entrevista com beth martins, da intrépida trupe, publicada no overmundo, pouco depois do festival tangolomango. rio de janeiro, 2011
Em novembro desse ano aconteceu o Tangolomango – festival da diversidade cultural, nas cidades Rio de Janeiro e Buenos Aires. Comemorando 10 anos de atividades, o Tangolomango resolveu inovar em 2011, dando início a um ciclo de eventos que ocorrerão simultaneamente em uma capital brasileira e outra da América Latina, alternando as cidades onde acontecem a cada ano.
Tangolomango é muito mais do que o espetáculo de um só dia, que acontece (ou aconteceu), no caso do Rio de Janeiro, no Circo Voador. É um espaço de intensas trocas entre grupos de dança, circo e música, que se propõem a trabalhar juntos durante as datas que antecedem imediatamente o festival, para criar uma grande e diversificada apresentação.
Nesse contexto, o Overmundo já soma vários anos de parceria, seja na cobertura do evento, seja na feitura do catálogo e entrevistas, como nesse ano, agregando redes pelo Facebook e fazendo as entrevistas lá mesmo.
Durante a correria louca que foi produzir esse material, possibilitando trocas muito prazerosas e conhecendo grupos brilhantes que iriam participar, a única entrevista “analógica” que acabei fazendo foi com a Beth Martins, da Intrépida Trupe. A proximidade ajudou: o escritório do Overmundo fica a poucos passos da Fundição Progresso, espaço no qual a Intrépida ensaia já fazem nem sei quantos anos.
Eu era pequena quando comecei a acompanhar a Trupe, nos idos tempos em que morava em Niterói, e, mais tarde, ainda na escola primária, fui encontrar no Rio de Janeiro uma aula de acrobacia entre as atividades extracurriculares da escola! Tenho saudades do trapézio até hoje, me recordo de alguns movimentos, como o salto leão (acrobacia de solo), e na época eu era doida pra misturar isso com ginástica olímpica. Mas não sabia fazer parada de mão.
Por isso tudo, fiquei muito feliz de poder fazer essa entrevista pessoalmente. Nem deu tempo de falar para a Beth da relação afetiva que eu guardava com o grupo, em memórias, e sempre acompanhando os espetáculos que eles vêm fazendo, incansáveis. Sonhos de Einstein, relativamente recente, trata do sonho antigo que tem o ser humano de voar, e por isso pode parecer comum, mas é muito belo. Hoje, acho que me desperta mais interesse o uso de cordas, escadas e outros apetrechos que estão em algum lugar entre o alpinismo, o circo e, vagamente, aqueles brinquedos de subir de criança. E em muitas práticas. A infância está sempre ali em algum lugar – e eu digo aquela que ninguém devia nunca abandonar. De querer subir em coisas e dar piruetas, dançar.
Como foi feita em voz, registrada com gravador (digital), transcrevi a entrevista e editei procurando manter ao máximo a fidelidade aos modos de fala. Não é a primeira vez que faço um trabalho de transcrição, mas nesse pude ter a liberdade de manter todas as reticências que compõem uma fala, quando o pensamento procura uma resposta e ela vem em diversas frentes, semifalas que aos poucos vão constituindo uma linha de raciocínio. Às vezes ela se perde, ou se lemos pensando no falar – e sou muito grata a Guimarães Rosa por registrar com tamanha minúcia os hábitos e criações de fala de grupos específicos, pessoas – acabamos por entender o todo, e essas buscas feitas pelo pensamento. É construção.
Peço que não relevem o delay com que chega esse material na íntegra ao Overmundo. Um resumo bem resumido das ideias está no site do Tangolomango, junto aos textos que produzimos para os outros grupos. As entrevistas eram preferencialmente feitas pelo Facebook como uma forma experimental de promover a interação entre os entrevistados, e quem mais quisesse aparecer e participar.
Exclusiva, portanto, e não menos reflexiva, da entrevista na Fundição resultaram essas poucas palavras que troquei com a Beth Martins nos minutos antes do ensaio da equipe jovem da Intrépida. A maior parte das apresentações que ela cita já são passado, ainda que recente, como o próprio Tangolomango. Sobre como foi o festival, aqui no Rio de Janeiro e em Buenos Aires, vocês podem ler no site do Tangolomango – ou buscando diretamente pela tag ‘2011’. As outras palavras, sobre a trajetória da Intrépida Trupe, que comemora 25 anos em 2011, suas diversas atividades, modos de fazer, práticas, países latino-americanos, circo novo e circo tradicional, estão abaixo. Leiam com carinho e empolgação!
