feitura

esse texto não é meu.

a reclusão não foi premeditada.

férias é comum, quase todo mundo tira. mudar de espaços é normal.

procurar ordenação no caos, todo mundo faz. melhor que jogar pela janela (e se janela houvesse para).

não pode parar e procurar tudo de novo, achar que com vazio reconstrói tudo? talvez. mas é difícil que dói.

– se doía antes!

– sim, doeu.

joalheria. cor de joelhos e açúcar e lentidão.

– tem amigos artistas, mas se é artista?

– tudo questão de concepção.

– assim como conceito?

– como conceitura, de feitura, processo.

– ah.

– você não entendeu.

– como você sabe?

– dá pra ver.

– tura. tinha um parágrafo grande do cortázar sobre as turas. eram muitas. grandiloquentes. importantes pra vida. talvez inevitáveis. olha, estou relendo cortázar.

– reconstrói e relê cortázar?

– reedito vídeos também. ou melhor: reedito ideias antigas em vídeo. às vezes nao sei se elas querem ser vídeo ou outra coisa. mas tento vídeo, que como texto pareciam ter menos dimensão. existiam, lá, na página do caderno. se uma ideia é boa ela merece talvez mais que uma página de caderno, não acha?

– depende do caderno.

– com certeza, mas é uma questão de dimensão. e de envergadura, de quanto tempo eu passo olhando para ela, até que se transforme em outra coisa.

– parece que é importante construir esses espaços de visibilidade, não é?

– sim, mas, também, de certa forma já houve o tempo (esses primeiros meses) para se dedicar às aspirações, contornos e toda essa papucaia. em suma, à hibernação. com ela vieram uma série de coisas, que talvez pareçam inconclusas à quem primeiro ver. pois não é melhor aceitar logo duma vez que todas as coisas sofrem de incompletude, em maior ou menor grau? porque podem sempre prolongar uma membrana, deixar nascer mais um elefante entre os dedos. se faz mal? pode fazer, depende de como você ordenar. como um enxerto de planta. se mistura, tem que cuidar pra não corromper. senão, o braço cai.

**

e outro dia alguém me pergunta:

– você nunca fez chá de fita, inês?

– …

que coisa é essa que faz a gente decretar abandono de umas coisas frágeis que um dia fizeram parte do que somos? pois se ainda somos, ainda fazem parte. talvez umas coisas com imagem, travessuras, modismos e construções. sim, é isso: você de repente se dá conta de que precisa construir, e para isso invariavelmente irá deixar de lado algumas coisas. curadoria, seleção. com justificativa e conceito, que vai se formando. procura uma imensidão em coisas súbitas, se traveste, muda de grupos, joga tudo o que tem no quarto fora. precisa viajar pra saber ver de novo, para saber ouvir. precisa chorar distante, às vezes, precisa pegar um avião e dar umas boas gargalhadas, se sentir leve outra vez.

– ver nuvens e malhas molhadas. nunca me esqueço de veneza, vista do avião. umas terras alagadas. as pessoas falam, é claro, mas ver de perto é outra parada. eu fui lá, pôr o pé numas terras alagadas. vinha dos países baixos, que também têm uns tantos canais e se constróem em artifício sobre um terreno que é abaixo do mar. que loucura, esses artifícios. no meio do caminho atravessei as planícies enquanto lia moinhos de vento pela janela, e minha carona que só tinha sorrisos para comunicar. foi bem feito, 10 horas de trajeto porque tinha trânsito, e possivelmente a única viagem de carro da minha vida em que não enjoei. e nem podia, não tinha curvas! que loucura, esses países de planícies sem curvas. concluí que burger king devia ser o graal de lá.

– esses seis meses eu vou viajar bastante. não sei manter esses fios tortos abaixo dos pés – faz sentido?

– se faz. e você pode viajar?

– como disse: é uma questão de envergadura. preciso dar dimensão. tem vezes em que as distâncias daqui ficam curtas, dóem demais porque perderam o traço ao caminhar. dureza de transportes, de decidir, de coisa morta. círculos concêntricos que me medem as pernas, às vezes caem. daí que é só mover uma folhinha amarela que pronto, talvez assim a máquina volte a funcionar.

**

para participar da representatividade das coisas sólidas, apareço. talvez só seja possível o jogo dentro dos espaços, mesmo que – mesmo que tudo. fincamos o pé, não se sabe por quanto tempo, para mais um rolê dos espasmos coletivos. entre vozes alertas e absortas, inundados de travessuras e comércio.