas para o futuro, esse futuro se constrói por meio de presentes um tanto entusiasmantes, desviantes e promissores.
É típico das estruturas canônicas e estabelecidas não querer abarcar pequenas ou grandes incertezas. Como diz Cezar Migliorin em seu crucial ensaio intitulado “O cinema pós-industrial”, publicado na revista eletrônica Cinética e em diversos outros meios pela rede, faz parte da lógica capitalista da grande indústria a estrutura de produção hierárquica, extensa e planejada em seus mínimos pormenores, em que qualquer surpresa ou variação representa um risco ou mesmo uma anomalidade, por não serem suas consequências passíveis de prever.
Nesse ambiente que floresce talvez mais fortemente desde os filmes de Karim Aïnouz, primeiro “Madame Satã” e depois “Um Céu de Suely”, junto ao grande boom de documentários, assistimos, faz pouquíssimo tempo, à emergência de pequenos grupos que começam a produzir artesanalmente seus filmes, e não somente curtas, mas – e a surpresa – também longas! Antes deles, é importante lembrar, o cinema nacional vinha se fortalecendo por outros caminhos, em grande parte pela crítica, que formou sólidos grupos atuantes durante vários anos através de revistas eletrônicas e também de cineclubes.
Faz sentido pensar que essa movimentação vinda de muitos lados – universidades, cineclubes, festivais, revistas de crítica e uma crescente produção de curta-metragens, em grande parte identificada com realizadores que assinam sozinhos ou em duplas – possa ter motivado a criação de grupos ou coletivos que produzem de forma independente e colaborativa. Não busco aqui qualquer sentido lógico, mas uma maneira de pensar frente ao contexto que se delineia.
É comum, cada vez mais, também nas artes plásticas, hoje chamadas visuais ou simplesmente artes, que as pessoas procurem se organizar através de coletivos para produzir trabalhos muitas vezes mais anárquicos ou somente diferentes de seus projetos pessoais. Ao mesmo tempo, nesse sentido, também se mantém no campo das artes cada vez mais forte um foco na figura do autor destacado individualmente como criador, assinando as obras de maneira que seu nome frequentemente acabe ganhando mais visibilidade que o próprio trabalho. Não sei se isso pode ser chamado de contrafluxo ou somente uma evidência de que ali pode haver um acirramento de uma lógica anterior, por um lado, e de outro uma inspiração de ordem mais diversa e particular, focada em pequenos grupos e ideias que se relacionam não por questões locais ou por fazerem parte desse ou daquele movimento, mas por motivos puramente estéticos ou políticos num sentido muito mais amplo – em escala global, ainda que em certa instância horizontalizada.
Gostaríamos de falar aqui de um grupo em especial, que tem chamado a atenção em alguns festivais e mostras pelo Brasil e no exterior por sua próspera produção nos anos recentes, o Alumbramento. São cinco longas finalizados – sendo um de fato uma reunião de curtas em torno de um tema, chamado “Praia do Futuro” – e 29 curtas, feitos entre 2007 e 2011. A produtora, grupo ou coletivo Alumbramento teve origem na primeira turma do extinto projeto Escola do Audiovisual, formação com duração de dois anos promovida pela Prefeitura de Fortaleza a partir do ano de 2006, na época em que Beatriz Furtado era Secretária de Cultura. O curso, pensado em formato inovador, com professores diferentes trazidos a cada semana de várias partes do país, teve problemas de verbas logo no começo de 2007. Em tempos em que não havia ainda o curso de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Ceará, iniciado em 2010, a ameaça de interrupção motivou uma ocupação feita pelos alunos durante duas semanas no local onde eram ministradas as aulas, de maneira a garantir que as mesmas continuariam.
Findo o curso, foi formada a Alumbramento. O que de mais importante notamos naquela que mais tarde viria a se tornar uma produtora de fato, é a aparente ausência de hierarquia entre seus membros, que chamam a si mesmos de “família” e trabalham frequentemente uns nos filmes dos outros, alternando funções de acordo com o projeto. Outros grupos têm surgido pondo em prática formatos parecidos, como a Teia, baseada em Belo Horizonte, ou até a Duas Mariola, de Felipe Bragança e Marina Meliande, do Rio de Janeiro, ainda que nesta última o grupo de amigos – somente 6, mais alguns parceiros – mantenha em geral mais ou menos fixas as funções de cada um dentro dos filmes.
Os filmes da Alumbramento são tão diversos quanto podem ser as ideias de seus membros; não existe unidade organizada que determine uma orientação estética específica para os filmes. Mesmo assim, como todo grupo de amigos que se reúne em torno de ideias e vontades comuns, é possível notar semelhanças, ainda que porventura vagas, entre um filme ou outro, além de diálogos estabelecidos com os trabalhos de outros cineastas. Estes têm em comum frequentemente o modo simples de produzir, o experimentar, além de filmes e diretores de referência.
