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me contaram histórias de árvores.

elas esgarçavam suas botas para alcançar o outro lado do oceano. obviamente disse galhos, não botas. espasmódicas botas, digo galhos, costuravam versões de si próprias em novelos, e a cada vez lançavam ao oceano.

lançaram muitas vezes, ao longo dos anos. tantas, que foi formando um monte, depois uma montanha, e então uma ilha, que soterrava baleias por baixo de suas raízes. digo superfície.

o objetivo era chegar na outra margem, e, sem sombra de dúvida, não afundar. mas afundaram até gerar uma outra terra, ainda incógnita e não mapeada por nenhum satélite.

uma proeza, diria. astutos modos capazes de enfim criar algum norte. quase em literalidade.

o próximo passo seria tentar observar de longe para entender suas dimensões. mas não por satélite nem nenhum dispositivo digital ou eletrônico. alçaram lentes inseridas num tubo, disposto em tripé no alto de um longo mastro de navio. que era em si mesmo uma árvore de raízes flutuantes e galhos muito compridos, cuidando de modos de nevegar.

para o alto do mastro, muitas lentes foram coletadas de sucatas, do chão. formaram uma grande luneta, quase um telescópio, e assim enfim pôde bradar-se: terra à vista!

o próximo passo foi pôr as raízes, de aprendizado elástico, a locomover-se lentamente até esse território sem nome. as árvores assumiram seu caráter de teia, que enevoava-se entre elas a trocar substratos, e em mutirão, transmutaram-se em gigantescas aranhas para conseguir alcançar o navio.

se maior fosse o bando, poderiam mesmo ter criado modos de prescindir da navegação, fazendo de seus galhos e teias uma longa ponte que levasse até a terra inventada. contudo, era um caminho arriscado, pois certamente rastreadores de média capacidade notariam tamanha intervenção. portanto, optaram por lançar-se aos mares.

a árvore é o navio que é a aranha, composta de muitas teias e galhos, alcançando altas dimensões e podendo avistar longas distâncias.

uma lupa, você disse. para criar aproximações.

nenhum dispositivo de alta precisão. nenhum cálculo consciente foi feito. ângulos e indicações das estrelas guiaram o caminho, as árvores resolutas, todo um ecossistema a se criar a bordo.

o objetivo em si era ir ou chegar? o habitar o navio?

não esqueceriam as botas; a essa altura elas já estavam incorporadas. construíam com zelo muitas mantas, e geravam muitos frutos, que seriam colhidos em terra firme.

ali, seria criado um novo eixo para dele se deslocar. uma espécie de centro, em ramificação. acentrado, contudo, em que caminhos teriam de ser tecidos nos emaranhados, e descobertos dentro deles.

as práticas de jogos eram encorajadas, todos deles de bastões, anéis tortos, pedras ou cartas. nada que não fizesse parte da terra seria incorporado, nem exageradamente processado.

somente cortes, anzóis, fermentos e conexões. equilíbrios de cores, composição de zelos e memórias, reunidas conjuntamente.

os silêncios tornaram-se sagrados, um acordo de muitos, assim como as dissonâncias.

ninguém era medo, ninguém era chão. todos seriam navios, podendo lançar-se e laçar-se quando fizesse sentido. inversões celestes e cantos alhures, todas celebravam. e narravam novas histórias, entremeadas. §