ENTREVISTA COM BETH MARTINS DA INTRÉPIDA TRUPE || TANGOLOMANGO 2011
concedida a Inês Nin, Overmundo, em 31/10/2011
Quais são as suas expectativas em relação ao Tangolomango? O que você já tinha ouvido falar antes e o que espera dessa troca?
Bom, eu ouvia sempre esse nome Tangolomango, que era um encontro de grupos, mas nunca tinha participado. E aí, com o contato que o Tangolomango fez com a gente esse ano, uma das coisas que eu me animei é que a pessoa que vai dirigir [Ernesto Piccolo, diretor artístico] é uma pessoa com quem eu já trabalhei muitas vezes e de quem gosto muito. Então, foi um pouco em função desse lado afetivo… Porque é uma proposta de 3 dias de imersão, e para os jovens com quem estou trabalhando acho super importante esse contato.
Na Intrépida, há 15 anos a gente faz um trabalho de formação. E um dos fatos que fez com que a Intrépida Trupe sobrevivesse por 25 anos é que a gente sempre foi muito aberto. Eu não digo que tem uma Intrépida – são muitas intrépidas que foram Intrépida nesses 25 anos. E há 15 anos a gente forma gente. Tem muitos no nosso elenco que chegaram com uma base de dança, de teatro, e adquiriram coisas de circo com a gente. Ou que toda a formação de dança, teatro e circo foi feita aqui no nosso espaço. Então, tudo o que é possibilidade de intercâmbio, de troca, sempre nos atraiu muito. Trabalhamos com essas três linguagens. E, pelo que eu entendi, o Tangolomango também abraça as linguagens cênicas de uma forma mais aberta. Assim, a minha expectativa é que seja um ótimo encontro, uma ótima troca, e que a gente possa aprender coisas, ensinar coisas, e descobrir coisas novas nesse encontro. Acho super legal.
O fato de existir agora um foco nesse intercâmbio latino-americano considero muito interessante. Porque nós temos uma riqueza cultural muito grande na América do Sul, na América Central, e a gente desconhece. Muitas vezes as nossas referências são europeias e norte-americanas. Portanto, eu dou um voto de louvor e admiro uma iniciativa que priorize essa troca entre países tão próximos e tão ricos culturalmente.
O que você poderia falar desses 25 anos da Intrépida? Existem atividades comemorativas? Você já disse que foram muitas Intrépidas ao longo desse tempo…
É, foram muitas Intrépidas e eu tenho o privilégio de estar desde a fundação. Desse modo, eu sou de certa forma uma guardiã, uma dinossaura dentro dessa história.
Vinte e cinco anos na vida de um grupo são muitos anos na vida de uma pessoa. É muito intenso, são muitas trocas. A dinâmica de grupo é muito rica, então são muitos anos. O Eugênio Barba fala isso, que 20 anos na vida de um grupo são 60 na vida de uma pessoa. Então, a gente já está com 70, quase 80 anos. E eu me sinto privilegiada porque tive a oportunidade de criar essa história junto com vários artistas, que continuam aí no mercado. Artistas maravilhosos, como o Gringo Cardia, Dani Lima, Alberto Magalhães dos Brothers, a Debinha Colker (Deborah Colker), que trabalhou com a gente coreografando, no começo…
E eu sei muito da história, além de vir trabalhando também nessa área de formação fortemente junto com a Vanda [Jacques]… Nós duas fomos as únicas a permanecer durante todos esses anos. É uma alegria podermos chegar nessa idade e comemorar… E estar com um elenco jovem.
Quando começamos a trabalhar com esse grupo, em 2009, eles tinham 15, 16 anos… entre 16 e 20 e poucos anos, hoje eles estão com 18 a 25. Começamos montando repertório dos anos 80 que havíamos criado, coisas lindas e que esse público de agora conhece pouco. E acabamos fazendo um espetáculo com eles que fez muito sucesso, chamado Preciosa Idade. Porque é uma idade preciosa esse momento de virada da adolescência para a vida adulta. Agora estamos muito felizes, por estarmos lidando com um processo de criação em um trabalho totalmente novo.