É possível citar alguns filmes que ganharam destaque recentemente, sobre os quais os holofotes incidem mais ou menos junto a um barulho alavancado quase em toda sua totalidade dentro do campo do cinema: primeiro pelo Festival de Tiradentes, ocorrido no fim de janeiro desse ano, e mais tarde na Mostra do Filme Livre, que se extendeu ao longo do mês de março. De lá pra cá, os espaços têm sido abertos cada vez mais para uma crescente politização dos debates em torno da cultura, suas formas de produção e acesso, em grande parte motivada pelas mudanças no cenário global da cultura digital e pelas alterações políticas pelas quais vem passando o Brasil nesse momento, com a mudança de governo.
“Estrada para Ythaca”, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti (Alumbramento); Desassossego – Filme das Maravilhas”, obra coletiva composta de fragmentos com diversos diretores, em projeto concebido por Felipe Bragança e Marina Meliande (Duas Mariola, Teia, Blum Filmes, Alumbramento, Filmes do Caixote, Karim Aïnouz, Gustavo Bragança, Arissas Multimídia); “O Céu Sobre os Ombros”, de Sérgio Borges (Teia); “Os Monstros”, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti (Alumbramento), dentre outros, compõe esse rol bem diverso de filmes que tem ganhado atenção.
Não se pode dizer que os trabalhos abordem, diretamente, qualquer questão política evidente. Não são nem de perto panfletários e sequer tratam de assuntos grandiosamente históricos – muito pelo contrário. Há uma fala que resume um dos caminhos tomados, retirada do catálogo de um cineclube que exibia curtas de diretores de origens semelhantes (Luisa Marques, Leonardo Amaral e Sérgio Borges, de novo):
Deve haver algo de sintomático de um estado das coisas nesses filmes que abandonam a construção de grandes narrativas, vontades de simbologia e preferem se recolher ao mínimo, à narração do quintal ao invés do país, nessas sinopses de uma única linha. O mundo é possível demais, múltiplo demais. Ideologias não servem, políticas não satisfazem, teorias e instituições não dão conta. Diante disso, resta se recolher às suas certezas mais acessíveis: eu, minha casa, minha rua, meus amigos e parentes. Diante da estafa de as mãos poderem abraçar muitos quilômetros, agarra-se o que se tem à vista e a história a ser contada é a sua própria, e os fatos são reles e quase cinzas. Um cinema que, por trás de toda a ternura de suas imagens, revela um certo desalento contemporâneo: as câmeras tentam agarrar cada pequeno momento, como se, diante de tudo, só nos restasse nos abraçar, silenciosamente. (Affonso Uchoa, Cineclube Curta Circuito, BH, junho de 2010)
Ofuscando a melancolia impressa nessas palavras, Felipe Bragança surge, em dois textos publicados recentemente – “Óvnis, fantasmas e cinema”, O Globo, Caderno Prosa & Verso, 26 de junho de 2010 e “Meu último texto de cinema”, que aparece encurtado na versão online do mesmo caderno, em 12 de março de 2011 – defendendo um escopo bem maior de filmes possíveis que começam a existir e ganhar espaço.
De fato, se o texto de Uchoa procurava nortear a presença dos três filmes, juntos, no cineclube, ele também aponta para uma variação possível no campo da narrativa num sentido mais amplo. A imagem que sai por aí à procura, mas que, por caminhos obscuramente bonitos consegue apresentar um mundo particular àquele que assiste, mesmo que esse mundo apareça esquisito, incerto, contendo rasgos muitas vezes incorporados à imagem como parte dos arranhões inevitáveis a qualquer tomada de riscos. As palavras de Uchoa me recordam o entusiasmo transmitido pelas palavras de Deleuze quando falava do cinema de Godard e de outros nos 60, que corajosamente se dignificavam a buscar, em caminhos nunca dantes trilhados, sentidos outros para a imagem que então construíam.
Bragança, por sua vez, aponta justamente para estranhezas: ao invés de procurarmos um cinema coeso, de podermos falar em “cinema brasileiro” querendo compreendê-lo em sua integridade, ou ainda de cobrarmos dos filmes que atendam às nossas expectativas de olhares viciados, podemos procurar ver as exuberâncias errantes que vão começando a emergir, ousadas e imperfeitas, mas belas! E de lugares que nos são próximos, mesmo cheias de desafios a serem trilhados.
Portanto, é digno que sejam reconhecidos esses caminhos experimentais, trilhados ora com mais ou menos dúvidas ou certezas, mas propondo-se a lançar-se em novas aventuras “monstruosas” o quanto puderem ser. O modo de fazer contamina os filmes, que por sua vez são contaminados pelo terreno em volta, pelas trocas entre amigos, festivais e demais festividades – não sem seriedade, não sem zelo. Mas a cautela excessiva, ou, pior, a crítica que poda mais que estimula à criação, buscando os filmes “certos”, efeitos precisos e cobrando até mesmo um distanciamento histórico para que se possa falar do que vê em volta… Limita mais do que expande, cobrando contenção.
É louvável que se procure reconhecer os próprios pés, percorrer os próprios caminhos e encontrar confluências, formando redes que possam se diferenciar de suas antecessoras. Em suma, arriscar, gerando significâncias. Sem o risco, e sem agarrar as oportunidades conquistadas em um cenário emergente, corre-se o risco de virar cinza. E nem pó: cimento, que engessa a terra fértil por baixo dos pés.