da relação entre som e espaço e o contexto do pós-guerra

parte 1/3 de artigo apresentado no encontro de música e mídia: e(st)éticas do som, na usp, em 2009

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Fragmentado ou contínuo, dentro ou fora e em diferentes tonalidades, o som reverbera nos espaços cotidianamente. E a relação do espaço com o som é diferente da que este estabelece com as imagens, que estão na outra margem mais evidente dos meios perceptivos. São, efetivamente, meios tanto de percepção quanto de criação, e, portanto, os sons que são absorvidos ao longo da vida nas cidades contribuem para caracterizar aquilo que se chama experiência urbana, junto com outros aspectos que irão compor.

Brandon LaBelle, em Background Noise, diz que, diferentemente da imagem, “o som está sempre em mais de um lugar”. (LABELLE, 2006:x). E completa:

O som, deste modo, age com e através do espaço: navega geograficamente, reverbera acusticamente e estrutura socialmente; o som amplifica os silêncios, contorce, distorce e atinge a arquitetura; escapa salas, faz paredes vibrarem, perturba conversas; ele expande e contrai o espaço acumulando reverberações, reposicionando o espaço para além dele mesmo, carregando-o em sua onda, e habitando sempre mais de um lugar; ele desloca; como os alto-falantes de um carro explodindo em música alta, o som ultrapassa barreiras. Ele é ilimitado por um lado, e site-specific por outro. (LABELLE, 2006:xi)

Este trecho faz lembrar uma entrevista dada por Stockhausen em 1972, na qual ele fala sobre a possibilidade de apreensão dos sons que ouvimos no ambiente e da transformação deles através de alterações no seu tempo, comprimindo-os ou expandindo-os; enfim, pode-se manipular os sons apreendidos na cidade e nos espaços e ressignificá-los, organizando-os e tornando-os composições.

Alguns artistas têm de fato feito experimentações nesse sentido, e, dentre esses, são sempre muito lembrados Pierre Schaeffer e Pierre Henry da musique concrète francesa, que desde o fim dos anos 40, mas mais enfaticamente a partir das décadas de 50 e 60 do século XX, vêm produzindo peças sonoras que desafiam limites do que até então se conhecia por música, incorporando a ela diversos sons apreendidos do ambiente. O contexto do pós-II Guerra mundial favoreceu experimentações nesse sentido, porque, com o boom tecnológico que adentrava a vida das pessoas, surgiram também novidades como sintetizadores e novas técnicas de gravação e reprodução, como as fitas magnéticas. A música eletrônica dava então seus primeiros passos, sendo Henry, que fazia uso de loops e samples e suas obras, posteriormente reconhecido por DJs e produtores de techno, drum’n’bass e outros gêneros como seu precursor em muitos sentidos.

As composições de musique concrète foram das primeiras a incluir ruídos diversos capturados no ambiente, misturados a barulhos, vozes e instrumentos musicais dispostos em estruturas que exploravam, dentre outras variações, a espacialização das peças sonoras, como se verifica em “Symphonie pour un Homme Seul”, de 1951, de Schaeffer e Henry.

Pierre Schaeffer, diferentemente de Henry, não seguiu produzindo música depois da dissolução do movimento conhecido por musique concrète, cujo manifesto aponta para a observação de cada som em sua particularidade. Através do distanciamento desse som de seu contexto original, o artista poderia rearranjá-lo e reordená-lo de modo a torná-lo composição. Ainda assim, críticos* da musique concrète apontavam como ponto fraco desta o fato de não alterarem significativamente a natureza dos sons, questionando assim até que ponto os músicos teriam real controle de suas obras. De qualquer modo, ficou claro, como aponta Timothy Taylor em “Post-war Music and the Technoscientific Imaginary” (de Strange Sounds, 2001) que a Schaeffer interessava mais os experimentalismos em música e sonoridades, influenciando em grande parte o que hoje é chamado de sound art, enquanto que Henry nunca perdeu de vista os potenciais do som enquanto forma de linguagem e comunicação, mais que de prática artística.

John Cage, outro importante artista a se destacar no pós-guerra, pesquisou amplamente formas de audição, ruído e composição; atuou junto ao movimento Fluxus nos anos 60 e expandiu suas práticas para os dominíos da escrita – crítica ou poética – e para as artes visuais e happenings, junto a outros artistas tais como Allan Kaprow. O que interessava a ele era procurar no ambiente, enquanto espaço auditivo, uma estrutura musical não-intencional. Contexto e audiência, portanto, desempenham papéis determinantes em seu trabalho, pois, ao interferirem no ambiente, transformam-se em material de composição.

Ao comparar os artistas da musique concrète a Cage, LaBelle diz que

A diferença entre o objeto material de Cage e o objeto sonoro de Schaeffer é uma diferença de contexto e procedimento: para Cage, o mundo em si paira dentro e por trás do trabalho musical, como uma presença material e espaço de liberdade individual, no qual a vida comum toma forma; em contraste, para Schaeffer o objeto sonoro em si oferece o potencial de realização de uma experiência musical alterada e esclarecida, determinada por uma paleta expandida de detalhes sonoros exposta através de manipulações eletrônicas. (LABELLE, 2006:32-33)

A conhecida obra 4’33”, de Cage, é talvez o mais interessante exemplo para ilustrar como, em seu modo de perceber, os ruídos do ambiente interferem e constituem verdadeiramente a composição. E, coerentemente, LaBelle completa dizendo que o movimento Fluxus, de uma certa maneira, é sobre percepção. Mais ainda, ele argumenta que tanto a estética musical, relacionada à musique concrète, quanto a observação das sonoridades do ambiente, de Cage, são conceitos possíveis de se complementar. Em ambos pode-se notar interpretações e modos de lidar com os sons encontrados no mundo. Assim sendo, em última instância, todas essas interferências, seja no caso do acoustic design, instalações sonoras ou quaisquer obras que pensam a relação do espaço com o som, todas elas necessariamente irão se relacionar com a arquitetura, essa que permeia o espaço urbano.

* Taylor cita especificamente Pierre Boulez, músico francês contemporâneo a eles e ainda vivo, além de artistas da Elektronische Musik alemã, que compunham canções puramente eletrônicas a partir de sons sintetizados.

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