Em fins de novembro e começo de dezembro, faremos no Arpoador três finais de semana na Praça Garota de Ipanema, com remontagem de repertório. São outros números que eles ainda não experimentaram no corpo, outros que já experimentaram. Além disso, continuamos trabalhando nos ensaios o novo trabalho, também em comemoração dos 25 anos, que deve estrear ano que vem [2012], em abril ou maio. Talvez aqui no nosso palco, talvez no Teatro Carlos Gomes. São alegrias.
Temos também outro elenco, formado por pessoas mais velhas, que está na Europa, no festival Europalia, representando o Brasil na área de circo. Vamos fazer dois espetáculos em Bruxelas. Nos deixa muito alegres ter várias frentes em movimento como agora. Uma de formação, um elenco jovem, outro mais maduro. E, de forma menos intensa mas sempre presente, atuamos e continuamos a atuar em projetos sociais que incluem o circo. Fomos pioneiros nessa linguagem.
Começamos com a Intrépida tem uns… minha filha tem 18 anos, eu estava grávida dela… 19, 20 anos atrás a gente começou. O Betinho do Viva Rio chamou a gente para abordar crianças na rua, e isso gerou vários projetos que trabalham com jovens em situação de risco com o circo. Temos um vínculo com vários desses projetos, no nosso elenco tem alguns meninos que foram desses projetos, então estão trabalhando com a gente, também… Na parte técnica também… É uma alegria comemorar 25 anos e ver tantos frutos, o trabalho ampliado em várias frentes e ter uma perspectiva de futuro. No mínimo, mais 25 anos, espero. A galera jovem aí seguindo, continuando a escola, a formação.. é isso.
Você dirige o grupo desde o começo? Ou teve uma trajetória dentro dele?
Na Intrépida a gente sempre foi meio múltiplo. Então, quando começamos… E essa coisa também de ser um grupo que… Hoje você vê muitas companhias que fazem uma seleção do elenco, baseada nas técnicas de dança, nas técnicas de circo. No nosso caso, sempre tivemos várias áreas trabalhando juntas. Tinha um gordinho que não pulava nada, não se pendurava, mas era muito engraçado… era um palhaço, entendeu? E tinha um outro que desenhava muito bem e fazia mil coisas lindas, então era o cara que fazia os cartazes e figurinos. É um grupo que sempre respeitou a diferença como um ponto de riqueza. É por isso, acredito, que a linguagem do grupo sempre foi muito impactante, tanto no sentido visual quanto do humor, da irreverência. No lírico… no poético… Sempre tivemos isso da singularidade de cada um, da diversidade do elenco. Sempre fizemos de tudo um pouco.
No começo, a gente montava, costurava os trapézios, se dirigia, fazia trilha, bolava luz… Foi uma coisa que fomos fazendo, e isso é algo típico dos anos 80. A minha história é um pouco assim: eu dançava com a Graciela Figueroa, Coringa, que foi um grupo pioneiro de dança contemporânea aqui. Ela misturava acrobacia, tai chi, capoeira, dança clássica, neoclássica, moderna… E eu desde o começo tinha um olhar sobre as organizações espacial e coreográfica da coisa. Fui me especializando nos aéreos, uma vez que eu já dançava no chão. Me interessavam o trapézio, cordas… coreografia. E aos poucos fui assumindo a direção de um trabalho ou outro. Hoje, estou mais voltada para a formação, a direção e as coreografias do que estou em cena. Mas ainda faço as minhas brincadeiras pendurada de vez em quando. Ainda me sinto com esse gás de às vezes aparecer e fazer alguma coisa em cena.
E o que você conhece da América Latina? Provavelmente a Intrépida já deve ter se apresentado em outros países das América do Sul, por exemplo.
Olha, infelizmente nos apresentamos muito pouco. Considerando a América Central, a nossa primeira viagem foi para o México, exatamente no ano em que a gente nasceu. Era uma missão cultural do Circo Voador. Na época trabalhávamos muito no Circo, com efeitos. Tínhamos ido montar o Circo Voador no Maranhão, em São Luís. Nessa ocasião, o prefeito estava lá e falou: “Esse é o ano da Copa do Mundo, vamos montar a lona lá?”. Circo Voador tem que ter circo. A gente junta o pessoal da Escola de Circo, o pessoal de dança e vamos nessa. Nossa origem é um pouco essa viagem para o México. Tem releases nossos que dizem: “a Intrépida Trupe nasceu em 86 numa missão cultural ao México”. De alguma maneira, o grupo é meio mexicano, meio brasileiro.
Fomos à Colômbia, num festival em Manizales, e fizemos uma apresentação uma vez num evento na Argentina. Eu adoraria que a gente circulasse mais, que pudéssemos fazer uma troca, um intercâmbio mais rico. Tanto com o Uruguai, Argentina, Paraguai, Peru, Bolívia, Chile… Sei lá, Guatemala, são países belíssimos com essa cultura rica. E o mundo a gente já fez bastante. Portugal, França, Alemanha, EUA… são os lugares que a gente mais foi. Mais a França: nos apresentamos no festival de circo de Demain algumas vezes, participamos dos festivais que tem em Nanterre também… Na Alemanha, fomos em um festival convidados a fazer uma temporada num théâtre de variété, com gente do mundo inteiro, que é uma noite… Tipo um Canecão, em que as pessoas vão comer e beber e há várias atrações. E Portugal, que a gente já…
Agora fomos para a Bélgica participar do Europalia, festival no qual o país homenageado era o Brasil. Escolheram a Intrépida para representar essa linha do circo novo lá. Mas, hoje em dia, as viagens internacionais estão mais… No começo, no final dos anos 80 e começo dos anos 90, viajávamos com mais frequência. Agora, talvez devido à crise financeira mundial, com elenco grande, equipamento… Venho tentando fazer alguns trabalhos focados nas pessoas e na técnica, até para poder viabilizar essa troca, que geralmente é muito rica.
Quantas pessoas tem agora na Intrépida? Você falou que tem mais de um grupo.
O elenco que foi para a Bélgica é composto de umas 8 pessoas, e nesse elenco jovem somos 13. Fora a [equipe] técnica, claro. O outro [que foi para a Bélgica] tem umas 5, 6 pessoas na técnica, porque se trata de um espetáculo que necessita de subir e descer coisas. Senão fica difícil viabilizar. Mas, a gente dá um jeitinho, né? Gostamos de viajar e estamos abertos para os intercâmbios possíveis, dentro do que as pessoas podem oferecer, dentro das datas… Se estiver ao nosso alcance, sempre temos uma abertura para trocar.
Há também esse outro intercâmbio. Ano passado, por exemplo, eu viajei por várias capitais do Brasil dando aula, a Vandinha também, de técnicas de segurança. A Vandinha [Jacques] é diretora técnica e pedagógica, mas tem o Claudio Baltar, que também é diretor técnico e dirigiu os Sonhos de Einstein, e eu, que vou mais para o lado de direção artística, de coreografias, e imagens, cena. Mas eu trabalho junto com o elenco, né? de imaginar coisas e realizar na cena.
Não faz muito tempo, fui convidada pela Funarte para dar aula para pessoas de circo tradicional. Pequenos e médios circos. Porque eles têm uma coisa de muita carência, no sentido de luz, figurino. Com o tempo, vão ficando na periferia da periferia, muito pobres. Às vezes, nos pequenos e médios circos, os filhos não querem mais seguir a carreira de circo porque ela é muito árdua. Então, a Funarte fez um programa de oficinas para eles, de maquiagem, luz, expressão corporal, consciência corporal.
O corpo do circense tradicional sofre muito. Muitas vezes eles não têm noção de determinadas formas de se aquecer que são mais doces para o corpo, de compensar esforços repetitivos… E eu acho que o circo novo tem um.. Eu tenho um amor muito grande pelo circo tradicional, porque o que me fez me apaixonar pelo circo quando eu era pequena foi… Eu morava no interior de Mato Grosso, e era importante o momento em que o circo chegava na pequena cidade. No que eu puder ajudar o circo tradicional e homenageá-lo, o que tiver ao meu alcance, eu farei. Para mim, o circo tocou meu coração de uma forma que mudou a minha vida. Eu estou há 25 anos nessa história e, assim… Eu quis voar, acabei voando e ajudando um monte de gente a voar.
É, o circo com intercâmbio de linguagens, meio espetáculo teatral…
Que é mais viável, né? Acho que ele pode estar mais em todo lugar. Não depende daquela mega estrutura, lona… Isso tudo é um dia-a-dia muito árduo.
Mas também não tem uma estrutura tão itinerante como tem essa ideia da lona…
É, a gente podendo itinerar é sempre bom, porque está na essência do circo esse lado nômade. Você poder trocar com as culturas que vai conhecendo no caminho. Por isso eu acho que é muito bacana o Tangolomango. Sinto que existe essa filosofia da troca, que de alguma forma é o nomadismo. Você está num lugar mas as coisas estão sendo trocadas e passando, como quando você viaja.